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Discurso de posse

Senhores acadêmicos,

Perdoai – perdoai-me –, se não me mostro tão comovido, tão intimidado quanto deveria estar, aqui, neste momento, diante de vós que tão generosamente me honrastes com a vossa escolha, tão dignificante, tão acima de meus possíveis méritos. Peço, porém, que não vos escandalizeis: é que não me sinto ante possíveis juízes, é que não me encontro em país estranho, em região desconhecida. É que não me é nem estranha nem desconhecida a vossa Casa – essa Casa de Exceção que me honra com a sua acolhida. Se não receasse parecer pretensioso aos vossas ouvidos – ainda que os saiba indulgentes –, diria mesmo que, ao aqui penetrar e contemplar a imponência de vossos fardões e de vossas condecorações, sinto-me não só entre amigos, mas – ousarei dizê-lo? – como alguém que, depois de longa viagem pelos difíceis caminhos do mundo, retornasse à própria casa – pelo menos, à casa de sua infância, de sua primeira mocidade.

Quase menino ainda eu era e já me sentava nas cadeiras de vosso Salão, ouvindo vossos conferencistas, especialmente aqueles vindos de França que tanto deslumbraram meus primeiros contatos com a Literatura – e ao acaso relembrarei: Dumas, Lanson, Hazard, Garric... Menino eu era – nem moço, talvez – e já a sombra do vosso prestígio povoava minhas primeiras inquietações intelectuais em casa, nas conversas que ouvia, era de vós, de vossos problemas, de vossos debates, das escolhas mais ou menos felizes a que acaso chegáveis em vossas eleições, que cogitavam os que me eram mais próximos. Conhecia os nomes e os títulos de vossos pares de então, seguia-lhes os passos mais rumorosos. No ar que respirava, respirava-se o vosso ar; eram harmônicos os ambientes em que vivíamos.

Acode-me mesmo a lembrança de, nessa fase de fim de infância, ter assistido, por detrás da porta do Salão de Visitas – limite máximo de tolerância permitido ao exíguo de minha idade – certa recepção de domingo em que uma declamadora de renome recitava poemas de Victor Hugo, na presença de um poeta francês famoso, ali trazido pela mão amiga de um de vossos mais célebres acadêmicos. O poeta, digamo-lo logo, pois a tout seigneur tout honneur, era o grande, o extraordinário Paul Claudel, então ministro de França no Brasil. O acadêmico: Graça Aranha, parente de nossa família. A casa era a de meu pai, Alberto de Faria, que mais tarde viria a pertencer a esta Instituição. Na sala, bem presentes, meu cunhado, Afrânio Peixoto, já então membro desta Casa, e meu futuro cunhado, Alceu Amoroso Lima, que a integraria anos adiante.

Por detrás da porta, espantado, o menino olhava embevecido, eletrizado, talvez sem compreender muito bem, mas já seduzido, já “comprado” pelo vosso mundo, pelo mundo do Espírito. Como renegar algum dia, essa raiz tão profunda, tão infantil? Como atirar pedras contra uma Instituição tão arraigada no meu eu, em minhas mais velhas lembranças, nos meus “últimos longes”, como diria Joaquim Nabuco – esse mesmo Joaquim Nabuco que me oferece a chave mestra dessa evocação de infância, quando registra, no início do capítulo célebre de recordação de Massangana: “O traço todo da vida é para muitos um desenho de criança, esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber?”

