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Discurso de posse

I

A estética do Fardão

Há três anos era eu candidato à vaga que Medeiros e Albuquerque abrira nesta Casa. E uma tarde, nas vésperas do pleito, Laudelino Freire e Benjamim Costallat palestravam na redação do Jornal do Brasil quando entrei na sala. Os dois, imediatamente, se puseram a conversar sobre a minha candidatura. Costallat começou a fazer pilhérias com a Academia e comigo. Laudelino era voto meu; estava seguro da minha eleição.

– Está eleito! Rigorosamente eleito! – assegurou.

O romancista da Guria dava muxoxos de incredulidade:

– Eleito nada! Eleito com aquele tamaninho!

Laudelino escandalizou-se.

– Que tem isso? Ele fica muito bem no fardão.
– Mas o fardão fica muito mal nele! – retrucou Costallat, com a mais vasta das suas risadas.

O brilhante autor de Loucura Sentimental, sem querer ou talvez querendo, estava, com um simples gracejo, a definir um aspecto rigorosamente acadêmico.

Foi sempre dos cuidados das Academias velar pela estética dos fardões. Um trajo tão nobre precisa estar bem ajustado. O manequim que o veste deve ser um primor de manequim, bem formado, bem formoso, bem lustroso e bem gentil.

E a cautela no exame do que vai ter as honras do fardão custa, às vezes, um trabalho interminável às Academias.

O trabalho que eu dei foi longo e fatigante. Bati a estas portas de cabelos pretos e só agora, com a cabeça quase toda branca, é que as portas se me abriram.

E, por isso mesmo, é mais alto o meu desvanecimento. As conquistas, tanto de mulheres como das letras, são sempre mais saborosas quanto mais difíceis.

A luta que travei para transpor estes umbrais ilustres, a constância nessa luta, a pugnacidade na constância, a serenidade nos insucessos são as provas claras e profundas da profunda e clara estima que voto a esta Casa.

E é com certa volúpia que hoje, no fastígio dos louros, eu recordo os dias procelosos das cinco investidas que fiz para me sentar entre vós, numa destas cobiçadas cadeiras azuis.

Foi o mais longo e o mais penoso trabalho de minha vida. Tão longo que vem desde os meus tempos de rapaz.

É desde os meus tempos de rapaz que eu sonho viver sous la Coupole.

O namorado da Academia

Posso até gabar-me de ser o mais velho namorado da Academia. Porque, o que eu tive, senhores, através de tantos e tantos anos pela ilustre Companhia, outra coisa não foi senão um verdadeiro namoro.

Foi Briand, o célebre político francês, quem afirmou: aos vinte anos somos incendiários, aos quarenta – bombeiros.

No Brasil, a gana maior dos moços é contra a Academia. Pois mesmo na flama da minha juventude, quando eu andava de facho aceso incendiando céus e terras, mesmo naquela fase, nunca, senhores acadêmicos, pretendi torrá-los numa fogueira. A fascinação da imortalidade era em mim mais forte que os meus frenesis de petroleiro.

Meu namoro com a Academia era de tal maneira escandaloso que se tornou até um dos pratos mais ricos da zombaria nacional. De norte a sul do País o humorismo jornalístico punha-o de quando em quando à mesa, para o agrado dos leitores.

Diziam-se de mim coisas bem ridículas. Certo humorista, aludindo aos constantes insucessos das minhas eleições acadêmicas, chamou-me Romeu sem escada, Romeu que não conseguia chegar aos braços de Julieta por não ter degraus de seda para subir ao balcão do amor.

Um outro chamou-me “tia” da Academia. “Tia” na acepção de solteirona.

Realmente não foi senão de solteirona o papel que representei com o meu namoro.

Na janela do sonho, mais de dois lustros me debrucei à espera do noivado da imortalidade. Diante dos meus olhos passaram cortejos nupciais, carruagens engrinaldadas, de noivos felizes. Aos meus ouvidos chegaram muitas e muitas vezes rumores de festas esponsalícias que se faziam nesta sala.

E eu ficava de cabeça zonza, olho comprido, água na boca, palpitando, suspirando, desejando...

De onde em onde, queimado pela febre da esperança, eu fazia um penteado novo (um novo livro, que atirava ao público), punha pó no rosto e carmim no lábio. Mas o noivado não vinha.

Iam-se casando as minhas irmãs, iam-se casando as minhas vizinhas. E, para mim, em vez de noivo, eram os cabelos brancos que chegavam. E eu palpitando, desejando, suspirando, água na boca, olho comprido...

Eram tão conhecidas as minhas inclinações pela Academia, que muita gente já me imaginava aqui de dentro. Em começo de 1930 tive a surpresa de receber um emissário de Guilherme de Almeida. O grande poeta de Simplicidade, candidato à vaga de Amadeu Amaral, mandava-me pedir o voto.

O amor de quem muito espera é um amor de altas calorias, que se refinou à prova de fogo. É esse amor a única virtude que trago para a ilustre Companhia.

As singularidades da Academia

Li, há muito tempo, uma velha comédia que não mais se apagou da minha memória. Era uma mulher com a ânsia incontida do casamento. Amou um vizinho e o vizinho morreu. Amou um parente e o parente se casou com outra mulher. Amou mais dois homens, mais quatro, mais cinco. Todos lhe fugiram das mãos. Um dia, inesperadamente, por uma sucessão de equívocos, viu-se, sem o mais pequenino amor, casada com um homem desconhecido. E, minutos depois do enlace, ela, encarando a sua situação, pergunta a si própria:  Que é que eu vou fazer deste homem?

Na manhã de 15 de julho, a manhã seguinte à do dia da minha eleição, refletindo sobre o capricho do destino que me acabava de eleger para uma Cadeira afastada de minhas cogitações, perguntei gravemente a mim mesmo:  Que é que vou fazer de Ramiz Galvão?

Eu não conhecia meu antecessor. Conhecia-o, apenas, de pouquíssimos encontros e de pouquíssimas palavras.

Por uma dessas fatalidades curiosíssimas do coração, nós todos que concorremos à Academia disputamos, com ardor, a Cadeira dos amigos, do mais dileto amigo do nosso peito. Olegário Mariano lutou repetidamente para sentar-se na Poltrona de Mário de Alencar, uma das suas maiores afeições no mundo. Pereira da Silva substituiu Luís Carlos, seu irmão espiritual. Múcio Leão, queridíssimo de João Ribeiro, bateu-se nobremente para lhe suceder. Oliveira Viana, da afetividade de Alberto de Oliveira, é seu substituto na Cadeira 8. Na Cadeira de Paulo Setúbal quem está é Cassiano Ricardo, amigo querido do autor do Confiteor. Debalde tudo fiz para suceder a Medeiros e Albuquerque, meu maior amigo. Ao amigo que morreu, a mais culminante homenagem que se lhe pode fazer é a homenagem do elogio nesta atmosfera de imortalidade.

Não me despertava interesse algum o homem a quem eu sucedia. Não o estimava com o coração nem tão-pouco com o espírito. Não lhe conhecia o espírito, nem também o coração. Para dizer verdade, nunca lhe havia lido uma linha sequer. O que dele sabia era muito pouco: que pertencia à Academia de Letras e ao Instituto Histórico e que havia sido preceptor dos príncipes. Nada mais. E foi com bocejos de indiferença e de preguiça que lhe comecei a estudar a figura. E hoje não sei exprimir a encantada surpresa com que ela, pouco a pouco, se me foi avultando aos olhos, alta, ereta, senhoril e luminosa.

O interesse pelo vulto de Ramiz surgiu-me à proporção que eu me integrava nas particularidades que envolvem a Cadeira em que ele se sentou.

A Cadeira 32 é uma das mais curiosas desta Casa. É a cadeira de longevos. O patrono é Araújo Porto-Alegre que só se resolveu a sair do mundo depois de completar 73 anos. O fundador é Carlos de Laet que, somente aos oitenta, arrumou a bagagem para a transmigração do além. O segundo ocupante foi Ramiz Galvão, que só se decidiu a sair deste planeta depois de completar 92. O atual detentor sou eu, que não tenho vontade nenhuma de me despachar tão cedo. E, se nada ocorrer para perturbar a gradação crescente da longevidade que se vem verificando de ocupante para ocupante, nem aos cem anos me aproximarei do guichê da morte para comprar a passagem para outro mundo.

