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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Goulart de Andrade

RESPOSTA DO SR. GOULART DE ANDRADE

SENHOR Xavier Marques,

A ânsia de expandir sentimentos afetivos fez que o primeiro período do vosso discurso abrolhasse todo em rosas de gratidão à memória de um dos mais confiantes fundadores desta Casa.

Revelando-nos, logo de início, e sem afetado propósito, o traço predominante do vosso caráter de doçura e conformidade, descobristes assim que devemos à lembrança de Valentim Magalhães um título mais de benemerência: – Ficamos pois sabendo foi aquela sua afabilidade radiante que, estimulando energias sopitadas e acordando curiosidades ambiciosas, vos disse uma feita da fascinação e donaire dessa Princesa Longínqua, por cujos encantos desde então bateu o vosso pulso e a cujo serviço pusestes, de longe ainda, e, timidamente, embora, engenho e cultura, asas com que se alcandora o vosso espírito.

Se a Academia, consoante a prática de toda beldade, negaceou a princípio, fê-lo antes para atiçar bem mais o desejo de posse, conquanto desse, pouco depois, prova sobeja de que não havíeis saído um só instante das suas preferências, ao coroar uma das vossas obras, beijo de glória afinal que importava o compromisso tácito de se render, como em breve se rendeu, ao vosso reclamo.

Não houve mister corvejamento sobre carnes palpitantes nem remígios sinistros em torno a corpos vivos, porque, Sr. Xavier Marques, mercê da vossa educação, nunca pusestes em qualquer de nós olhos de má sombra e ruim desejo.

À gula de renome, que, presumo, existe nas índoles mais acolhidas e discretas, bastariam a veneração dos patrícios e a expectativa simpática, que os vossos livros iam provocando, mesmo fora da configuração geográfica da província natal, cousa essa de espantar em tão extenso país, onde a preocupação do ganho e do luxo, de desporto e dança, vai cada vez mais anemiando o gosto das letras.
Viestes, portanto, verdadeiramente desejado.

O lugar que o destino vos reservou, arreiamo-lo jubilosos de festões, porque a vós, mais que a qualquer outro, cabia, por direito de conquista, tanto que ninguém veio a campo convosco, mão tenente. Pena é não seja cometida a um crítico de tirocínio a missão de saudar na vossa individualidade um dos poucos autores brasileiros com obra preconcebida e conscientemente realizada, num conjunto arquitetônico de estrutura sólida.

Em mim pesou o encargo, não direi por desígnio malicioso, mas por, sem dúvida, amor às antíteses, que nutrem as mais erguidas criações de arte com os efeitos do claro-escuro, para o fim de sacudirem a emotividade pela violência dos contrastes.
Ocupando a Cadeira de Inglês de Sousa, cujo padroeiro é Manuel Antônio de Almeida, deveríeis ter notado tal ou qual afinidade entre o contador das Memórias de um Sargento de Milícias, o animador do Missionário e o revelador de Pindorama e Sargento Pedro.

O gosto da tradição e a maneira de bosquejar painéis em Sousa apuraram-se no mestre da Arte de Escrever, porque neste se sublimam as excelências de ambos, sem o menor sedimento de imperfeições, quanto ao contexto e à linguagem. A observação arguta, a experiência da vida, a fina sensibilidade e a pesquisa honesta do documento fizeram, principalmente desses vossos livros históricos, verdadeiras ressurreições, tanto a afabulação parece narrativa estilizada de códices, apenas com um latejo de sangue mais apressado e um rubor mais ligeiramente acentuado de emoção patriótica.
E, contudo, ouso pensar não seja ofensa, Sr. Xavier Marques, aplicar-vos o reparo feito ao autor dos Contos Amazônicos, se acaso vejo também o cenário da epopéia da descoberta demasiado vasto para o drama que imaginastes da conquista e do povoamento.

No calor com que revidais a censura ao criador do Missionário não é impossível esteja o intuito da própria defesa, máxime no passo em que aconselhais se deve modelar o estilo pela imagem das cousas, tirando dessa aparente desproporção admirável simetria entre o meio ambiente, quase sem raios, e a escassa população que nele se dispersa...

Com efeito, assim procedestes em Pindorama, embora com essa habilidade que vos reconheço de criar harmonias, ainda com o mais frágil ou intenso material.
Onde acaso teríeis ido adquirir esta ciência de matizes e esta segurança vocabular, reveladoras a um tempo de sutileza sensorial, prática do ofício e bem gosto artístico?
Fico não desacertarei, se prontamente acudir: – que na poesia.