Foi nesse ambiente de secreto namoro da Academia, entre esses homens marcados pela sua atração, que cresci e aprendi. E aprendi muito, podeis crer. Com Afrânio Peixoto, quase tudo o que sei – o pouco que consegui guardar. Mostrou-me ele, à sombra de sua enciclopédica cultura, tudo o que eu então ansiava por saber: o mundo e suas particularidades regionais, o céu e seus segredos que um telescópio emprestado por Manuel Amoroso Costa revelava à minha curiosidade maravilhada (as grandes estrelas duplas, os planetas rodeados de anéis e satélites... amostras do espaço então ainda desconhecido), as novas descobertas da Ciência, os mais recentes caminhos da Arte, especialmente a espantosa jovem descoberta: o cinema, meu encanto, minha paixão de mocidade. À sombra de Alceu Amoroso Lima, dos rumos que sua divinatória crítica literária estabeleceu, descobriria eu os caminhos do meu próprio espírito, de meus mais íntimos problemas, primeiro literários, mais tarde espirituais: Proust, Gide, Pascal, Léon Bloy... A meu pai, Alberto de Faria, devo, acima de tudo, o exemplo de dignidade que sua vida foi para mim e que não quero esquecer aqui, nesse momento de rememoração e de agradecimento público.

Mais do que ninguém, foi ele quem me ensinou a vos respeitar – nessa época da vida em que ninguém respeita ninguém –, a vos admirar, e compreender o que significais como Instituição, como equilíbrio de todas as forças que condicionam o mundo do Espírito. E, coincidência feliz, foi em sua biblioteca que travei conhecimento com os volumes, lidos, relidos, anotados, de Um Estadista do Império, a obra mestra de Joaquim Nabuco – de Joaquim Nabuco fundador desta Cadeira que ora me é dado o privilégio e a inexcedível honra de ocupar. E, fato curioso, os mesmos volumes em que meu pai estudava as sínteses que iriam constituir alguns dos pontos maiores de sua biografia de Mauá, assistiram, quase na mesma época, ao entusiasmo da leitura apaixonada do adolescente delirantemente monarquista que eu era então... e que, não vos esconderei, não deixei muito de ser até hoje.
 
Fato e coincidência mais estranhos ainda, testemunho mais positivo, sem dúvida, da admiração incondicional em que Nabuco era tido entre os meus: anos depois, quando meu pai foi convidado pelo então Presidente da República, Artur Bernardes, para o elevado e por muitos ambicionado posto de embaixador do Brasil em Washington, alegou ele, para declinar da honrosa designação, entre outros motivos, o indisfarçável receio de não estar à altura do fulgor com que Nabuco iluminara, na capital americana, o extinguir de sua carreira diplomática – fulgor tal que ainda permanecia vivo na lembrança de todos.

Perguntareis, provavelmente, senhores acadêmicos, se não deveria ter, também eu, a mesma modéstia, não ousando me candidatar à Cadeira de tão ilustre fundador e que foi, não vejo como escondê-lo aqui, o maior entusiasmo por vulto nacional despertado em minha adolescência. Mas, ai de nós!, como os tempos mudaram e como, apesar de tudo, é diferente a nossa velhice da velhice de nossos pais! Não é só a mocidade de hoje, com seus longos cabelos e sua irreverência sem limites, que é outra, vária, atordoante.

Também nós o somos, com a nossa inconsciência, a nossa pretensão de ocupar as posições deixadas vagas pelas gerações que nos precederam: as grandes gerações dos Gonçalves Dias e dos Castro Alves, dos Alencar e dos Machado de Assis, dos Nabuco e dos Euclides da Cunha, dos Coelho Neto e dos Rui Barbosa, dos Mário de Andrade e dos Graciliano Ramos, dos José Lins do Rego e dos Guimarães Rosa, dos Augusto Frederico Schmidt e dos Manuel Bandeira, dos Cornélio Penna e dos Lúcio Cardoso! Como os tempos mudaram, senhores acadêmicos, mas não foi apenas lá fora, no mundo dos átomos e dos hippies, e, sim, em nós mesmos, na comparação com a nossa infância, com os nossos sonhos, na aceitação de nossas desilusões e do mundo desfeito com o qual tivemos de nos conformar!...

Inútil discutir, no entanto. Os fatos aí estão e, no que me diz respeito, se aqui me apresento, é porque condescendestes em me acolher e não posso questionar a vossa generosidade. Resta-me corresponder, na medida de minhas possibilidades, à tarefa que me prescrevestes. E direi que o faço com o maior orgulho e o maior amor porque, com essa Cadeira e seus antigos ocupantes, não obstante a diferença qualitativa, sinto a mais viva afinidade.