Porto-alegre e Carlos de Laet

A trindade componente da Cadeira que a sorte me entregou é realmente interessante. São três figuras de coloridos dessemelhantes, entrechocando-se pela diversidade dos feitios. Porto-Alegre é a inquietação com as variedades dos pendores artísticos; Laet, com a ironia, é a gota de veneno; Ramiz Galvão é o equilíbrio produzido pela erudição e pela operosidade.

Cada um deles é um vulto sedutor. Para cada um deles o destino armou um cenário próprio, traçou um papel diferente no espetáculo espiritual do País. E, caso curioso, os três pobres, os três, cultos, os três, professores.

Porto-Alegre devia ter sido o menos feliz dos três. Deram-lhe os maus fados o dom de ser pioneiro de idéias artísticas, mas não se lembraram de que o mandavam ao mundo numa época remota em que coisas de arte, no Brasil, apenas começavam os primeiros balbucios.

E a vida que ele vive é a luta cruel do pão, flagelado pela fome da beleza artística, insatisfeito, angustiado, ora de pincel na mão, transformado em pintor, ora arquiteto, cronista, jornalista, músico, teatrólogo, sendo tudo ao mesmo tempo, e não podendo, por ser tudo, alcançar em nada a perfeição.

Talvez ninguém, no Brasil, tivesse tido tão vivas predisposições para vanguardeiro. Não fez senão caminhadas para o futuro. Ângelo Guido achou-lhe o traço fundamental: “Foi, acima de tudo, um espírito que teve a percepção dos novos rumos que deveria seguir a mentalidade nacional.”

Na Literatura pertenceu à falange que libertou as Letras pátrias das Letras européias. Os primeiros carinhos literários pelo índio, pelo negro e pelo folclore vieram de sua pena.

Na Pintura clamou pela execução dos panoramas brasílicos, condenando a imitação das telas da Europa. Primeiro que qualquer outro, exigiu que no Brasil houvesse pintores em vez de copistas.

No Teatro, ao mesmo tempo que Martins Pena e talvez um pouco antes, fundou a comédia nacional, levando para a ribalta as facetas graves e as facetas cômicas dos nossos costumes.

Para triunfar em qualquer arte, é preciso ter o diabo no corpo. (A frase, se não me engano, é de Voltaire.)

A despeito do ardor religioso, daquele catolicismo badalante e até mesmo agressivo que conservou até morrer, Laet teve, como ninguém neste País, um gosto e um jeito infinitos para ser estalajadeiro do diabo. No bico de sua pena viviam regaladamente não só as entidades gaiatas como as divindades infernais: os Ariéis, os Arlequins, os sacis-pererês, os Malasartes, os Mefistófeles e os Belzebus.

Não se registra nas Letras nacionais escritor mais malicioso. Ao mesmo tempo, porém, não se encontra em páginas brasileiras deleite maior que o fino deleite do seu estilo e do seu humorismo – estilo harmonioso, translúcido, volátil, ático na simplicidade e clássico na limpeza vernácula –, humorismo de juvenilidade de estudantina, de vestimenta fidalga e de assobios de Gavroche, que pula aqui, catuca ali, piparoteia acolá; humorismo que belisca, que morde, que alfineta, que ferroa, que cintila, que esfuzia.

A figura de Ramiz Galvão

Ramiz Galvão é figura inteiramente diversa de qualquer dos dois. Nele os contrastes e as singularidades saltam a todo instante.

Foi preceptor de príncipes e preceptor de meninos desvalidos.

Começou a existência por adiantamento, terminou-a com atraso: foi precocidade incrível de inteligência, tardo, muito tardo no morrer.

Para quem lhe começa a estudar a vida é realmente a precocidade o primeiro espanto. Aos dezenove anos publica o primeiro livro – O Púlpito no Brasil. Aos dezenove anos não somos nada – apenas começamos a aprender. Ele está de mentalidade inteiramente formada. Naquela idade verde dá o máximo: O Púlpito no Brasil é a sua maior obra.

Nunca se viu ninguém completar tão cedo uma formação mental. E tão acabada é essa formação que aos trinta anos, aos quarenta, aos cinqüenta, aos setenta, aos oitenta, aos 92, quando morreu, Ramiz Galvão é exatamente a mesma criatura dos dezenove.

O homem ilustre não deve viver longamente, já se tem dito isso muitas vezes. Pois, apesar de ter sido repetido, é verdadeiro. Até a morte tem a sua oportunidade. Até a morte deve escolher o momento em que não se torne visita incômoda.

Até a morte não se deve fazer esperada, até ela não deve passar da hora marcada pelo dono da casa.

Não sei se os homens ilustres estão de acordo em morrer cedo; sei, porém, que depois de concluída a obra, eles não devem ficar na vida.

Mas os homens, no mundo, nem sempre morrem quando querem, porque nem sempre têm tempo para morrer.

A crônica dos Jesuítas narra aquele curioso episódio do padre Salvador Rodrigues que, alquebrado, velho, doentíssimo, não morria porque os serviços eram tantos que o padre Manuel da Nóbrega não lhe dava licença para despedir-se da vida.

Poucos homens no Brasil tiveram a operosidade de Ramiz Galvão. Trabalhou desde menino até minutos antes de fechar para sempre os olhos.

A morte gosta de encontrar a gente com as malas prontas para a grande viagem. O trabalho não deixava Ramiz Galvão preparar as malas. Trabalhou tanto que lhe foi difícil arranjar uma oportunidade para morrer.

E esse homem que tanto viveu e tanto trabalhou não pôde realizar obra de vulto. O que ele escreveu no campo estritamente literário é quase nada.

Não teve tempo de fazer obra grande e grande obra. Energia intelectual, cultura, entusiasmo, colocou-os sempre ao serviço de obras subterrâneas, das tais que tudo levam de nós, as forças, a paciência, a erudição, e nem sequer nos deixam o nome. Os grandes labores, dedicou-os ao Instituto Histórico e à Biblioteca Nacional. São obras de alicerce e o alicerce, com toda a sua solidez, teve sempre a triste sorte da agulha do apólogo de Machado de Assis, que tanto trabalha e tanto se fatiga para que faça figura a linha que nada fez.

Esse homem que viveu tão longos anos e não descansou um dia ao menos, morreu sem ter um teto próprio. As posições, muitas delas fascinadoras e deslumbrantes, disputaram-lhe a operosidade. Professor de estabelecimentos secundário e superior, diretor de biblioteca, duas vezes diretor da instrução pública, aio de príncipes, o único dinheiro que conseguiu juntar, durante 92 anos de existência, foram dez contos de réis. Dividamos isso pelo número de anos que viveu, e teremos a pequenice de 108 mil e tantos réis por ano.

O que ele viu na vida

Em derredor do vulto de Ramiz Galvão tudo é curiosidade. Só o que ele viu, através de quase um século, é um cosmorama deslumbrante. Quando nasceu, o mundo era escuro, bolorento, desinteressante. Assistiu à elaboração vertiginosa de todo o progresso moderno. Viu, surpreendido, as mais distantes vozes aproximarem-se pelos fios do telefone. Viu o motor de explosão resolver os primeiros impossíveis. Viu as primeiras lâmpadas elétricas darem claridade solar às casas e às cidades cobertas de sombra. Viu o Raio X iniciar o desvendamento de mistérios. Viu os ensaios da radiotelegrafia para aproximar os continentes.

Acompanhou tudo o que a humanidade, nestes cem anos maravilhosos, fez de humano e de sinistro, de salutar e de letífero. Assistiu à criação da antissepsia, ao nascimento das descobertas de Pasteur, da transfusão do sangue, do combate ao estegomia, como assistiu ao surgimento da metralhadora, do submarino, dos cruzadores, dos gases asfixiantes, do tanque e do torpedo automático.

Todas as audácias que o engenho humano desvendou, desde a segunda metade do século XIX, são contemporâneas ou da sua meninice, ou da sua mocidade, ou da sua madureza, ou da sua senectude.

Testemunhou o aparecimento do gramofone, da máquina de escrever, da máquina de calcular, da liquefação do ar, do hidrogênio e do oxigênio, do cimento armado, do arranha-céu e da geladeira elétrica.

Pelos olhos de nenhum outro dos nossos escritores passou tanta convulsão política, tanta metamorfose social, tanta inovação artística.