É vezo, entretanto, de certos noticiaristas assinalar entre nós como feias jaças, em versejadores que prosam, o estilo imaginoso e a cadência dos períodos.
Tais qualidades, que apenas alcançaria o meneio constante do verso, indubitavelmente vos tornaram mestre no escrever, porque dominador dos ritmos, ninguém melhor que o poeta saberá reger as pausas ou escolher no glossário o termo preciso para a sugestão do que deseja representar, sujeitando a emoção e graduando os efeitos, ouvidos sempre alerta contra hiatos e colisões, espírito afeiçoado às fórmulas sintéticas, preservadas na expressão mais sonora e mais plástica.
Os volumes das Insulares serviram, antes de tudo, de exercícios mecânicos, espécie de escalas cromáticas, por meio das quais chegastes à virtuosidade atual, embora contenham peças de grave conceito e lindo lavor, o que constitui a marca da vossa fatura.

Foi, portanto, mediante o continuado treino na metrificação, que atingistes ao desembaraço perfeito com que dais corpo aos mais fugitivos sentimentos, transmitindo as percepções mais sutis da vossa sensibilidade em parágrafos destramente construídos, assim com o termo técnico ou erudito, como também com o qualificativo vulgar ou a palavra sem nobreza, sempre que se faz preciso, conforme as circunstâncias.

Eis porque, possuindo a linguagem castiça pelo sabor clássico da construção, e pinturesca, nervosa, moderna, pelas expressões da gente que habita estas ribas atlânticas, constituís, a ombrear ainda uma vez com Inglês de Sousa, fiel abonador dos numerosos brasileirismos que, em nosso futuro dicionário, vitalizarão o idioma luso em plagas americanas.
Mas, houvestes por bem deixar o tórculo do metro e da rima, e com tal sofreguidão, como a que, suponho, sentis, neste momento de arrancar presto do corpo, afeito à blusa larga e à pantalona praieira, esta assaz incômoda entretela do fardão acadêmico...

Porque, tenho cá para mim, não prezais muito isto de etiquetas e modas, desde que vi, num dos vossos romances, convidados de um baile aristocrático trajarem sisudamente a sobrecasaca fúnebre dos enterros e duelos...
É que, com certeza, não teríeis comparecido àquela ou a outra qualquer festa mundana, enjoado da “casquilhice, da lisonja, do esnobismo e de tudo que há de  medíocre, com pretensões a valer...”
Vejo, pois, que, em casos tais, procedeis como certos pintores, quando, porventura, pretendem, sem sair da oficina, reproduzir a policromia e os aspectos da natureza... por imaginação ...

Preferis, sem dúvida, o recolhimento e o sossego, por serdes contemplativo como um insular mesmo, costumado ao diálogo com as sombras da tarde, olhar alongado pelas vastas águas sem termo, sobre as quais somente pairam pensamentos de melancolia crepuscular.
A visão das distâncias e a longura do plaino líquido sempre hão de provocar devaneios tristes e cismas cinzentas... É a nostalgia do Além...

Mas se desesperos ou desejos em tumulto acaso vos conturbam o ânimo, tal agitação se vai aos poucos adoçando em quietude, a alma fatigada de imensidades lento e lento se aproxima de Deus, e a música das vagas, com os seus murmúrios acalentadores, acaba por adormecê-la em apaziguamento e bem-estar.

Dir-se-ia que, semelhante à “Noiva do Golfinho” da Cidade Encantada, viveis também sob o sortilégio de uma Ondina, que vos ensinou amorosamente o idioma do mar.
É assim que conheceis o colosso como nem um mago o há conhecido, em todas as suas modalidades, raivoso ou letárgico, entendendo-lhe os múltiplos acentos, a cada hora do dia ou da noite, em todas as estações, quer “quando o vento sibilante escama as águas, onde a tarde reflete o seu azul finamente dourado”, quer quando, ao livor espectral da  lua as  maretas brincam nos recifes como “urcos marinhos”, enquanto ao longe “as vagas enrolam e desenrolam o seu manto escuro, cujas fímbrias se rasgam nas arestas do penedo”.

Sim, todos os clamores da massa equórea vos são familiares: – desde a aguagem das marés na costa próxima até as lamentações desesperadas nos farelhões remotos; desde o assanhado tumulto que faz o marulheiro nas coroas, até quando, heróico, o oceano entra a soar como uma fanfarra, as ondas a reluzirem, impando como peitos de aço.

