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Acabou a brincadeira

 

No bom sentido, é claro, pois todo mundo sabe que futebol é coisa séria. E nada mais exemplar do que o jogo de ontem. Todos os ingredientes de uma decisão dramática estavam lá, desde o herói improvável que se transformou em vilão, o brasileiro Mario Fernandes, que abriu mão de jogar na seleção de seu país para se naturalizar russo, em agradecimento à recuperação do alcoolismo, logo na terra em que o índice de alcoolismo é um grave problema social.

Mario Fernandes fez o gol de empate da Rússia na prorrogação, e perdeu um dos penaltis. Pois essa Copa, mais que as anteriores, está revelando a fragilidade e a grandeza dos ídolos do futebol. Neymar, por exemplo, está sendo vítima do que se poderia chamar de “síndrome de Pedro e o Lobo”.

Composta por Serguey Prokofiev em 1936, a música, transformada em peça de teatro, conta a história de um pastor que, entediado com o passar do tempo a cuidar de ovelhas, resolveu se divertir e gritou por socorro. Foi ajudado uma, duas vezes, por outros pastores, mas não havia lobo nenhum. Na vez em que um lobo verdadeiro apareceu, ninguém foi ajudá-lo.

Neymar, mesmo quando é agredido brutalmente, quase sempre o juiz acha que foi encenação, dado o histórico de quedas sensacionais que já viraram memes na internet. Mas Neymar, se não é o único extra-classe em atuação no mundo hoje - pelo menos Messi e Cristiano Ronaldo estão na frente dele, embora em fim de carreira -, com certeza é o mais criativo, mais original. Mas vai ter que se reinventar. 

Se nem Messi nem Cristiano Ronaldo serão campeões do mundo, ele também já passou duas Copas em branco. Teve falta de sorte nas duas. Em 2014 no Brasil, foi gravemente prejudicado por uma agressão que o tirou da Copa antes da semifinal do 7 a 1 contra a Alemanha. Hoje diz que se estivesse em campo o resultado seria diferente, mas provavelmente está se referindo ao placar, não à possibilidade de vencer aquele jogo, o que, em perspectiva, parece altamente improvável.

Na Copa da Rússia, jogou claramente fora de forma devido à contusão que sofreu, que exigiu uma cirurgia no pé direito. Voltou sem tempo de bola, na partida contra a Bélgica sentiu dores, teve que colocar gelo no pé operado. Mas, de qualquer maneira, por enquanto precisa de mais para se comparar aos melhores jogadores brasileiros, que dirá do mundo.

Todos os que foram considerados os melhores do mundo a seu tempo - Romário, Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Rivaldo, - foram campeões do mundo. Sem falar em Pelé, que é de outro planeta. Grandes jogadores também não foram, e o melhor exemplo é Zico.

Também a seleção de 1982 é exemplar de time que venceu perdendo, até hoje considerada uma das grandes seleções de todos os tempos. A seleção brasileira desclassificada na sexta-feira não se compara à de 82, mas está muitos pontos acima da de 2014, que terminou em quarto lugar.

Neymar tem tempo e futebol para cumprir sua sina de ser campeão do mundo e se transformar no melhor jogador do mundo. Mas vai ter que se reinventar. 
 Foi bom ter passado esses dias acompanhando os dramas e alegrias provocados por esse que é o maior evento esportivo do mundo. E conhecer bem essa Rússia, ocidentalizada nas grandes cidades, que guarda tradições seculares e venera seus artistas e escritores de maneira ímpar.

Cada vez, porém, fica mais verdadeira a idéia de que a Rússia da era Putin homenageia seus escritores mortos, mas dificulta a vida de seus artistas vivos, que lutam para superar as amarras de um Estado autoritário que, como denunciou o Departamento de Estado dos Estados Unidos, não permite a liberdade de expressão.

Uma denúncia dessas às vésperas da cúpula que reunirá os presidentes Donald Trump e Vladimir Putin é um recado nada sútil dos Estados Unidos, criticado por ter aceitado um acordo com a Coréia do Norte sem tocar na questão dos direitos humanos, agora disposto a enfrentar essa questão com a Rússia. Tiro uns dias de férias e volto à coluna de política no dia 24, para enfrentar o debate da campanha presidencial que, esta sim, define nosso destino como sociedade.   

O Globo, 08/07/2018