Ouviu, em 1870, o troar dos canhões em Sedan; em 1914 presenciou, com a Grande Guerra, a maior das hecatombes do Universo. Abre os olhos com o sufrágio universal na França e fecha-os com o totalitarismo de Stalin, de Hitler e de Mussolini. Assusta-se ante a carnificina da Guerra de Secessão e testemunha deslumbradamente os fulgores pacíficos do nosso 13 de Maio. Viu nascer o Parnasianismo de Lecomte de Lisle, de Coppée, de Bilac, de Alberto e de Raimundo, como testemunhou a aurora e o crepúsculo do Simbolismo de Verlaine, de Mallarmé e de Cruz e Sousa. Começou a fazer versos no apogeu do Romantismo e emudeceu a lira em plena extravagância dos futuristas.

Acompanhou a rotação universal da democracia. Era menino quando ela se alou, ascendeu e chegou ao pino; era velho quando ela ruiu e se esboroou ao rodopio das procelas extremistas.

No Brasil viu tudo. Testemunhou, uma por uma, as transformações profundas do País. Conheceu o Rio de Janeiro iluminado a azeite, iluminado a gás e delirantemente iluminado a luz elétrica. Andou no desconforto das gôndolas, aos balanços e aos tombos pelas vielas calçadas a pedra bruta até mil oitocentos e sessenta e tantos, e andou depois nas almofadas das limusines modernas, deslizando regaladamente pelas ruas asfaltadas.

Conheceu o Campo de Santana ainda lavadouro público. Tirou do bolso moedas de vintém para colocar na bandeja do “irmão das almas”, acompanhou nosso pai às casas dos agonizantes.

Em pleno calor de janeiro, vestiu camisa de colarinho duro, sobrecasaca e cartola pretas.

Fez, com certeza, acrósticos, que era moda fazê-los antigamente. Recitou nas salas ao som da Dalila, tocada ao piano. Decerto tomou rapé, porque todo mundo o tomava entre a gente de qualidade do seu tempo.

Sentou-se junto às caixas de música para saborear trechos de óperas velhíssimas. Sentou-se depois em frente aos rádios de ondas curtas para ouvir as regiões mais distantes do planeta.

A meninice e a adolescência decorreram-lhe na época em que o supremo requinte era assistir ao fogo de vista nas festas das igrejas. Nos seus últimos anos contemplou, nas salas elegantes dos cinemas, as fitas faladas e cantadas de Greta Garbo, Robert Taylor, Jeanette MacDonald, Nelson Edy.

É do tempo em que os homens, nos lazeres de casa, vestiam chambre em vez de pijama. É da quadra pachorrenta em que as criaturas quando tinham pressa tomavam tílburis. Quando se entendeu, os transatlânticos, que se gabavam de magníficos e de velozes, eram de rodas, tinham oitocentas toneladas e gastavam 35 a quarenta dias da Europa ao Rio.

Gostador incorrigível de teatro ouviu a velhada toda: o remoto João Caetano, o Vasques, a Cinira, o Dias Braga, a Apolônia, a Delorme, a Pepa, a Lucinda e teve ainda vida para ouvir o Fróes, a Araci Cortes, o Procópio, a Dulcina.

E a tudo isso, senhores, ele assistiu com aquele ar de circunspeção que fora o seu traço marcante, ou melhor, o traço marcante dos homens de seu tempo. Outrora os homens eram graves e circunspetos. E não sabiam senão ser circunspetos e graves. Não riam, não sabiam rir.

Ramiz Galvão era bem um índice da sua época. Sereno, prudente, recatado e de boas maneiras, nunca se dispôs a encarar o lado risonho da vida, porque, por educação e por pendores, só se acostumara a ver da vida o lado sério.

Corri, há pouco, à casa dos seus parentes próximos, para colher uma anedota qualquer que aqui pudesse revelar uma feição xistosa do seu feitio.

Não havia. Ramiz Galvão não tinha uma anedota.

Ninguém, na sua família, sabia de um gracejo, de um epigrama, de uma sátira, de uma pilhéria que lhe tivessem saído da boca durante quase um século de existência. Foi sempre aquele mesmo homem discreto, reservado, medido e comedido.

A carta que Medeiros e Albuquerque escreveu à Academia

E só agora, depois que lhe entrei na intimidade, é que compreendo e explico um episódio que se passou entre nós dois, meses após a morte de Medeiros e Albuquerque.

Eu fui criança no Maranhão; rapaz na Faculdade do Recife; em casa de Medeiros e Albuquerque me fiz homem.

Medeiros foi o mais doce, o mais carinhoso, o maior dos meus amigos. Preocupava-o meu destino como o destino de um filho.

O seu grande desejo, desejo que ele não escondia de ninguém, era ver-me aqui na Academia, sentado entre vós. No começo sonhava receber-me com um discurso ardente. Mais tarde, à proporção que a morte se lhe aproximava, meteu-se-lhe em cabeça que a sua Cadeira devia passar às minhas mãos.

Ninguém, como Medeiros e Albuquerque, teve uma alma tão festiva e tão transbordante. Aos seus olhos a vida era uma paisagem de sol, com brisas frescas agitando galhos, céu azul, rendas de nuvens, águas correntes e pássaros cantando. Mas, nessa paisagem, que poderia servir para uma estrofe lírica ou para uma página romântica, ele, nos galhos das árvores, soltava de propósito toda uma tribo de sagüis, micos e caxinguelês para alegrá-la.

A vida para ele era uma brincadeira. Aquele eterno bom humor, aquela predisposição eterna para pilheriar com os assuntos graves, o estilo irrequieto, e curiosidade perfurante e insatisfeita, eram, com certeza, a farândula de símios que lhe saltavam no temperamento.

Tudo que fez teve um traço vivo de originalidade, mas de uma originalidade vestida de travessura.

Para conseguir a minha eleição, Medeiros imaginou uma carta póstuma à Academia. Na carta ele fazia esta coisa singularíssima: advogava o direito de votar depois de morto. Pedia que a Academia discutisse esse direito em plenário. Se o direito lhe fosse reconhecido, que se aproveitassem os votos que enviava num envelope fechado. Mas, se os acadêmicos decidissem pela recusa, pedia que o envelope fosse aberto e lido em voz alta o nome que ele encerrava. O nome que ele encerrava (sabiam os íntimos) era o meu.

A carta era uma espécie de cavalo de Tróia deixada à porta da Academia. No seu bojo, para apanhar desprevenidos os acadêmicos, havia a astúcia e o ardil de moldes ulissianos.

Medeiros era ateu. Sabia que, mesmo para as almas forradas de materialidade, o sobrenatural tem imenso prestígio. Uma voz ressoando nas paragens eternas abala sempre os espíritos destas paragens terrenas. Ele imaginava que vós, senhores acadêmicos, tivésseis medo de alma do outro mundo. E imaginou que seu pedido, vindo do fundo da sepultura, seria um pedido para abalar consciências.

Há quatro anos, quando Medeiros morreu, o presidente da Academia era Ramiz Galvão. Na mesma noite da morte, Cláudio de Sousa, como enviado da família do morto, foi à casa de Ramiz levar-lhe a carta. Ele recebeu-a sem um comentário, sem uma palavra.

Passaram-se os meses e a carta não foi trazida ao conhecimento da Academia como rogara o signatário.

A família de Medeiros inquieta-se e corre à casa de Ramiz para pedir que seja lido em sessão acadêmica o documento póstumo.

Um desastre, um grande desastre. A leitura não pôde ser feita.

Ramiz havia rasgado a carta.

No momento tive o mais pungente dos desesperos. Aquilo era para mim o elemento decisivo da minha eleição. E eu o perdia.

Hoje compreendo, explico tudo.

É preciso remontar à época de austeridade em que Ramiz Galvão formou o seu espírito. Para ele a carta de Medeiros e Albuquerque era uma pilhéria. Defunto não pode votar. A carta, portanto, não valia nada.

Qualquer homem do século XX, com o espírito arejado pela mentalidade moderna do século, veria no episódio uma curiosidade fascinadora para ser incorporada à história da Academia.

Ele não podia ver. Era um homem do século passado, era um homem do seu tempo, e, no seu tempo, só se via a face grave da vida. Para o seu espírito, a Academia era uma entidade augusta, imponente, venerável que não comportava brincadeiras.

