Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Salvador de Mendonça > Salvador de Mendonça

Salvador de Mendonça

VERSOS A LÚCIO

                              I

Há no espaço infinito do Universo,
Além da Via Láctea, uns pequeninos
Vestígios de matéria e notas de hinos
Com que da Criação se plasma o verso.

Forjam-se, ali, dos seres os destinos,
E o Supremo Fator em luz imerso
Marca a derrota aos astros e o diverso
Curso a tantos milhões de peregrinos.

Passam os sóis e levam no seu bando
Novos corpos no vácuo flutuando,
Vergéis de Paraíso, antros de Inferno.

Saltam da forja as chispas coruscantes.
Homens, estrelas, monstros ululantes,
No infindo desdobrar do plano eterno.

                             II

Forjaram-te ao clarão da luz intensa
Que se chama a Verdade. De armadura
Revestiram-te o corpo. E a destra pura
Ergueu bem alto o lábaro a crença. 

Tu passaste entre nós qual a figura
De algum novo Jesus. Tua alma imensa
Foi a própria Justiça. E uma sentença
Era o verbo da Lei feito escritura.

Tinhas na voz a cólera sagrada
Para a opressão e para a vil manada
Que se rojava aos pés dos opressores.

Tinhas no coração a caridade,
O amor do bem de toda a humanidade,
Dos fracos, das crianças e das flores.

                              III

Quando surgiste acima da montanha
De algum mundo de luz e liberdade,
Tinhas no triste olhar funda saudade,
Mensageiro do céu em terra estranha.

Quando espalhaste a viva claridade
De todo esse teu ser, fulgiu tamanha
A branca luz que sempre te acompanha,
Que te ocultar não pôde a Imensidade.

Hoje, por sobre as rosas do Oriente,
Por sobre a curva argêntea do crescente,
Tu da Pátria entrevês o vulto escuro.

Estrela d’alva, protetora estrela,
Rasga o véu que procura inda escondê-la,
Torna a guiá-la, estrela do futuro!

 

PERIGOS INTERNOS E EXTERNOS

Há muito que em toda a vasta extensão do Brasil os filhos desta terra e os que nela vieram encontrar nova pátria mostram-se tomados de receios pelo futuro que nos aguarda. Os únicos brasileiros satisfeitos são os que no pano verde da roleta nacional fizeram fortuna do dia para a noite, assaltando as repartições de Estado para obterem as gordas concessões que os tornaram “ricos, desonrados e contentes”.

No meio da calma aparente que dir-se-ia cobrir a nação inteira como um sudário, surgiu de improviso a explosão de duas verdadeiras bombas de dinamite; a notícia de que o Sindicato Farquhar, a começar do território do Amapá e a terminar nas fronteiras da Nação Argentina se estava apoderando de enormes zonas do Brasil, capazes de fornecerem territórios a maiores Estados que o da Bélgica e o da Holanda, depois de conquistar extensas redes de estradas de ferro, portos, monopólios da distribuição de força elétrica, iluminação e viação urbana das nossas cidades mais importantes; e a divulgação da opinião do sr. James Bryce de que sendo o Brasil uma enorme nação, com inúmeras riquezas e muito mal governada, tais riquezas não podem ficar nas mãos dos brasileiros.

O abalo produzido pelo conhecimento simultâneo dos dois fatos despertou a opinião pública de nossa terra.

Há muito quem afirme que no Brasil não há opinião pública, a qual não passa de uma frase de ocasião na oratória barata dos embaixadores do povo, quando o querem lisonjear. Tenho que se ilude quem tal assevera: há entre nós uma opinião pública, que, de envergonhada com a direção que há algumas décadas vão tendo os públicos negócios, tratou de se recolher ao mais íntimo santuário da consciência nacional para se não emporcalhar com a podridão que atualmente deturpa o nome da pátria, outrora cercado de consideração e respeito. As nacionalidades, como o conjunto dos seus melhores cidadãos, têm destes afastamentos ditados pela veneração aos princípios da sã moral. Logo depois da Guerra Civil nos Estados Unidos, notaram os mais argutos observadores que nas eleições federais havia crescido o número de abstenções e que a nação parecia desinteressar-se desses pleitos e descrer da eficácia do voto, força motora da grande União. O fato é que a febre das fortunas rápidas, feitas durante o sanguinolento conflito, enchera de nojo os cidadãos mais sérios e dignos, que se arredando das urnas lavravam o seu protesto contra os tratantes contratantes. A raça é outra, mas afinal o homem é o mesmo em toda a parte, e não será de admirar que entre nós se esteja repetindo o fato e que dentro em pouco a classe mais educada do Brasil esteja falando ao povo e concitando-o a se pôr de pé.

