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Vítor Viana

DECÁLOGO DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA

A elite brasileira venceu a crise de confiança. Nas novas gerações se nota a reação salutar a que aludimos. Esse mal terrível de cepticismo, que gera a covardia intelectual, que arruína a coragem sadia de pensar para agir e restringe a capacidade mental na compreensão para rir, apontou sempre os vícios fundamentais da climatologia e da raça como as condições esmagadoras da nossa inferioridade.

De modo que quando alguns patriotas, quando ingênuos intérpretes da raça procuravam propagar idéias ou convidavam os outros a uma ação fecunda, os cépticos, incapazes de pensar e de lutar, recuavam, sorriam e repetiam os feios lugares-comuns dos sociólogos europeus de fancaria, que não sabem geografia e ignoram a história.

As doutrinas são explicações do ponto de vista utilitário, são resultados da experiência. Acumulando as culturas alheias, nós só podemos aceitar delas o que não for contrário ao nosso ideal e à nossa razão de dizer. As abusões degeneradas de literatos europeus a respeito das raças e dos climas só podem e só devem encontrar nos brasileiros conscientes a mais enérgica repulsa e a mais cabal contestação. O dever da nossa geração, neste momento em que a espécie humana atravessa uma das maiores crises históricas, é de preparar a mentalidade brasileira para a compreensão do seu destino e para a sua ação. A nação que duvida do valor intrínseco de sua capacidade perde a coragem para pensar e agir.

Para reeducar as elites e sanear os costumes políticos é necessário refundir as noções sociológicas de alguns intelectuais brasileiros, que muita gente do povo já repete.

Os dados da sociologia moderna, da antropologia, da entnografia e da histórica não contestam, ao contrário afirmam a verdade que estabelecemos nos curtos parágrafos anteriores. Só mesmo obra longa será possível acompanhar, com exposições compactas, os exemplos a que aludimos da maneira mais breve possível. As reivindicações da sociologia brasileira constituem uma obra de arte e patriotismo, porque são uma obra de confiança e são o melhor elemento de propaganda do Brasil.

Pelos dados e princípios que recordamos acima pode dizer-se que a sociologia moderna, que a sociologia que os brasileiros devem aceitar e proclamar, reconhece um decálogo de verdades que desmentem todas as abusões européias. Assim convém fixar esse decálogo:

1o. Não há raças inferiores. Todos os povos atuais são constituídos de raças primitivas diversas e a civilização foi fundada pelas raças chamadas inferiores.

2o. Não há climas hostis à civilização, que aliás é um produto originário dos trópicos.

3o. Os povos se engrandecem pela acumulação das culturas antigas e estrangeiras, aproveitada sob o ponto de vista nacional.

4o A prosperidade de uma nação depende do momento histórico, das condições do comércio mundial e do aparelhamento técnico.

5o. Os povos que triunfaram na civilização em todos os tempos pertenciam a raças diversas e antagônicas; todos, entretanto, possuíam cultura mais elevada e disseminada do que seus vizinhos.

6o. O grau de civilização dos povos está na razão direta da assimilação e acumulação das culturas que recebem.

7o. Os fatores de prosperidade econômica variam de acordo com as sugestões da técnica e as facilidades das permutas.

8o. A situação geográfica influi de acordo com as comunicações comerciais e não de acordo com o clima.

9o. A decadência das raças é proveniente do deslocamento de centros comerciais, de desapropriação de cultura e de uma acumulação retardada em relação aos povos vizinhos.

10. A prosperidade dos povos depende do equilíbio de sua ordem jurídica em coincidência com a centralização comercial e a acumulação aproveitada das culturas.

Assim a colaboração das raças chamadas inferiores não nos pode ser prejudicial. Assim a nossa latitude não será obstáculo ao nosso progresso e a nossa posição geográfica será no futuro um penhor de grandeza. As condições sociológicas prometem e garantem ao Brasil o grande destino que os fundadores da nacionalidade desejaram e anunciaram. Cumpre à política aproveitar das soberbas circunstâncias.

(Histórico da formação econômica do Brasil, 1922.)

 

A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA

Os portugueses já eram mestres em colonização moderna quando colonizaram o Brasil. Na Madeira e no Cabo Verde já se plantava a cana-de-açúcar com o auxílio do trabalho escravo. O negro já era o grande colaborador, era mesmo conduzido para a Metrópole para ajudar na labuta agrícola e urbana. Os heróis da expulsão e domínio dos árabes aprenderam com os vencidos a arte de ir buscar na costa da África os negros para a escravidão.