O pupilo da natureza

A Natureza, meus senhores, tem os seus pupilos. Ao formá-los, forma-os pelos moldes mais perfeitos e com as mais peregrinas substâncias.

A Ramiz Galvão ela não se satisfez em dar-lhe as tendências da sabedoria. Cuidou-lhe também do físico. Fê-lo aquela maravilhosa máquina que resistiu quase um século, funcionando imperturbavelmente e que, só nas vizinhanças da morte, necessitou de conserto. Morreu aprumado, alinhado, sólido e limpo. Chegou aos 92 anos sem reumatismo, sem dentadura postiça, sem barriga e sem careca. A Criação deu-lhe tudo: inteligência, atmosfera para desenvolvê-la, maneiras delicadas, porte fidalgo, estatura.

Estatura, senhores! Dos homens exige-se estatura como dos cartazes se exigem cores gritantes. É preciso ser grande, ter vulto, encher os olhos! Ninguém crê nas coisas pequeninas; as coisas pequeninas ninguém leva a sério. Em regatos não cabem transatlânticos. A gota não tem prestígio nem mesmo quando é de veneno. O pinguinho d’água nada pode valer desde que existe a vastidão do mar. A homeopatia, que poderia ser a terapêutica universal, vive por aí negada apenas porque é aplicada em gotinhas.

Triste de quem é pequenino neste vale de lágrimas! Tudo lhe dá para trás. Quando não é uma coisa é outra. Se ele fica bem no fardão, o fardão fica muito mal nele!

A Natureza velou pela figura de Ramiz Galvão até em lhe escolher a oportunidade para o colocar no planeta.

A felicidade não é nascer Príncipe de Gales; a felicidade é ser hábil na escolha de uma grande época para nascer.

Platão rendia graças a Deus por ter nascido grego, e não bárbaro; livre, e não escravo; homem, e não mulher; e, acima de tudo, por ter sido contemporâneo de Sócrates.

No Brasil, quem abriu os olhos no reinado de Pedro II teve a ventura de ser contemporâneo de uma grande época. O Segundo Reinado é o período máximo da História nacional.

O domínio de Pedro I é amargo. A Regência tem cunho de tragédia. O governo de Pedro II é a tranqüilidade, a preparação da ordem, o remanso, o equilíbrio, como lhe chamou Euclides da Cunha.

O Primeiro Reinado é a luta da independência que, de fato, só se conclui com o 7 de Abril. A Regência é o caldeamento da nacionalidade, sanguinolento como todos os caldeamentos de povos. O Segundo Reinado não é apenas a organização da vida nacional, é também sua floração radiosa.

O Segundo Reinado

Há quem afirme por aí que o cetro de Pedro II caiu por inércia. É possível que, de inércia, tenham morrido as instituições monárquicas. A Monarquia, de fato, cuidou muito pouco de si própria. Mas cuidou profundamente do País.

Quase tudo que temos de grande, de belo e de sólido é obra imperial.

É no Segundo Reinado que se lançam os fundamentos de tudo que uma nação constrói de eterno para a eternidade de sua existência.

É no Segundo Reinado que se forja o nosso aparelhamento econômico, que a sociedade brasileira se organiza, que começamos, de fato, a ter vida intelectual, que, de fato, a indústria viceja, que, de fato, o comércio se expande e que a Arte alça as asas. A imprensa firma-se em sólidos alicerces; o Teatro com Porto-Alegre, Martins Pena, Alencar e França Júnior adquire coloração nacional; organiza-se a rede ferroviária; estabelecem-se as redes fluviais e marítimas; estende-se a teia telegráfica. Cria-se a riqueza agrícola, a riqueza pecuária, até mesmo a riqueza moral aos olhos atentos desse monarca de alta dignidade e de alto pundonor que foi Pedro II.

Em 1846, quando Ramiz Galvão nasceu, o Brasil independente contava a idade de 24 anos. Estava em plena juventude. E, queimado pelos fogos da mocidade, caminhava enamoradamente para a conquista de um lugar ao sol. Já se havia restaurado das feridas cruentas do período regencial e, cheio de sangue novo e de vontade nova, marchava de peito aberto e cabeça erguida, como os moços marchavam pela estrada do sonho.

E em tudo, dia a dia, ia-se produzindo a transformação. O Rio deixava de ser aquela aldeia grande do tempo da transmigração da Corte, do tempo de Pedro I e mesmo da Regência. As carruagens substituíam as cadeirinhas. Os defuntos passavam a ser enterrados nos cemitérios e não nas igrejas como antigamente. As senhoras já vinham à rua fazer compras, rompendo contra o costume do enclausuramento que até então se usava. A municipalidade já mandava varrer e até irrigar as ruas. A água encanada já ia jorrando na maioria das casas. Mauá substituía os candeeiros de azeite pelos lampiões de gás. Os paralelepípedos já apareciam calçando as ruas. As máquinas de costura davam início à invasão dos lares.

Quando Ramiz Galvão, em 1852, vem para o Rio estudar primeiras letras, o Brasil está cheio de coisas novas.

Já existe vida social, elegância, gosto pela Arte. Há também preocupação de imitar o que a Europa tem de fino e de galante.

Agora já não são as festas religiosas as únicas festas do Rio. Os salões aristocráticos que dão recepções à moda européia contam-se às dúzias. Há o do Marquês de Abrantes, cheio da beleza e da graça de D. Maria Carolina, a jovem e bela marquesa. Há o do Barão de Itamarati, o da Condessa de Sarapuí, o do Visconde de Sepetiba, do Rocha Viana, do Barão de Meriti, tão fulgurante que José de Alencar o registra numa comédia. Dança-se em toda a parte. Já não é mais crime namorar. Até o Imperador Pedro II, ainda na deliciosa mocidade da casa dos vinte, paga o seu tributo a Cupido: namora a Mariquinhas Guedes, namora a Navarro, e o seu pecadilho que, em outros tempos, provocaria a zoada que provocaram os amores de Pedro I e da Marquesa de Santos, é visto agora com certa complacência pela sociedade modernizada.

A cidade enche-se de pianos. Quatro teatros funcionam regularmente. João Caetano está na culminação da sua arte. Pagam-se 50$000 por um camarote de segunda ordem para ouvir Talberg.

E na escola pública Custódio Mafra e depois no Externato da Sociedade Amantes da Instrução, e mais tarde no Colégio Pedro II e na Faculdade de Medicina, Ramiz assiste à ascensão do Brasil.

Estira-se a primeira linha telegráfica. Inaugura-se a primeira estrada de ferro. Trilhos galgam a Serra do Mar, galgam o planalto, para galgar São Paulo. Os homens de fortuna constroem palácios.

Todo o ar do Brasil está tocado pela vibração evolutiva. A Imprensa, sem o descabelamento plebeu do Primeiro Império e da Regência, ascende para os temas elevados. A Arte deixa de ser decalque, para reproduzir a alma nacional. A província do Rio de Janeiro chega ao fastígio da riqueza. Progride São Paulo, progride a Bahia, progride Pernambuco. O Maranhão enche o País com o seu imenso clarão mental. É Gonçalves Dias, é João Lisboa, é Gomes de Souza, é Sotero dos Reis, Cândido Mendes, Franco de Sá, César Marques, Henriques Leal, toda uma constelação de homens gloriosos, surgidos numa só quadra como se a velha província nortista quisesse reproduzir ao vivo a fulgência da Atenas de Péricles.

No País inteiro a inteligência irradia e floresce. Ressoa o estro de Álvares de Azevedo, de Casimiro de Abreu, de Castro Alves. O indianismo de Gonçalves Dias e de Alencar já surgiu dominadoramente. Macedo já escreveu A Moreninha. Bernardo Guimarães já publicou os seus primeiros romances. Varnhagen já revelou as suas inclinações históricas. O gênio musical de Carlos Gomes está raiando com uma rutilação que deslumbra e espanta.

A quadra de 70

Os deuses protetores não se descuidam um só instante de Ramiz Galvão. Não é unicamente na moldura do berço que eles empregam os seus melhores cuidados. Agora os seus cuidados são para a moldura da época em que o pupilo vai viver.

Em 1868 Ramiz conclui o curso de Medicina. Em 70 está em plena operosidade, ganhando o pão para viver.

O brasileiro que, em 70, se fez homem, recebeu dos deuses uma grande fortuna.