Quem assistiu no Rio de Janeiro em 1863 à reunião do povo em redor do velho Palácio Imperial, aos milhares conclamando a necessidade de vindicar a honra nacional, insultada pelo estulto Christie, ministro inglês, e obrigando o imperador a vir à sacada do Paço e a mandar declarar por um de seus ministros que o seu governo, pelos órgãos constitucionais, lavaria a afronta, não pode acreditar que em meio século estejamos tão mudados que a nossa espinha dorsal já não se possa manter ereta. O laudo do rei da Bélgica que decidiu que à Grã-Bretanha cumpria reatar as relações diplomáticas que haviam sido suspensas e dar-nos satisfação, levou o novo ministro inglês ao acampamento de guerra, em que o recebeu o Sr. D. Pedro II, no cerco de Uruguaiana, dizendo, em resposta ao discurso do diplomata, que ali se achava no cumprimento do dever, que lhe impunha a dignidade do Brasil.

A República, composta de brasileiros que devem ter herdado as virtudes de seus pais, não pode, diante da ameaça estrangeira, fazer menos do que fez o seu velho imperante. Se o fizesse devia desde logo abdicar o governo desta terra. Tenho que, conhecedora dos fatos, tais como se estão passando, a nação instruirá aos seus delegados para que cerquem de todas as garantias o nome do Brasil e votem as leis para isso indispensáveis.

A prova de que a nação se prepara para um ressurgimento está na repercussão que a notícia dos perigos internos e externos vai tendo no Congresso e na imprensa. Os dignos representantes dos Estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, os srs. Pandiá Calógeras e Maurício de Lacerda, já lançaram o protesto da dignidade nacional aos quatro pontos cardeais do Brasil. Em breve a nação inteira terá ouvido o alarma e sacudindo o torpor que lhe encadeia os braços, mostrar-se-á digna herdeira dos soldados do Paraguai.

Sejam quais forem os recursos pecuniários do enorme sindicato que se está alastrando sobre o nosso vasto território, os seus capitais, que têm bastado para o suborno de alguns dos nossos cidadãos de maior fama e goelas ainda maiores, não serão suficientes para comprar a consciência nacional.

Sejam quais forem os arranjos diplomáticos das grandes nações européias que procurem solver as suas dificuldades intestinais à nossa custa, acredito que se a Alemanha não achou bastante as compensações territoriais que este ano recebeu no Congo Francês, e já não tem onde meter-se no litoral do norte da África, ocupado por ingleses, que se preparam para a anexação do Egito; por italianos que há pouco cometeram a rapina da Líbia; por franceses que se assenhorearam definitivamente de Marrocos, e por espanhóis que se não deixaram desalojar do resto ocidental dessa costa, não há de ser em três Estados da Federação Brasileira que virá com êxito expandir o seu território colonial.

Os erros, e não são só da República, por meio dos quais foram entregues ao estrangeiro tamanhas zonas brasileiras, com a indiferença de um fatalismo muçulmano e com os quais permitimos que em terras brasileiras se estabelecessem núcleos numerosos de uma só nacionalidade que se está constituindo em Estado no Estado, expelindo a língua do Brasil de sua própria casa redigindo documentos oficiais em língua alemã, criando e mantendo escolas para o ensino exclusivo do alemão, aparelhando escolas de tiro só para alemães, podem ainda ser remediados por um milagre de patriotismo.

Não é possível que só nos reste escolher a maneira pela qual devemos ser comidos; se de forno com recheio à la Farquhar, se em pedaços e de molho pardo à la James Bryce.

Para muitos o que é fora de dúvida é que seremos comidos.

