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Pereira da Silva, A. J.

DE SOLITUDES (1918)

"SOLITUDES"

Senhor, meu Deus! não move minha pena
Vós o sabeis, o impulso da vaidade.
A glória deste mundo é bem pequena
E não nasci para a imortalidade.

Mas não sei por que nada me dissuade
E, antes, tudo em meu sangue me condena
A dar forma, expressão, plasticidade,
Estilo a tudo quanto é dor terrena.

É meu tormento. Chamam-lhe poesia,
Arte do verso. Chamo-lhe o madeiro,
A Cruz da minha noite e do meu dia.

- Cruz em que verto o sangue verdadeiro
E em que minh’alma em transes agoniza
E o coração se crucifica inteiro...
(p. 13.)

 

VALSA DAS CHAMAS

Noite. Em meu quarto solitário, apuro
O meu destino; a solitude ambiente,
O tédio, a hora, o mal-estar de doente
Tudo me torna o pensamento obscuro.

Em vão me apego à idéia sempre ardente
Da Vida, - esta volúpia do Futuro.
Queima-me intensa febre o sangue impuro.
Perpassam-me relâmpagos na mente.

Deliro. E a meu olhar que tudo ilude
A vela cresce, assume outra amplitude,
Deixa o recinto entre clarões de flamas...

... Surge-me assim, ante as pupilas pasmas,
Salomé, numa orgia de fantasmas,
Bailando a Valsa erótica das Chamas...
(p. 18.)

 

A CONSCIÊNCIA

Noite... sombras... silêncio... indefinida
Angústia imponderável pelo ambiente.
Penso, em meu leito, como um ser consciente:
- "Mais um dia de menos para a vida..."-

Como os dias passados - o presente.
Idéias vãs; desesperada lida;
Esforço inútil; alma incompreendida
Em tudo quanto crê ou quanto sente;

A juventude quase no seu termo;
Mente mais débil; corpo mais enfermo,
A nobre fé de antanho menos forte...

Que horror! A consciência, como a aranha,
Tais razões urde e nelas se emaranha
Que só fica a razão final da morte!
(p. 19.)

 

INTERIOR

Ocaso. Em minha sala quase escura
Olho os retratos. Dante está presente:
- Face entanguida, olhar impenitente,
Boca num forte ríctus de amargura.

Em Poe, que o sol, num claro, transfigura
Baudelaire crava o olhar. E frente a frente
Fitam-se longa, misteriosamente,
Tal como o Tédio diante da Loucura...

Em torno e em tudo erra um silêncio absorto.
Sombra do gênio? Alma do desconforto?
Forma do ser disperso no Nirvana?

Quem saberá jamais? A noite desce.
Cada efígie daquelas como cresce
E assombra mais minha tristeza humana!
(p. 22.)

NIHIL...

Dia parado entre nevoento e enxuto.
A natureza como semimorta.
Quanto aos vencidos, Musa, desconforta
Esta infinita sugestão de luto!

Quanto a mim, de minuto por minuto,
Ouço alguém... Alguém bate à minha porta...
Quem é? Quem sabe? Uma saudade morta,
Cousas tão d’alma que eu somente escuto.

Nesta indecisa solidão sombria
Sem cor, sem som, meio entre noite e o dia,
Como que a Morte a tudo, a tudo assiste...

Como que pela Terra desolada
A consciência universal do Nada
Deixa um silêncio cada vez mais triste...
 

 

A DOENÇA DA VIDA

Corri toda a cidade, noite adiante:
Ruas e praças, becos e vielas,
As avenidas amplas, largas, belas,
Sob o vivo esplendor da luz radiante.

Vi-lhe os bairros de lôbregas mazelas;
Os palácios, o nobre orgulho arfante
Dos seus salões, tudo como um passante
Curioso de quadros e de telas...

Oh! a tristeza ardente, comovida,
Dos que vivem na muda indiferença
De uma ruidosa Acrópole incendida!

Oh! a tristeza amarga de quem pensa!
O Tédio, o Spleen, o Ideal, doença da Vida,
Poe, Baudelaire, Leopardi, vossa doença.
(p. 28.)

 

SÍSIFO

Incessante labor! Quase sem mais entranha,
Inane da exaustão da mesma insonte lida,
Causa, Sísifo, horror à mais empedernida
Alma que o vê na afã de punição tamanha.

Pés e mãos a sangrar; pávido suor que lhe banha
A extrema lividez da máscara estarrida.
- É o pavor de escalar ainda e sempre a montanha
Entre mil decepções já subida e descida.

Tantas vezes em vão conduz a pedra a medo
Quantas a vê rolar da colimada altura
Sobre o talude hostil daquele monte quedo...

Como a Sísifo entende alguém que se procura
E na mesma expiação do galé do rochedo
Rola seu próprio ser como uma dor obscura!
(p. 32.)