É a quadra de ouro do passado nacional. A Guerra do Paraguai havia terminado. O País, como que sentindo a necessidade de tonificar-se do sacrifício de seis anos de sangue, atirava os órgãos na vontade consciente de rejuvenescer.

E da transformação que se opera nas forças vitais da nacionalidade não há exemplo em nenhuma outra fase da História pátria. Parece que a varinha de condão de alguma fada está tocando a alma brasileira. Seivas novas correm no sangue nacional.

É o período das aspirações audaciosas, da vertigem das realizações. Executa-se a reorganização judiciária, a reforma do Código do Processo, do Código Comercial, do Penal e trata-se da reforma do Civil. Questões fascinadoras como a liberdade de cultos e de consciência, o casamento civil, a secularização dos cemitérios, surgem à discussão. Criam-se organizações científicas, escolas agrícolas, bancos, sociedades de crédito. A cultura do algodão, da cana-de-açúcar, do fumo, do café, do mate e da borracha adquire um impulso que até então não tivera.

Há um frêmito novo no ar. As tropas que voltam do Paraguai voltam vibrantes de patriotismo, já trazendo nas fardas o germe da República que se vai proclamar em 89. Saldanha Marinho lança o Manifesto Republicano. São Paulo alcança a hegemonia econômica do País. Carlos Gomes, na Itália, lança O Guarani à admiração do mundo.

De norte a sul a mesma febre de renovação. No campo os bangüês ronceiros são substituídos pelas usinas. Vitórias, aranhas, carros de luxo rodam nas ruas do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Recife e do Salvador.

No Rio, as damas de alto coturno passam a vestir-se de Paris. Os homens de cultura dão-se ao luxo de ler a Revista dos Dois Mundos. Os salões do Cassino Fluminense, do Campestre, do Cassino da Floresta têm um requinte de elegância que não se conhecia outrora. Inaugura-se o Teatro Lírico. Os clubes carnavalescos arrebatam a cidade com a féerie dos carros alegóricos. Glaziou transforma o pantanal do Campo de Santana no parque frondejante que ainda hoje nos encanta os olhos. As celebridades estrangeiras do Teatro vencem o pavor da febre amarela e se arriscam à longa viagem, correndo ao encontro do nosso público.

Adquirindo o impulso inicial, o dínamo evolutivo do País dia a dia se vai acelerando. Em 74 inaugura-se o telégrafo submarino ligando Pernambuco à Europa, e toda a costa brasileira pode falar com o outro lado do Atlântico, porque está ligada a Pernambuco. No mesmo ano quase todas as capitais da província têm iluminação a gás, bondes, água, limpeza pública e ruas calçadas. Em 75 há, em tráfego, 22 estradas de ferro, com perto de 1.660 quilômetros de extensão. Em construção 1.300 quilômetros. E estão em estudos nada menos de 6.000 quilômetros de trilhos. Linhas regulares de paquetes existem 22, e quase todas nacionais.

Em 76 os fios telegráficos têm mais de 6.200 quilômetros de comprimento.

E ao lado disso o florescimento intelectual. Machado de Assis está atingindo ao meio-dia esplendente da sua arte. Taunay publica A Retirada da Laguna e Inocência. Vítor Meireles pincela os seus primeiros quadros. As peças de Macedo dominam os palcos. Rui Barbosa, na mais verde mocidade, vai revelando os seus primeiros clarões. No Recife, Tobias Barreto produz uma revolução de pensamentos: com o sopro novo da cultura germânica espana o bolor da velha Faculdade, demolindo o direito natural e abatendo as muralhas carcomidas da metafísica jurídica.

A valorização do professor

O panorama era encantador. O País parecia estar na plenitude de suas galas físicas, morais e intelectuais.

Mas não era verdade. Todo o viço mental daquela grande época não tinha solidez. Era tudo à flor da pele. O que havia de real era isto: o País não sabia ler. Cultura, qualquer que ela fosse, existia; mas existia apenas numa pequena elite. O povo era analfabeto.

É nessa nossa atmosfera singular que Ramiz Galvão, apenas saído dos bancos acadêmicos, vai desempenhar o seu alto papel. Ia ser aquilo de que mais a nação necessitava – o professor.

A história da instrução pública, no Brasil, é todo um esforço ansioso, não em procura de quem queira aprender, mas em procura de quem saiba ensinar.

Quando, após o grito do Ipiranga, recebemos o País das mãos da metrópole, estava ele ainda na idade lítica da alfabetização. Não culpemos Portugal por isso: ele também não tinha instrução popular.

Desde o alvorecer da nacionalidade que houve sempre em nós tendências incontidas para a ostentação. A mania dos doutores tem a idade do País. E devia ter sido por influência dessa mania que iniciamos às avessas a nossa organização educativa. Em vez de começarmos pondo a cartilha nas mãos das crianças, começamos querendo universidades e instituindo academias.

E o esquema que se nos apresenta aos olhos é de surpreendente curiosidade pela gradação inversa: o Primeiro Reinado deu-nos o ensino superior; o Segundo Reinado o ensino secundário; o ensino primário só a República conseguiu realizar.

A história da instrução pública no Brasil é, mais do que tudo, a caça ao professor.

E ela nos desvenda ainda uma outra singularidade interessantíssima: foi-nos mais fácil o mais difícil.

Quando, em 1827, começamos a instrução superior instituindo os cursos jurídicos, não houve dificuldade em formar o professorado. Quem no-lo fornecia era Coimbra e até mais do que necessitávamos. O País estava cheio de brasileiros formados na velha universidade portuguesa.

Mas, ao chegar o momento de organizar o ensino secundário, surgiram os embaraços. Não se podia formar o corpo docente por falta de criaturas idôneas para o compor. Dificuldade maior ainda se esboçou quando pretendemos a organização do curso das primeiras letras.

E a luta que se desenha no Primeiro e no Segundo Reinado para formar a cultura do País é áspera e duradoura. E pode dizer-se, desorientada.

Ora se voltam os olhos para os moldes lancastrianos, como foram tentados durante mais de cinco lustros; ora se procura estimular a profissão do professor, como pretendeu fazer o projeto de lei de 1827; ora desastradamente se entrega às províncias o encargo de instruir o povo; ora se faz, para só ficar no papel, a bela reforma de 1854.

Mas nada se consegue. Faltava o elemento fundamental – o homem que soubesse ensinar, e para fabricar professores até hoje não se inventou nenhuma outra máquina além do estudo, o tempo, a vocação e a prática.

O patrimônio educativo que o Primeiro Reinado e a Regência entregaram a Pedro II era desanimador. Plenas trevas. O ensino se fazia sem ordem, sem rota, sem moralidade. Formou-se, de norte a sul, uma verdadeira indústria de exames. Quem aprendia, aprendia inutilidades, quem ensinava quase sempre não sabia ensinar. De umas disciplinas se exigia muito, de outras nada se exigia.

A primeira lição o Brasil recebera-a do jesuíta. Já no nosso primeiro século, em plena selva, à gente selvagem se dão aulas de gramática latina. O latim, por esse vício de origem, infiltrou-se no gosto nacional.

Ali por volta de mil oitocentos e tantos a língua de Cícero era uma verdadeira epidemia. Não se sabia nada, mas sabia-se latim. Discurso que se prezava estava todo salpicado de frases latinas como hoje, os que se prezam, têm tiradas em francês. Havia uma verdadeira mania de latinismo. Na tribuna, nos jornais, até mesmo nas simples palestras, não só se citavam Virgílio, Horácio, Plauto, etc., como era chic aludir-se a esta ou àquela passagem da história romana.

A doença era tão grave que até anúncios se faziam em latim. Escragnolle Doria, nas suas interessantíssimas Cousas do Passado, conta-nos esta curiosidade:

Em 1858 o leiloeiro Manuel de Oliveira, anunciando o leilão de objetos do ministro inglês, fê-lo em língua latina. E claudicantemente:

Splendida ornamenta auctionari, vehicula nova Londoni facta sum, vasa, crystalina vera, argenta legis, lychins magestatis patroli Londins et altera.

Já com os cursos superiores organizados e em franco funcionamento, o Brasil continuava no caos da instrução secundária.

II

Havia no País um homem que se não conformava com isso. Era Pedro.