(A situação internacional do Brasil, 1913.)

 

              JOÃO CABOCLO
(Lendas da serra e da baixada)

Por trás do Morro Grande, entre duas colinas,
Envolta no seu véu de névoas matutinas,
Dentro do vale extenso a mata se ocultava.
Outrora habitação de tribo altiva e brava,
Tornara-se depois em quilombo, e temida
Dava ao mísero escravo o sustento e a guarida.
Por léguas em redor as vastas derrubadas
Os machados e o fogo, as terras desnudadas
Desde a Serra do Mar até à beira-rio
Haviam longamente às chuvadas do estio
Entregue sem piedade, e as várzeas e as montanhas,
Encobrindo no solo escavações estranhas
Embargavam o passo a qualquer tentativa
De ataque inopinado à selva primitiva.

A mata era um reduto, e as estradas cobertas,
Por meio à natureza em contorno abertas,
Tornavam-no seguro. Assim sem obra de arte
A terra entre os seus dons a defesa reparte.
O sítio, já sombrio ao declinar do dia,
Era todo pavor quando a noite caía.

Cheio de estranhos sons, de sinistros ruídos
O quebrar da taquara e dos ramos caídos
Ao passar do tapir pelo jaguar montado
Em busca do carneiro e do tronco tombado
Para arrancar do dorso a carga que o devora;
O riso da coruja, a dança do caipora,
A voz do boitatá, e a voz do lobisomem,
Dividindo a preá, que disputando comem.

                                [...]

Da floresta saiu um homem de alto porte,
Robusto, varonil, cabeça em torso forte;
Tinha a camisa aberta e a calça arregaçada
Mostrando a brônzea tez de cor baça e queimada;
Trazia firme o andar, mas parecia inquieto;
Transpôs o Morro Grande em atalho direto
E uma hora depois na casa de vivenda
João Caboclo achava o dono da fazenda.

- Então a derrubada?
                                  - A gente inda não veio.
- Não veio, hein? Nem irá. Você descobriu meio
De faltar à promessa a mim feita, há mais de ano.
- Patrão...
               - Fique sabendo: eu não mudo de plano
Por não querer você derrubar esse mato.
- Patrão, eu cumpro sempre os negócios que trato.
- Por que então não derruba?
                                           - Eu lhe digo a verdade,
E se o patrão me ouvir, estou certo, não há de
Exigir que eu derrube. A mata não tem era,
Pôs-se ali a crescer onde Deus a pusera;
E cresceu, e cresceu, até perder-se a conta
Dos anos que ela tem e a que tempo remonta.
Antes da gente branca haver ganho as montanhas,
Havia serra acima umas tribos tamanhas
Que enchiam toda a terra até ao Paraíba,
Do rio Piraí em uma e outra riba;
Nesse tempo essa mata era o lugar das festas.
Havia no arredor florestas e florestas,
Mas esta era a mais velha, a colaça do morro
E no tempo da guerra era asilo e socorro.
Daqui foi Cingairu à verde Guanabara
À voz de Arariboia, e como não voltara
Tiveram-no por morto, entretanto a piroga,
Em que saiu co’os seus, ainda agora voga,
Pelos rios da serra, e se a noite vai alta,
Eu o vejo chegar quando na praia salta
E some-se na mata, audaz, bravo, ligeiro,
Como quando seguia o veado galheiro,
É preciso arredar essa gente fugida,
Não quero valhacouto...

                                        -Acredite, com vida
Somos eu e os meus cães, o mais é gente morta,
E de tanta não sei como a terra a comporta.
Quilombolas, não há, a última batida
Varreu de toda a mata a gente foragida.
Nesta parte cumpri a penosa promessa.

- Pois é cumprir o resto, antes que alguém lho peço
Mandar buscar a gente, é só o que é preciso.
- Agora não se corta, a mata teve aviso.
Os mortos sabem tudo e os segredos devassam,
As raízes que fundo os corpos nos traspassam,
Tiram da carne e do osso abundante alimento
E penetram no crânio alheio pensamento,
Sugam vida animal; dão olhos, dão ouvidos;
Tato, olfato e sabor, os humanos sentidos.