 

DIÁLOGO ÍNTIMO

Vamos! Desperta dessa indiferença
E olha a Cidade! Que beleza imensa

A moderna Cidade soberana!
É justo o orgulho de que bem se ufana

O homem do grande século do Invento!
Por toda parte a indústria e o movimento

Às ruas dão estranha alacridade.
Não há fadiga nesta nova Idade

Da Energia, da Força, da Riqueza.
Em cada olhar humano brilha acesa

A ambição de vencer o Tempo e o Espaço.
Corre-se e voa quase sem cansaço.

No céu, no mar, na terra, em toda parte
O homem da nova técnica e nova arte

Tudo transporta e tudo movimenta.
Uma estética inédita e violenta

Imprime à vida nova encanto novo.
Que festivo rumor na alma do povo!

Vê-se que há nesta humana efervescência
A verdadeira idéia de existência

Como a vemos em atos definida:
"Fazer do instinto a fórmula da vida."

A Glória nada é mais que uma atitude;
O Belo, um gesto; a Força, uma virtude;

As Idéias onímodos motores.
Os verdadeiros homens superiores

São, como vês, o desta Vida Intensa
Que tanto ri do espírito que pensa

E vai no mais estranho automatismo
Rolando e rindo para um novo abismo!

E à Musa respondi como devia:
Que importa, minha Musa, a eterna orgia

Das Cidades ardentes e gloriosas?...
Se somos seres de almas silenciosas,

Ermas e sós no seu destino cruento,
Que nos importa o vão deslumbramento

Das Capitais ruidosas e confusas?...
Se não sentimos, como as outras musas,

No vinho das volúpias corrompidas
As alegrias das fatais bebidas,

Dos reserva esta Cidade Humana
De que o senso banal tanto se ufana?...
(pp. 39-41.)

 

SONETO DE ASHVERUS

Amarga vida, como por ti ermo
De alma exaurida e coração deserto!
Tanto rumor, tanta alegria perto
E longe de meus olhos de estafermo!

A cada instante mais ao longe o termo!
Foge a meus olhos o horizonte aberto.
O tardo passo sempre menos certo.
O calor do meu sangue mais enfermo.

E enquanto a noite desce mais do espaço,
Sigo, como num fúnebre cortejo,
Com minha sombra, ao lado, passo a passo...

A morte acena. Finjo que a não vejo,
Embora seja tanto o meu cansaço
Que nem sei se outra cousa inda desejo!
(p. 85.)

 

POETAS...

Ele vivia a sua vida ardente
Só, no tropel anônimo da gente.

Triste, comum, banal, quem pensaria
Ser ele tal que na su’alma havia

Alma de poeta que jamais se engana
A flor acesa da miséria humana?

Disse-lhe amiga voz: "Bem desejava
Não fosses nunca essa roseira brava

Que se depara à margem do caminho,
Com tantas rosas, mas com tanto espinho!"

E ele sorriu de tanta ingenuidade.
Que lhe importava a glória da Cidade,

A fama dúbia, o afã que se consome,
O desespero fátuo do renome?

Que lhe importava a civilização
Não descendente de seu coração,

Nem figurando entre os mais bens herdados
Dos seus Heróis e seus antepassados?...

Preferia viver a vida austera
De um ser que não se nega ou degenera

Ou contrafaz os próprios sentimentos,
Vida de tédios íntimos e cruentos,

Mas, inda assim, presa por mil raízes
No coração dos seres infelizes.

Preferia viver como um vencido
Assistindo a esse drama incompreendido

De um povo, como o seu, de todo alheio
À Terra, aos seus instintos, ao seu meio.

Nem por viver fora do mundo ocioso
Deixaria jamais de ter o gozo

Sempre inefável de vazar em versos
Seu desdém pelos parvos e perversos

Cuja filáucia é tanto mais propensa
Às vãs lauréolas quanto menos pensa.

Seria, pois, uma outra voz perdida,
Não no deserto, mas na própria vida.

Voz solitária, intérprete divino,
Dos que procuram novo descortino

E pensam ver nas próprias agonias
Razões amargas de melhores dias.

Vivessem, pois, os mais, nos esplendores
Das Capitais sem glórias ulteriores,

Instintos próprios, íntimas virtudes,
Sãs alegrias nas lareiras rudes.

Ele, porém, seria sempre um poeta,
Um ser à parte nesta vida inquieta,

Um ser que guarda na su’alma obscura
O nobre orgulho de quem se procura

E sente palpitar no sangue novo
A alma incendida de seu próprio povo.

Este era, sim! o férvido terreno
Em que queria ver seu gênio em pleno

E eterno eflorescer de emoção pura:
Frutos do Instinto, flores da Ternura.
(pp. 106-108.)