O imperador foi realmente um homem fora da bitola normal dos monarcas. Amava sinceramente o Brasil. Velava-lhe carinhosamente pela sorte. Queria-o em situação pinacular de cultura e de esplendor. E tudo fazia para extinguir a miséria intelectual do povo. As suas falas do trono são exortações eloqüentes em favor da instrução. Visitava escolas, gastava dinheiro do seu bolso para estimular o ensino, assistia a concursos, mandava buscar em países estrangeiros professores que orientassem os nossos. José Feliciano de Castilho aqui esteve a convite dele.

Para D. Pedro, o Império não podia deixar de ter um estabelecimento padrão que fosse o tipo tutelar do ensino secundário. E os melhores esforços se empregam na composição cultural do Colégio de Pedro II, quer na seleção do professorado, quer na moralidade do curso. O Pedro II fica sendo a mais bela expressão de cultura, o símbolo do saber humanístico da nossa gente, o máximo que a nação podia realizar no ramo secundário.

Tudo que há de mais culto lá está: os professores não são apenas os melhores que se podem arranjar, são tão bons como os professores dos estabelecimentos congêneres dos países cultos; os alunos que de lá saem revelam-se os homens de maior preparo do País.

A necessidade de fazer-se a educação do povo, a carência de um magistério à altura das necessidades, a impressão causada pela seleção do professorado do Colégio de Pedro II produziram a valorização do professor. Ser professor naquela época era uma honra excelsa. E tão grande era essa honra que nem o imperador a desdenhava. Quando, em 1870, se publicou o Manifesto Republicano, D. Pedro falando ao Marquês de São Vicente, chefe do gabinete, disse-lhe: “Se os brasileiros não me quiserem mais no trono, irei ser professor.”

Ramiz Galvão era um fruto do Colégio de Pedro II.

De lá saiu não unicamente como o aluno excepcional que se mostrou durante todo o curso, saiu com as raras virtudes de professor. E professor foi ele a vida toda.

E das inúmeras modalidades dos seus talentos foi essa a sua modalidade predominante. Sente-se, em tudo que fez, o homem da cátedra.

O homem das vitórias antecipadas

A maioria dos homens deixa-se vencer pela vida. A natureza fez Ramiz Galvão tão rijo de físico e de inteligência que, por muito tempo, teve forças para vencer a morte.

A sua vida é uma vertigem de vitórias, e de vitórias que chegam quase sempre antecipadas.

Nasce a 16 de junho de 1846 no município do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Aos cinco anos de idade já está na escola. Aos oito já conclui o curso primário. E de que maneira? Com a láurea de primeiro aluno do curso. Quem lhe entrega o prêmio é aquele histórico Miguel de Frias que, no lusco-fusco da madrugada de 7 de abril, recebeu de Pedro I o documento da abdicação. Seis anos depois, com aprovações distintas em todas as disciplinas, termina o curso do Colégio de Pedro II...

Havia corrido demais. Havia corrido tanto que ao sair do colégio não tinha idade para iniciar o curso superior. Só dois anos mais tarde, em 1863, atinge a idade exigida pela lei e matricula-se na Faculdade de Medicina.

Em 68 está formado. Curso brilhantíssimo; distinção em tudo. O seu nome já tem rebôo nos meios intelectuais: como estudante publicara O Púlpito no Brasil.

De 1868 a 70, no Pedro II, substitui dois dos seus antigos mestres nas cadeiras de Grego, Retórica, Poética e Literatura.

Aos 24 anos é diretor da Biblioteca Nacional. Aos 25; professor da Faculdade de Medicina. Aos 36 chega ao cimo da carreira – é preceptor dos filhos de Isabel.

Preceptor de príncipes deve ser uma situação fascinadora. Os homens cultos do Brasil, ao saberem, em 1882, da nobre investidura de Ramiz Galvão, deviam-no ter invejado profundamente.

No entanto, aquela investidura marcou o seu primeiro embaraço na existência.

As criaturas que nascem e vivem na colina, por mais honestas e mais bondosas, nunca podem imaginar o que são as dificuldades dos que nascem e vivem na planície.

A Pedro II não se podia negar nem honestidade nem bondade. Mas era monarca e filho de monarca. Não conhecia embaraços de dinheiro. Ao convidar Ramiz Galvão para aio dos netos, imaginou que, somando o ordenado da Biblioteca Nacional com o da Faculdade de Medicina, dava ao preceptor dos príncipes a folgada situação financeira em que o encontrara. Mal sabia que ia tornar atribulada uma bolsa pobre que até ali fora tranqüila.

Como diretor da Biblioteca, Ramiz Galvão morava no próprio edifício, com a família. Como aio dos meninos imperiais passava a pagar aluguel de casa. Como bibliotecário e professor de Medicina eram bem modestos os seus gastos. Como preceptor dos príncipes passou a ter a vida aparatosa que o cargo exigia, comparecendo com a esposa a tudo que era cerimônia oficial e festa do Paço. O cargo obrigava-o a ter casa no Rio e casa em Petrópolis. Obrigava-o ainda a assinar em seu nome e comumente em nome da esposa quantias escorchantes nas muitas subscrições de caridade feitas entre as pessoas da Corte. E o dinheiro que ganhava era pouquíssimo para essas coisas...

Os compromissos dia a dia cresciam, as dívidas se avolumavam vertiginosamente.

Quem está perto do sol deve receber melhor a influência do astro benéfico. Nem sempre. Às vezes quem a recebe primeiro é quem está longe.

O Paço não ajudava as crianças do seu serviço. Para dar uma idéia dos rigores no tempo do nosso segundo imperador, basta registrar este fato: para acompanhar os príncipes a Petrópolis o aio via-se obrigado a levar a família, mas só uma passagem de trem, uma única, lhe era fornecida.

A preceptoria dos príncipes, para Ramiz Galvão, foi o a que em linguagem do povo se costuma chamar um mau negócio.

As obras capitais

Entre inúmeras virtudes, costuma-se dar a Ramiz Galvão a virtude erudita de helenista.

Ele não precisa dessa qualidade para a glória do seu nome. Mesmo porque, na culta acepção do termo, Ramiz Galvão não foi um helenista.

Helenista foi Renan. Helenista foi Anatole France. Helenista é quem sabe a Grécia em toda a vastidão e em toda a variedade do espírito grego.

E pelo povo helênico ele não mostrou os ardores de uma paixão que se fizesse notável.

A Grécia legendária, a heróica e tempestuosa Grécia dos deuses, que Homero imortalizou na genialidade dos seus versos, essa ele não amou. A Grécia dos aedos, dos rapsodos, dos poemas elegíacos, do lirismo, enfim, a Grécia sonora e cantante, essa não lhe tocou a alma. A Grécia filosófica de que Sócrates, Pilatos e Aristóteles constituem a trindade fecunda, parece que não lhe interessou o espírito. A Grécia artística de Fídias, de Apeles, de Apolodoro, de Anacreonte, de Píndaro, de Sófocles, Aristófanes também não feriu a retina do seu entusiasmo. Também não teve entusiasmo nenhum pela Grécia guerreira de Maratona, de Salamina e de Platéia.

Nos seus livros quase não se encontra referência alguma às coisas gregas.

Da Grécia só uma modalidade interessou a sua inteligência – a língua. Devia ter sido o maior conhecedor da língua grega que existiu no Brasil.

Há um momento em que parece que a poesia helênica lhe preocupa o espírito. E quando traduz o Prometeu Acorrentado, de Ésquilo. Mas, mesmo aí, o que predomina é o filólogo. Sente-se que se quis mostrar capaz de vencer as dificuldades da língua grega.

A obra de Ramiz Galvão pode ser resumida em três grandes marcos: O Púlpito no Brasil, o Vocabulário Etimológico, Ortográfico e Prosódico das Palavras Portuguesas Derivadas da Língua Grega, e o Catálogo da Exposição da História e Geografia do Brasil.

Eu tenho, senhores, uma veneração espantada pelos sábios especialistas. Quando vejo um desses homens passar a existência inteira a estudar um inseto raro, uma planta quase desconhecida, uma civilização que o tempo soterrou, fico boquiaberto como diante do maravilhoso.

Só as criaturas de infinita capacidade de abnegação podem ter desses labores beneditinos.

Nós outros, que trabalhamos intelectualmente, trabalhamos para o rumor, para o cartaz, sonhando com o esplendor da glória e querendo o máximo desse esplendor.