Era um trabalho penoso, mas lucrativo.

A cana-de-açúcar dava lucros fabulosos. Era uma riqueza mais segura do que a do próprio comércio. Entretanto, o colono europeu não só não se adaptava facilmente à nova cultura, como não poderia sozinho abranger toda a extensão de suas terras. Obter a multiplicação de seu esforço pelo aproveitamento do trabalho escravo era a solução.

Em toda a Europa ainda havia servos quando lusitanos começaram a expandir os seus domínios. Na África, passavam a escravos os cristãos vencidos e na península os mouros e marroquinos, capturados nas conquistas de além-mar e nas guerras de corso, tinham sido também escravos.

A noção do poder de vencedor sobre o vencido era bem diferente da de hoje e assim era natural que, vencendo as tribos da Costa da África, os portugueses, seguindo o exemplo dos árabes, quisessem fazer o tráfico dos escravos.

Era um negócio lucrativo, deduzido das conquistas, das concepções da época e dos costumes africanos. Os negros eram escravos uns dos outros e naturalmente se sujeitavam à sua desgraça como uma fatalidade histórica.

Os seus chefes tinham consciência da humilhação política que isso representava. Mas justamente porque havia essa noção havia disciplina. Os cativos vinham talvez com a esperança de uma represália de seus patrícios. Mas considerando-se prisioneiros de guerra, não se revoltavam senão por exceção e eram pacíficos e obedientes.

Nos meados do século XV já se fazia o resgate entre os reis ou os negociantes árabes e os portugueses. Os ensaios da exploração do trabalho negro na Madeira, nos Açores, em Cabo Verde e em S. Tomé já tinham dado bons resultados. Assim, estava indicado aos americanos o aproveitamento do sistema.

As colônias eram poucas. As metrópoles não tinham recursos de população para garantir o trabalho nas terras conquistadas.

Na Costa da África as nações negras ofereciam um excelente material humano, de acordo com as concepções do tempo e do meio. Os próprios régulos vencidos entregavam como indenização de guerra multidões de antigos súditos.

O deslocamento do tráfego dos escravos para a América foi, portanto, uma conseqüência da situação anterior na Europa e na África.

 

AS ESTAÇÕES DE EXPERIMENTAÇÃO E OS POSTOS ZOOTÉCNICOS

A SELEÇÃO DE SEMENTES

As histórias oficiais são muito falhas quanto aos primeiros estabelecimentos da América. As lendas de Caramuru e de Ramalho demonstram uma situação muito mais ampla quanto à instalação dos europeus nos vinte primeiros anos depois de Cabral do que a que os livros consagrados descrevem.

Os piratas, os corsários, os aventureiros abundavam, e as notícias das riquezas maravilhosas da nova terra acendiam todas as cobiças. O mundo parecia renovado e nos portos da Europa negociantes e cientistas se congregavam a aventureiros para a descoberta de mundos até então desconhecidos.

A esquadra de Pedro Álvares Cabral veio, segundo o próprio testemunho de Caminha, verificar o que seria possível fazer das novas terras.

No reinado de D. Manuel pouco se fez. Vieram esquadras mais para descobrimentos e posse do que para colonização.

Os franceses, espanhóis, ingleses e holandeses andavam, porém, pelos mares e os primeiros principalmente já procuravam estabelecer comércio com os indígenas e extrair madeiras.

A prova disso é que quando D. João III, que Oliveira Martins chamou com razão de rei colonizador, vendo os resultados da colonização das ilhas, quis aplicar os mesmos métodos ao Brasil, mandou para cá Cristóvão Jacques, a sua expedição andou metendo a pique navios franceses e aprisionando as guarnições. Só em 1530 é que veio Martim Afonso de Sousa.

Martim Afonso correu a costa, e a própria história oficial conta que encontrou degredados e desertores. Os navios, abandonando os condenados e deles fugindo os que se sentiam maltratados nas suas passagens de corso e de comércio para as Índias, já tinham espalhado alguns colonos.

A primeira povoação brasileira oficial foi a de S. Vicente. Martim Afonso, graças à influência de João Ramalho, obteve o apoio dos gauianeses e com estes e os 400 sentenciados que trouxeram, principiou a plantação da cana-de-açúcar e a criação de gado. Cana e gado tinham vindo da Madeira. Já era uma transplantação de colonização portuguesa.