Quem melhor nos descreveu os anseios do gigante, quando troca os gorgolhões de afago aos chanfros do penhasco por uma espécie de rugido animal, uma trepidação tempestuosa em que nada se distingue e tudo em redor se confunde? E quem já encontrou sons mais próprios para reproduzir esses marulhos cariciosos da carneirada pelas locas das fragas e desvãos da madrigueira?
Para interpretá-lo assim, quanto tempo não haveis quedado, sozinho, na escuridade, a ouvir-lhe os vagalhões longos e monstruosos, que avançam bramando, ou a ver-lhe horas e horas, no baixio negro, a água plana e chumbada, parecendo oleosa palude, sem um anseio, um arfar, um floco de espuma, debaixo de uma chuva de fogo?

Tão impregnado ficastes da poesia complexa da existência marítima, que ao lermos a coletânea dos contos praieiros, entramos de sentir toda a sugestão e amarugem da vida local, como se estivéssemos a haurir emanações salitrosas, ouvindo o ritmado estrondo das vagas e vendo como arde a paisagem através do trêmulo revérbero das areias.
Com ser o reflexo de terras e gentes do Recôncavo, a lhes espelhar linda e fielmente a selvatiqueza e a ingenuidade d’alma, a par da tristeza e maravilha das cousas daqueles rincões, esta é para mim a parte melhor de vossa obra.

Assim, “Mariquita”, “O Arpoador”, “Maria Rosa”, “Sargento Pedro”, “Pindorama”, “Jana e Joel” nada mais são que um poema em vários cantos, qual deles mais comovido, qual de mais requintado lavor, poema do mar que, agradecido, vos “arroja coroas de angélicas e lírios, flores de espuma que nascem dos choques sonoros...”
Por eles é que a Bahia preferencialmente vos engrinaldou de louros; neles é que o vosso gênio desafiará o tempo.

Saindo um momento do litoral, onde vos enfeitiçou a magia de alguma Loreley, compusestes “O Feiticeiro”, história refundida de “Boto & Comp.”, em que se acrisolam essas virtudes descritivas sem discrepância reconhecidas por todos, e em que estampais verdadeiros flagrantes dos costumes burgueses, kodaquização nítida da mestiçagem folgazã e crônica exata das bárbaras superstições africanas.

Depois, passastes a retratar o meio aristocrático de São Salvador, a fim de que nada do rincão estremecido escapasse à mirada carinhosa, num livro em que um publicista de renome até chegou a ver o drama da adaptação do homem branco às latitudes tropicais!...
Não há como a crítica para descobrir nos autores cousas que eles nunca tiveram em mente...
“Holocausto” é o título, plenamente justificado com a renúncia de amor de um jovem médico, que, atingido pela tara da tuberculose, amima voluptuoso a própria infelicidade, acompanhando com vagares terríveis o atrofiamento dos músculos, o dessorar do sangue, a perversão dos nervos e a debilidade crescente do corpo.

Mas, ao invés da deserção simples, como fora mister, procurou valer-se do prestígio exercido sobre a pobre noiva com o fim de obrigá-la a casar com o seu melhor amigo, sem prévia consulta aos sentimentos dos interessados, imolando destarte a própria ventura ao que julgaria o bem alheio.
Certo, generosa é a idéia de evitar a todo transe se cometam grandes crimes pelo egoísmo dos que amam, sem um pensamento sequer para aqueles que hão de vir... Mas, como em tudo, mesmo na verdade, há sempre pontos discutíveis, relevar-me-eis considere altamente censurável este holocausto, que, sobre o próprio sacrifício, acarreta o de duas outras existências, a menos que a prometida não passe ali de loureira ávida de casamento.

Não foi, ao contrário talvez do vosso intuito, a livre vontade que levou o protagonista àquele estado místico de renúncia, senão as leis do determinismo, que lhe prepararam esse ambiente febril de tragédia, caso não queiramos admitir a intervenção da fatalidade nos destinos humanos...
E, todavia, foi à fatalidade, na sua significação mais complexa, que deveis o ingresso na política, arte e ciência alhures, mas, entre nós, cousa calamitosa, que exaure o país com o flagelo das discórdias sangrentas, em contraste humilhante com a vitalidade da natureza.
Se a terra, de fato, causa espanto e maravilha, não deixa contudo de carecer muito de tratos e correções, tanto que talvez seja o único pedaço do mundo, onde ainda hoje se morra à sede e se padeça das suas terríveis conseqüências.