Eles trabalham para o silêncio, quase que para a anonimia. O nosso trabalho anseia pelas louçanias da luz do sol. O deles é subterrâneo. Somos cigarras, de asas abertas no azul; eles são formigas, no fundo do buraco, acumulando. O que nos satisfaz é o aplauso da multidão. A eles, anacoretas do saber, satisfaz o louvor de dois ou três entendidos da especialidade.

Ramiz Galvão escreveu como cigarra, mas escreveu mais como formiga. Das obras feitas para o ruído das multidões, O Púlpito no Brasil é a maior. Há duas de relevo no gênero subterrâneo: o Vocabulário e o Catálogo.

Só quem tem olhos para as profundidades pode ver as obras das formigas. O povo conhece apenas as das cigarras. O Catálogo e o Vocabulário são quase desconhecidos.

Eu sou cigarra, senhores. Não sei aferir o trabalho de profundezas. Para uma formiga outra formiga. Para avaliar o tesouro de Ramiz Galvão, essa formiga de imensos tesouros que é Rodolfo Garcia. Definindo o Catálogo diz ele: “Foi o maior cometimento bibliográfico que se efetuou no País. É um monumento de incontestável valor, porque nele se relacionaram não só o que a biblioteca possuía, como ainda o que pertencia a outras instituições e a particulares.”

João Ribeiro, que conseguiu ser tudo – cigarra das mais sonoras e formiga das mais pacientes –, assim define o Vocabulário: “É um grande livro imorredouro, monumento levantado à pureza da nossa língua.”

Ramiz Galvão foi realmente uma figura excepcional no Brasil. Grande em tudo: na cátedra, na tribuna, no livro e na Cadeira que a minha pequenez vem ocupar.

Ninguém, neste imenso País, trabalhou mais do que ele. Velho, quase secular, era o mesmo trabalhador dos dezenove anos. Afrânio Peixoto definiu-o numa frase encantadora: “Soube tudo, só não soube envelhecer.”

“Durante meio século (é Miguel Couto quem afirma) encheu a sua Pátria das irradiações do seu gênio nos diversos departamentos do saber humano.”

A sua figura é insubstituível. Os versos de Pereira da Silva exprimem-na na sua grandeza:

Bem que merece que do sul a norte
O coração de todo brasileiro
Exclame num soluço verdadeiro
A dor de sua morte.

O acusado

Murmura-se de longe em longe, nas rodas maledicentes, uma certa acusação ao homem que venho substituir nesta Casa.

Acusam-no de ter abandonado a Monarquia na sua desgraça de 15 de novembro de 89. Deixou de ser monarquista, para aderir à República! Afirma-se. Abandonou os príncipes, de quem era aio! Abandonou o imperador, de quem era protegido!

Vamos por partes.

Em primeiro lugar é preciso indagar das crenças políticas de Ramiz Galvão. Era monarquista? Era republicano? Ou não era nada?

Quais foram os monarquistas do Brasil? Do Brasil e de toda a América?

As monarquias, senhores, nunca se puderam adaptar ao clima liberal do continente de Colombo.

A novidade não é minha, é de Joaquim Nabuco:

Ninguém procure justificar a nossa transformação republicana por motivos tirados das condições e conveniências do nosso País, mas simplesmente de estar o Brasil na América. Desse modo o observador brasileiro, para ter uma idéia exata da direção que levamos, é obrigado a estudar a marcha do continente, auscultar o murmúrio, a pulsação continental.

E conclui afirmando que o País não podia lutar “contra o irmão do continente, suspenso, ao que parece, no Capitólio de Washington”.

No Brasil não houve monarquistas.

Sem o senso da realeza não poderá existir convicção monárquica. E esse senso o Brasil nunca teve nem pôde ter, pela sua própria gênese histórica, pela elaboração inicial da nacionalidade.

Para todos os povos que passaram e para outros que ainda existem, o rei foi sempre uma entidade excepcional, a encarnação máxima do poder, da majestade e da magnificência, encarnação tão alta que, para alguns, adquiriu feição divina.

A realeza é a autoridade suprema. Mas tais foram as condições em que a índole nacional se forjou, que nunca houve no brasileiro a noção de suprema autoridade.

Desenrolemos diante dos olhos o quadro dos primeiros dias da conquista. A Natureza potente do Brasil era um sorvedouro. No bojo das caravelas, Portugal nos mandava de tudo: donatários, fidalgos, frades, magistrados, bandidos, aventureiros, piratas e calcetas. Com o imenso vigor da sua virgindade selvagem, a terra brasileira a todos nivelava. Eram as dificuldades as mesmas, para os grandes, como para os pequenos; os perigos iguais, para os fortes, como para os fracos. A flecha hostil do índio, o bote da serpente, o veneno dos insetos, a fúria das feras, o flagelo das inundações, a calamidade das secas não tinham preferência: tanto agrediam o calceta sem nome e sem família como o donatário ou o governador revestido das prerrogativas do poder que Portugal lhe dava. E até, quanto mais alto, mais exposto às hostilidades do meio.

A autoridade, vivendo em perigo como qualquer mortal, não possuía força para impor o princípio da hierarquia. Os homens foram-se então acostumando a não conhecer o valor  das leis, e estas, pelas condições particulares da terra, tinham de ser benignas na forma e quase nulas na execução.

E esse nivelamento dos primeiros dias formou em nós um senso tão exagerado de igualdade, que nunca mais pudemos ter a noção da hierarquia. Não conseguimos nunca compreender bem essa coisa que todos os povos, em todos os tempos, compreenderam admiravelmente – a realeza. A realeza, para nós, era uma coisa nevoenta, vaga, longínqua, que não víamos, mas que nos diziam existir lá do outro lado do oceano, em Portugal.

E, quando nos nossos segundo e terceiro séculos, a metrópole abriu os olhos e organizou um aparelho severíssimo para administrar nossa terra, era tarde. O elemento nacional já se havia formado ao léu, desorganizado, rebelde, com caráter próprio, sem rei nem roque, tendo por alicerce o nivelamento que a Natureza produzira nos dias iniciais.

Houve um tempo em que o princípio da autoridade suprema, ou melhor, da autoridade real, teve ensejo para se impor no nosso espírito. Foi naquele grave acontecimento da transmigração da Corte Portuguesa. Íamos, finalmente, com a chegada dos monarcas, compreender e verificar que a realeza era, na verdade, uma coisa imponente, magnífica, majestosa.

Mas a decepção foi liquidante. Esperávamos entidades majestáticas e o que nos chegava não era senão uma Corte flagelada pelos azares da fuga e pelos tormentos de uma travessia que durou mais de três meses.

A família real poderia recompor-se no remanso da aldeia que era o Rio de outrora. Mas vinha completamente desarvorada. O Regente – um pobre homem, a mulher – uma desvairada. E ambos a dar ao povo o triste espetáculo de uma vida conjugal salpicada de lama.

O segundo contacto com a realeza tivemo-lo no reinado de Pedro I.

A coroa real perde a majestade quando a cabeça que a sustém é uma cabeça de vento. As maneiras do nosso primeiro imperador, a sua linguagem destramelada, o seu feitio esfogueante, a sua devassidão, concorreram evidentemente para que a noção da realeza não vingasse no nosso espírito.

Pedro II, o nosso último contacto com testas coroadas, acabou por matar no brasileiro o conceito de dignidade majestática. Para um povo de vida chucra e criado à toa como o nosso, só a celestialidade das figuras imperiais poderia impressionar.

E D. Pedro II era muito humano e pecava pelo excesso de democracia. Não tinha feitio de monarca.

A Monarquia nunca pôde enterrar as suas raízes no Brasil. Nunca soubemos bem a diferença que havia entre um rei e um funcionário público. Nunca respeitamos os nossos soberanos.

Nos regimes monárquicos tudo pode merecer ataques, mas a pessoa do rei é intangível e sagrada. O conceito da realeza, entre nós, era de tal maneira frouxo, confuso e anárquico, que não tínhamos, pelo próprio Pedro II, a mais pequena veneração. As revistas caricatas atassalhavam-no, os jornais traziam-no pela rua da amargura.

Nem mesmo os políticos mais aproximados do Paço o poupavam, e não poupavam sequer a sua velhice enferma. Para cada partido político o equilíbrio mental do imperador variava conforme a oscilação do poder. O partido que caía, vinha para a rua apregoar a decrepitude do monarca, enquanto o que subia exaltava a plenitude das suas faculdades psíquicas. Qualquer dos estadistas imperiais, no dia seguinte à queda do seu partido, veria com prazer a queda das instituições.