Madeira e as outras ilhas ficaram depois tão portuguesas, acompanharam de tal forma a evolução da metrópole, que foram administrativamente anexadas e passaram a ser províncias com as do continente. Mas sob o ponto de vista da colonização em maior do Brasil serviram de "viveiro", de ponto de referência e de experiência.

O que dava bem na Madeira e nas outras ilhas era depois transportado para o Brasil. Homens, plantas, gado eram mais ou menos selecionados nas ilhas e quando prosperavam eram então transplantados para o Brasil.

Madeira, Cabo Verde, S. Tomé, que tinham florescido com o açúcar e a escravidão, foram como que os postos zootécnicos, os jardins de aclimatação, as estações de experimentação, os campos de seleção de sementes da grande colônia.

Houve assim uma seqüência lógica, sistemática. As luzes de renascimento e a secular experiência e os ensinamentos doutrinários dos árabes tinham esboçado na inteligência e ação de D. João III e seus conselheiros as teorias que hoje presidem os trabalhos dos chamados Ministérios da Agricultura. A América lusitana e as Terras Brasílicas não eram só couto e homizio; foram também objeto de uma colonização sistemática.

É o que se conclui estudando a evolução da colonização portuguesa das ilhas e da Costa da África para o continente americano. A formação do Brasil já foi daí em diante perfeitamente consciente; e a administração portuguesa aproveitou o que aprendera nas ilhas, na Costa da África e na Ásia longínqua.

 

A INFLUÊNCIA DO NEGRO

O negro foi o braço auxiliador básico de uma nova estrutura social. Os jesuítas, que tinham sido mercadores de pretos na África, eram favoráveis à libertação dos índios para os escravizar a seu modo.

Os colonos livres tiveram, portanto, de recorrer aos pretos, cujo trabalho já tinha sido experimentado nas ilhas e na própria metrópole.

Os negros se espalharam pelo Brasil e pela América. A campanha do Grão-Pará centralizava o tráfego. Depois a abolição foi necessária. Mas não é possível negar que a escravidão representou um grande papel social e foi um fator de formação e consolidação da nacionalidade. Os colonos eram pouco numerosos. Os pretos não poderiam, no estado de sua cultura, ser imigrantes livres. Só a escravidão garantiu o desenvolvimento das culturas tropicais. Houve época em que chegavam ao Brasil 100.000 negros por ano, sendo de 20 a 40% para o Rio de Janeiro.

Os registros de Angola de 1759 a 1803 marcaram a saída de 642.000 negros.

No século XIX, a proibição legal enfraqueceu o tráfego, mas a própria importância do deslocamento dos negros mostra como a sua transplantação foi fundamental para a criação do Brasil e de todos os outros países da América. A mortandade era tremenda. Se ainda no fim do século XIX, o célebre relatório Haddock Lobo provou o alto grau da mortalidade entre os escravos, como seria nos séculos anteriores? Mas as fazendas, os engenhos e as estâncias precisavam do braço escravo, sem o qual não teriam prosperado!

A cultura só poderia ser extensiva. Derrubavam-se florestas virgens para inaugurar as culturas transplantadas; mas todo esse trabalho exigiu braços numerosos. Todo o desbravamento do interior foi baseado no escravo, no negro que era o trabalhador. O branco era chefe, proprietário.

Não que o clima não permitisse o trabalho ao europeu, mas porque os poucos colonos não poderiam nem tentar lavrar a terra virgem e precisavam de muitos auxiliares. Só a África os poderia fornecer, e só a África os forneceu,

Daí a estrutura social da sociedade colonial. Os brancos herdeiros dos donatários e os concessionários das sesmarias, negociantes e funcionários, monopolizavam as classes dirigentes; os negros e os seus descendentes, mestiços ou não, os descendentes de alguns formadores de aldeamentos, mestiços ou não, como escravos ou salariados, estes sem direitos de verdade, a não ser o de não ser passível de venda e compra.

Essa formação social foi a causa do nosso rápido desenvolvimento em relação aos outros países da América Latina. O edifício social consolidou-se apoiado na escravidão, o equilíbrio permaneceu seguro; mas a produção mais tarde não correspondeu à população, porque não se tratou de aparelhar pela instrução os descendentes diretos ou indiretos das raças que colaboraram na formação do país.

(Histórico da formação econômica do Brasil, 1922.)