Quantas vezes a sós, recostado na relva,
Eu tenho visto e ouvido os segredos da selva.
“Abelha, vem aqui, eu te prefiro ao vento,
Leva todo o meu ser, meu amor, meu alento,
Àquela flor de neve agora tão corada.”
E como após viçou a neve deflorada!
A vossa mata vive, e ri, e chora e canta,
Na vida do universo e na vida da planta
Tudo é transformação, a matéria é eterna,
Somente o que foi galho é agora uma perna
E na rosa mais terna a tinta purpurina
Já foi bela e foi rosa em face de menina.

Não se pode cortar, a mata teve aviso.
Tentar fazê-lo agora, era perder o sizo.
Se no jequitibá as arapongas cantam,
Quando malham o ferro, as árvores espantam;
A brejaúva fecha a entrada dos caminhos
E as fibras endurece, enristando os espinhos.
O seu plano, patrão, a mata já conhece,
Leio-o no seu aspecto apenas amanhece.
E se assim está tudo, o mato não se corta.

- Ouvi a lenga-lenga, e bem pouco me importa.
Dos escravos na lista o seu nome figura
Da compra da fazenda em válida escritura.
Mestiço, ouça este aviso, ou se quiser, conselho:
Vá, faça a derrubada ou eu lhe meto o relho.

A palavra cortou qual cortara a lambada,
Mas sem nada dizer, sem gesto nem parada,
Fora no laranjal o Caboclo sumiu-se,
E ao perfazer-se um mês, uma manhã ouviu-se
Por trás do Morro Grande o som da derrubada.
Era nos fins de abril, a chuva era passada,
Estava em flor o ipê e da quaresma roxa
As flores os capões cobriam de uma colcha
De triste viuvez. Os golpes retiniam,
Qual metal no metal, e logo se partiam
No cerne da madeira os melhores machados.
Da têmpera melhor, todos de aço calçados.
Subiam entretanto as filas inimigas,
Cortando pouco e sempre à guisa das formigas,
E por fim a floresta, a mor joia da serra,
Jazia quase toda exânime por terra.

                                    [...]

 (Revista da Academia Brasileira de Letras, ano II, n. 3, 1911.)

 

                O ÚLTIMO PORTO

                              I

Barca dos sonhos, minha companheira
Dos dias de tormenta e de bonança,
Em seu seio o mar calmo te balança;
Vamos longe vogar, barca veleira.

Atrás fica o passado em nossa esteira,
Vai-nos à proa o lume da esperança,
Do passado a saudade nos alcança,
Mas a esperança como vai ligeira!

Na vasta solidão do mar, enquanto
Rememoro a existência dolorosa,
Surgem dias de gozo puro e santo.

Cresce a luz da esperança radiosa,
Vamos dormir dos astros sob o manto,
Barca dos sonhos, pétala de rosa.

                             II

Barca dos sonhos, pétala de rosa,
Vamos dormir das ondas nos arminhos,
E por baixo de nós monstros marinhos
Cortam do abismo a senda tenebrosa

Ao longe em negra linha temerosa
Outros monstros de ferro amplos caminhos
Fecham nos mares amplos, e sozinhos
Ditam a lei da força imperiosa.

Dá-me a cota de malha, o meu montante,
O rijo elmo encantado de Mambrino
E o meu leal e heroico Rocinante.

Se monstros combater é meu destino,
Tenho p’ra luta o braço meu possante,
Para a vitória um protetor divino.

                      III

Desta vitória o protetor divino
Vem do Oriente como a luz do dia,
E do sol ao fulgor que se irradia
Entoa o mundo redimido um hino.

Ouves acaso esse tanger de sino,
Que vem de longe, além da penedia?
É o triste tocar da Ave-Maria.
Na velha torre que me viu menino.

Vês como o sol se esconde no poente
E doura apenas o perfil da serra,
Barca dos sonhos a vagar silente?

Aproa à costa que meu lar encerra,
Pois quero agora repousar contente
No seio amado e bom da minha terra.

                                                                                   Julho de 1912.

                       (Revista da Academia Brasileira de Letras, ano III, nº 7, 1912.)