*  *  *

Seguindo a trilha com que Adonias Filho identificou sua Cadeira, a 21, com a preocupação essencial da defesa da Liberdade, identifico a minha, a 27, com a da fidelidade ao Espírito. Caracterizaram-se, de fato, seus ocupantes – sem que essa circunstância, é claro, implique qualquer ideia de exclusividade – pela coragem, pela intrepidez com que, a qualquer momento de suas vidas, colocaram, acima de tudo, o serviço do Espírito, a afirmação da verdade íntima em que acreditavam, como verdadeiros Cavaleiros do ideal pelo qual lutavam. Vede Nabuco em sua fé abolicionista que nada faz esmorecer, transformando-o no “Cruzado” que Graça Aranha evocou, em página célebre, destruindo “os muros da escravidão”, e, mais tarde, depois do triunfo da Lei Áurea, em sua fidelidade quase quixotesca à Redentora, à Dinastia que havia proclamado a Abolição. Vede Dantas Barreto, sem sucessor imediato, defendendo sem vacilação, ao longo de uma existência inteira, seu ideal militar. Vede Gregório Fonseca, fiel até a morte ao culto do Belo, da Arte, que ele sabe provocar “o ciúme dos deuses”, e que desde rapazinho veio afrontando sem temor ou respeito humano. Vede, enfim, Levi Carneiro que, na esteira de seu grande mestre, Rui Barbosa, dedicou toda a sua longa e produtiva vida à defesa da Justiça, da lei, do bem comum, da liberdade. São idealistas, são, essencialmente, servidores do Espírito.

São homens que não vacilam quando ante eles se apresenta a injunção do Espírito, a exigência, o dever de afirmação pessoal, a coragem da escolha, ainda que contra todos e contra tudo. E ninguém mais do que Joaquim Nabuco nos empolga nesse desafio do eu-próprio ao meio exterior que o procura tolher. Por duas vezes, nos momentos talvez máximos de sua vida, ele como que arremessa tudo fora, arriscando tudo perder, por simples fidelidade ao Espírito. São atestados de independência como raras vezes é dado ver; primeiro quando, em pleno sucesso social, procurando, mimado por uma aristocracia escravocrata, lança-se perdidamente na propaganda abolicionista, contrariando os interesses dos seus, de sua própria classe. Depois, quando, vitorioso, no auge da glória que lhe traz o triunfo de 1888, recusa-se a servir à jovem República por gratidão à Dinastia de Pedro II e de Isabel a Redentora.

Contra ele se ergue, em ambas as ocasiões, a matilha dos fanáticos, desses fanáticos de todas as épocas, incapazes de aceitar ou respeitar a liberdade de opinião, o direito de seguir os ditames da própria consciência. Lutando contra a escravidão, torna-se logo o “traidor”, o “trânsfuga”, o “estouvado” que abandonou a causa dos seus, de sua gente, de sua classe social, para lutar por um ideal adverso aos seus interesses e aos dos seus. Sobre ele convergem, então, não só o rancor, mas, como bem o observa sua filha e grande biógrafa, Carolina Nabuco, o “ódio ativo” de todos os futuros prejudicados. Mais adiante, monarquista por gratidão, apodam-no de sentimental, de romântico atrasado, cego aos interesses da Nação por considerações pessoais de reconhecimento, de devoção dinástica. E não será poupado, nem mesmo quando, bem mais tarde, instado, insistentemente instado para colaborar no grande empreendimento da defesa de nossos limites territoriais e, mais adiante, da visão pan-americanista de Rio Branco, reconhece a verdade maior de sua vida política, essa espécie de testamento ideológico que nos legou: para o serviço do País, não há forma de governo que possa ser erigida em absoluto. O absoluto é o serviço da Nação, a obra de patriotismo consciente. E Nabuco acaba aceitando “servir” à República. Então, contra ele, novamente se ergue a grita dos fanáticos – dessa vez, os saudosistas do partido monarquista, inconformados com o afastamento do poder.