Não quis nem permitiu a política que pastoreassem as águas mansas ao longo das planícies adustas ou cingissem os vales, os chapadões e o ventre d’oiro das montanhas, com o cíngulo das estradas pelas quais, em fluxo constante, subissem a instrução e a justiça, o médico para sanear e o industrial para produzir, descendo caminho do litoral, em refluxo contínuo, todas as várias riquezas sertanejas.
Na sua natural bisbilhotice, ela, a política, avistando-vos esquivo ao bulício circunstante, logo foi, com os seus ademanes e requifes, bater à vossa porta a forçar o acolhimento, se é que não penetrou no vosso retiro, com trejeitos e esgares arlequinescos, sub-repticiamente.
Como quer que seja, ao atrito dos sucessos ou às solicitações do ambiente, vistes um dia, não sem surpresa, que manejáveis uma pena contra homens e cousas.

Não me foi dado encontrar-vos em tais refregas, mas, atentando na estima geral que vos cerca e conhecendo quão explosivos são os sentimentos partidários nessas plagas, não me será difícil concluir que, se neutro não quedastes em meio às lutas, mercê da inteireza do vosso caráter, quase neutra teria sido a fatura dos vossos artigos de polêmica...

Porque isto de ser urbano e polido em dias que correm apenas traz insucessos e desvalia: – Tanto mais arremeterem com pessoas, tanto mais amigos de destruir bens, mais encarniçados contra a honra alheia, quanto mais lograrão benesses e recompensas, pois políticos, lá nesses longínquos redutos, querem-se truculentos e roncadores, bem que aqui se esfumem em transigências, completamente diluídos no número global das votações quase unânimes.

É que o cálculo dos interesses, o lustro da representação, o temor à perda iminente das posições, o egoísmo, a ignorância e a falta de fé conduzem muitos deles ao comodismo, estado de inércia em que se assemelham a certos sáurios anfíbios, tardonhos na aparência, embora na realidade solertes e atilados.

Não sofreria, portanto, a aguda sensibilidade que o vosso punho, uma vez ao menos pudesse remexer pântanos, levantando exalações que bafejassem com hálito corrupto a honra do próximo, visto esse material de ódio, vilipêndio e inconseqüência não fazer jamais boa liga, por demasiado bruto, com a cultura e a bondade.

O cargo político, que exerceis, deve pois ter sido antes prêmio à glória literária outorgada excepcionalmente neste regímen por um chefe arguto, que justo galardão de pugnas partidárias, salvo se menos exatas forem as asserções dos vossos biógrafos, quando afirmam não criastes um só desafeto nesta matéria.

Ora, como tal cousa estaria no rol das impossibilidades metafísicas, fico não verei iludida a minha lerda perspicácia, que bem desejara igual em penetração à daquele avisado crítico, por exemplo, que revelou a Vida de Castro Alves, a fim de que pudesse focalizar os múltiplos aspectos de uma obra tão vasta, tão complexa e de tanto caráter, qual a vossa.

Mas, se foram altas qualidades morais, e, portanto, assinalado caráter quem vos conduziu o espírito, este, certamente, seria quem vos abriu caminhos ao coração, fazendo da vossa vida raro modelo de probidade, de perseverança e, por que não dizer? de coragem.
Não será porventura prova de coragem cega esta feroz, obstinada resistência ao meio bárbaro, desatinado pelas paixões, senão mesmo pelos interesses ruins e inconfessáveis?
É que possuís um abrigado refúgio de silêncio e pacificação. Quando os embates vos confundem e maltratam, logo volveis ao remanso de Itaparica, onde, muita vez, rompendo a lauda de áspero revide, buscais na arte o suspirado consolo e a necessária serenidade.

E para ela não apelais inutilmente, pois dentro em breve esqueceis apodos e vinditas, mercê da excitação criadora, da divina volúpia de rebuscar expressões, que, na síntese de uma simples fórmula harmoniosa, caracterizem e definam um indivíduo ou um aspecto, um fato ou uma atitude.
Se é certo que ao vosso temperamento plácido não aprouve o emprego de cores primárias em enredos complicados e surpreendentes, destes, no entanto, com fartura, quanto pôde caber numa imaginação sadia e equilibrada.

Assim, para compor a Arte de Escrever não houve mister consulta a autores estranhos. Debruçastes-vos sobre os próprios contos, estudastes as vossas novelas, analisastes os vossos romances.
Com o amor do termo justo, o sentimento do ritmo, a ciência da composição, poderíeis tirar exemplos da obra que realizastes, pois de tudo há nela quanto baste, para ensinar como se combinam traços, se cunham fisionomias, se criam peripécias, se acham desenlaces e se matizam narrativas, sem sair do campo do natural e do verdadeiro, pintando, restaurando ou evocando.