E o espetáculo retumbante das adesões à República fala mais alto do que tudo. Não foram duas ou três figuras graduadas do Império que, no dia seguinte, se passaram para os republicanos. Foi o Império inteiro, em massa, como uma boiada, marchando.

Nunca houve monarquista no Brasil. O ambiente histórico não lhes permitiu a formação.

Os laços que uniam Ramiz Galvão ao trono não podiam ser mais apertados que os que prendiam as outras figuras do Império.

O preceptor, os príncipes e o 15 de novembro

A acusação do abandono dos príncipes é falsíssima. Ramiz não só não abandonou os netos de Pedro II, como os teve aos seus cuidados no momento mais grave do transe histórico da queda do Império.

No dia 15 de novembro de 1889, as criaturas que, às dez horas da manhã, saíssem à rua, na cidade do Rio de Janeiro, poderiam imaginar que tudo estivesse acontecendo, menos que àquela hora se estivesse pondo o trono no chão.

Às dez horas, quando Ramiz Galvão entrou para comprar alguns livros numa livraria da Rua do Ouvidor, foi com espanto que teve notícia do movimento de tropas no Campo de Santana. Àquela hora ainda não se falava em República. Sabia-se apenas que Deodoro, no Quartel-General, havia deposto o ministério Ouro Preto.

Ao deixar a livraria, dirige-se Ramiz ao Palácio Guanabara, onde a Princesa Isabel morava.

Deviam ser onze horas da manhã quando lá chegou. No palácio as notícias eram alarmantes. Dava-se ao movimento um vulto assustador. Já se lhe afirmava, com segurança, a finalidade republicana.

A princesa estava nervosa, inquietíssima, sobressaltada. Ramiz debalde procurou serená-la.

A certa altura da palestra, ela, numa crescente agitação de nervos, pergunta se lhe pode pedir um favor.

– Às ordens de Vossa Alteza – respondeu ele.

A Redentora senta-se ao seu lado e fala-lhe. Dizia-lhe o coração que aquele movimento ia ter conseqüências imprevistas e ela temia pela sorte dos filhos.

– São os meus filhos que eu lhe quero confiar – conclui.

Ramiz era um homem sereno, que não deixava transparecer os choques d’alma. Sentiu o peso da responsabilidade que ia pôr aos ombros, mas respondeu com tranqüilidade de voz e de olhar:

– Que quer Vossa Alteza que eu faça?
– Que procure colocar os meninos em lugar seguro.
– Neste momento, o lugar mais seguro – lembrou ele – é Petrópolis.
– Mas será possível levá-los a Petrópolis? perguntou angustiadamente a pobre senhora.
– Eu os levarei até lá – respondeu Ramiz.

O carro estava no pátio do palácio. A princesa, sem nada dizer aos filhos, fê-los entrar no carro. Ramiz foi primeiro a casa, prevenir a família.

E seguiu para a Praia do Flamengo. Era ali, no Flamengo, que os três príncipes D. Pedro, D. Luís e D. Antônio, em companhia do aio, tomavam banhos de mar. O banhista tinha um barco e era nesse barco que os príncipes, às vezes, davam passeios marítimos.

– Os príncipes estão com vontade de dar um passeio – diz Ramiz ao banhista. – Leve-nos para o meio da baía.

O homem foi buscar os remos.

O que o preceptor dos príncipes queria era fazer tempo.

A barca de Petrópolis só à tarde partiria e era preciso esperar a hora da partida em lugar inteiramente afastado do ambiente de excessos produzido pela revolução. Esse lugar devia ser o cruzador Riachuelo. O comandante era Alexandrino de Alencar, e Alexandrino estava no rol dos seus amigos mais diletos. No meio da baía, Ramiz manda remar para bordo do vaso de guerra.

Devia ser mais de uma da tarde quando lá chegaram. O aio galga a escada com os príncipes. Decepção cruel. Alexandrino, pouco tempo antes, havia ido para terra com a guarnição.

Ramiz não consegue esconder o seu desgosto. Mas o oficial de dia (não tive meio de lhe saber o nome) é um homem gentil que imediatamente se coloca à disposição das visitas. Vem o café. Vem o lanche. À tarde, o escaler de bordo, com a flâmula dos príncipes, transporta o aio e os meninos para bordo da barca.

Em Petrópolis, Ramiz fica até o dia 17, em que o governo republicano lhe ordena que traga os netos do imperador para a viagem do exílio.

A entrega à família imperial tem o seu instante difícil. No Largo do Paço a multidão ferve agitada. Ao ser reconhecida a carruagem dos príncipes, a turba, francamente hostil aos republicanos, atravessa a frente da carruagem como para impedir que os meninos deixem o Brasil.

O momento é melindroso. Aquela agitação pode produzir conseqüências funestíssimas.

Ramiz salta do carro e fala ao povo. Mostra que está cumprindo ordens e que a desobediência às ordens pode desencadear uma calamidade.

E o povo silenciosamente, respeitosamente, abre alas. E a carruagem passa.

Teria Ramiz Galvão abandonado o imperador de quem era protegido?

Antes de tudo, é preciso saber se realmente ele estava no rol dos protegidos do imperador. Não estava. Não lhe devia favor nenhum.

O cargo de preceptor não o pediu. Ofereceram-lhe. E só diante de vivas insistências resolveu aceitá-lo.

A 15 de novembro de 89, a família de Ramiz se compunha de esposa, quatro filhos e uma criada. E não tinha vintém e estava carregado de dívidas, as tais dívidas feitas por imposição da dignidade do cargo.

E sabia que a situação financeira do imperador era também difícil.

Que iam fazer, ele e a família, ao lado do monarca, na melancolia do exílio em país estrangeiro? Aumentar a aflição ao aflito, sobrecarregar com o peso de sete pessoas uma nau que a desgraça acabava de atirar inesperadamente sobre os escolhos do infortúnio?

Ramiz Galvão não acompanhou a família imperial na proscrição de 89. Com isso lucraram todos. O imperador, que o não teve a sobrecarregar-lhe o orçamento; ele, que não deu desgostos ao imperador; o País, que desfrutou os seus serviços à cultura nacional.

Senhores acadêmicos:

Eis-me finalmente na Academia! Eis-me finalmente no alto da montanha!

Ao chegar a estes cimos fascinantes, sinto no peito os haustos da alegria e no coração a tranqüilidade do vencedor.

A subida foi áspera, dura, penosíssima. Rasguei os pés nas penedias; caí, muitas vezes, nas ribanceiras, sem fôlego para caminhar, sem ânimo para subir.

Mas que importa isso se hoje estou aqui no alto, descortinando a paisagem deslumbrante da vossa ilustre companhia e os encantos salutares da vossa cultura!

Cheguei finalmente ao máximo das minhas aspirações de escritor. Esta é a noite mais iluminada de minha vida, porque é a noite nupcial da realidade dos meus sonhos.

Bate-me o peito na ebriedade das pulsações. Nada me falta. Só a figura de Medeiros e Albuquerque me falta nesta hora de júbilo, que seria tão dele quanto meu, dele, que muitas vezes, me carregou nos braços pelos caminhos difíceis desta ascensão.

Senhores acadêmicos: foram vários os motivos que me fizeram, por tantos anos, com o melhor dos meus esforços, disputar a vossa convivência.

O maior deles é que a Academia, para mim, é a preeminência e o brilho, e a natureza que me fez pequenino deu-me uma atração irresistível pelas culminâncias e pelas fulgurações.

Há um velho conto hindu que narra de uma assembléia de nababos que se reunia de tempos em tempos, para cuidar do aumento dos tesouros da gente opulenta do país de Buda.

Estava um dia a assembléia reunida, quando se ouviu bater à porta. Era um desconhecido que queria entrar.

– Que riquezas trazeis? – perguntaram-lhe os Cresos.
– Nenhuma – respondeu ele. – Apenas trago boa vontade.

Ia o homem ser posto à porta, e foi quando o mais velho do grêmio falou:

– Deixemo-lo ficar, que a boa vontade é, também, uma riqueza.

Senhores acadêmicos: às portas de ouro desta Casa de nababos das glórias literárias eu chego de mãos vazias. Trago, apenas, uma arca de boa vontade. Deixai-me entrar. Outra riqueza eu não tenho.