Em qualquer dos vossos livros encontraremos, com a ordem e a regularidade, a medida e a clareza; esta, sinal de equilíbrio e precisão; aquela, marca de bom senso e de bom gosto. E os efeitos são de tal modo graduados, que chegais, em certos lances, a descobrir valores novos e novas correspondências entre paisagens e estados d’alma.
Se em vós a imaginação é moderada, a despeito daquela fantasia à Wells, sob o título de Viagem Maravilhosa, opulento, entretanto, é o modo pelo qual ela se exprime, tanta a justeza da frase, tal o movimento dos períodos.

Passeando uma só personagem ou agitando massas consideráveis de indivíduos, mostrais como se pode ser variado sem se perder a indispensável unidade, jogando com a luz, esbatendo as sombras, desdobrando perspectivas ou dando relevo às oposições.

A Cidade Encantada e a Boa Madrasta cristalizam estas qualidades, sendo que neste último romance as almas são mais bem cuidadas que a Natureza, recortando-se, com sulcos de funda nitidez, as ânsias e as dores morais, estando mais bem tratadas as conjecturas e as crises sentimentais. Quero dizer que, aí, o psicólogo sobrepuja o pintor de gênero, o que afinal traduz ainda uma ascensão!
A Boa Madrasta é, portanto, o fecho do monumento pacientemente erguido à glória do nosso idioma.
Com Manuel Antônio de Almeida e Inglês de Sousa, sombras sagradas que iluminam o lugar que ora ocupais, constituís sem dúvida um dos poderosos fatores da unidade da pátria, pois cada qual no seu recanto a exaltar as belezas da terra, dizendo d’alma bravia e generosa da gente, soube projetar na eternidade o corpo esplêndido do Brasil bem amado.

Sr. Xavier Marques: – é possível que de vossos livros ninguém saia a pensar... Mas o que asseguro é que deles ninguém deixará de sair comovido.
Prefiro assim; porque, como Vauvenargues, também prezo mais um autor que exprime um belo sentimento, do que outro, se me dá uma coletânea túmida de pensamentos inúteis.
A idéia primacial da vossa obra distinta poderia até se conter num só conceito de poeta: “Toutes les vraies et grandes amours conduisent à Dieu.”
Porque sois, de fato, um crente, pelo amor mesmo que votais à terra natal.

E tanto estes sentimentos se confundem, que nos vossos transportes patrióticos e arroubos místicos, nem atinais qual deva ser colocada como dominadora: – se a Cruz ou se a Bandeira.
Mostrarei já a todos aqui, e talvez a vós mesmo, surpreendido, esta postura de transverberado, de quem se sente extático, acima do solo, diante desses dois signos sublimes.
Vede! O Pindorama, tragédia da conquista, finda nesta cena de exaltação religiosa:

Como o sino de Ceuta, os bronzes do Colégio vibravam no espaço, narrando a glória de Jesus e do seu exército.
D. Fernão sentiu-se arrebatar e entrou. Uma visão do eterno lhe consolava os olhos: o lenho sagrado, soltando-se das mãos do padre Loio, crescia e subia, cercado de auréola refulgente, na luz do ocaso que tinha então o rubor de uma aurora.
– Prodígio divino!...

A cruz subia sempre, dominando torres e solares, acima das cúpulas da floresta e das palmeiras ondulosas que já não rugiam a pocema hostil, mas pareciam rezar um penitet solene por sobre os verdores da terra conquistada.

E agora ouvi como remata o drama da independência, à hora em que a todo o pano a esquadra adversa se sumia, mar dentro:

Desferramos das Mercês, batemos-lhe fogo até à barra. Dali aproamos ao forte de S. Marcelo, atracamos, saltamos lá dentro com o capitão Botas. Os brasileiros, presos no forte, tinham feito uma bandeira, como aquela... O capitão mandou içar a bandeira. Foi a primeira!... E fui eu, Pedro, fui eu, com estas mãos, que a levei ao topo do mastro. Oh! não te conto... Não tinha mais corda nem mastro, e eu continuava a içar a içar... Não sabia mesmo onde queria pô-la...
– Nas nuvens?
– Não; mais alto ainda, donde o mundo inteiro, à roda de nós, pudesse vê-la...

Não sei de páginas que revelem melhor um espírito e um coração.
Sr. Xavier Marques: já que pela magia da vossa evocação nos arrojastes a um ambiente heróico de façanhas e de militança, permiti, a bem da unidade do discurso, que, dirigindo-me a vós, use de uma ordem de comando.

Não é certamente a de “Descansar”, porque, a quem sofre o mal divino da inteligência, tal cousa não será concedida aqui na Terra... Estes apenas descansam deste mundo, e para sempre...
Mas, dir-vos-ei, ao concluir, a fim de que chegueis confiante e jubiloso para as comunicações fraternas do nosso convívio, aquela outra, de tão franca e tão agradável significação:

À vontade!