De todos esses detratores, triunfa Nabuco em sua integridade de espírito, em sua fidelidade a si mesmo. E aí está ele, ainda hoje – e hoje mais do que nunca – na sua figura de corpo inteiro, talvez a maior que tenhamos pelo seu conjunto, de pensador e de político, de homem de ação e de escritor, de memorialista e de diplomata, de estilista que manejou a palavra com mais arte – e lembro, apenas, a evocação de Massangana – e com mais força persuasiva – basta reler seus discursos da campanha abolicionista –, de pessoa cuja finura e cuja cultura – não nos esqueçamos de que representou a quarta geração dos Nabuco no Parlamento – marcou um dos pontos mais elevados a que chegamos neste País, personificando aos olhos de Alceu Amoroso Lima “a imagem mais fulgurante do humanismo brasileiro em sua encarnação pessoal... solitário, único, inconfundível”, e tão bem sintetizado por Luís Viana Filho, no encadeamento de quatro adjetivos exatos, precisos: “vivo, ágil, impetuoso, idealista.”

É ante ele que se curva aqui, respeitoso, comovido, um de seus mais permanentes entusiastas. É, na verdade, o “desenho de criança esquecido pelo homem” que se reaviva e toma feições definitivas, confirmando apenas o ardor do colegial que há meio século atrás (então aluno dos extraordinários padres Barnabitas, a quem tanto deve em sua formação, e de público, aqui o quer reconhecer, agradecido), lia Um Estadista Do Império e Minha Formação quase com o mesmo interesse com que devorava os romances de Victor Hugo, de Alexandre Dumas e de Jules Verne.

*  *  *

Para patrono desta Cadeira, Joaquim Nabuco escolheu Maciel Monteiro – escolha que, não resta dúvida, causou surpresa a muitos. Enquanto Machado de Assis se fixava em José de Alencar; Coelho Neto em Álvares de Azevedo; Olavo Bilac em Gonçalves Dias, o lance de Nabuco surpreendia, parecendo a todos modesto demais — um voo a meia altura, ao lado de um voo de águias. Sua explicação: pernambucano homenageando pernambucano, não nos dá a chave total do problema. Cremos antes, ou também, que Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araujo via em Antonio Peregrino Maciel Monteiro, acima de tudo, um ser a si próprio semelhante, um parente muito próximo pelo espírito: o elegante, o fino, o diplomata, o parlamentar muito prendado, o aristocrata de ótima aparência e de sucessos brilhantes, inclusive femininos. Quem sabe, senhores, Quincas, o Belo estaria reverenciando o Dr. Cheiroso? Ou talvez – insinuo eu na minha relembrança de menino romântico entusiasmado por belas sonâncias, que ainda hoje permanecem vivas – quem sabe, Nabuco pensou e demorou por alguns instantes, apaixonado, na extraordinária harmonia desses versos de Maciel que todos aqui conhecem, mas que nunca é demais relembrar em momento de euforia acadêmica:

Mulher celeste, é anjo de primores
Quem pode ver-te sem deixar de amar-te,
Quem pode amar-te sem morrer de amores?

*  *  *

A Joaquim Nabuco, a esse espírito ao mesmo tempo fundamentalmente nacional e arejadamente universal (inglês, francês, europeu; americano do Norte, latino-americano, mundial), a esse cultor dos mais variados matizes das opiniões mais requintadas, feliz emigrado das influências do superespiritual Renan para o retorno tranquilo à simples e irretorquível fé católica de seus antepassados e de sua infância de “coroinha”da capela de São Mateus, em Massangana, sucedeu nessa Casa de contrastes permanentes, um tipo de espírito radicalmente diferente: Dantas Barreto. Apesar de intelectual, romancista, dramaturgo, era Emigdio Dantas Barreto, essencialmente, um homem da lei, da ordem, do dever, da obediência: um soldado, na melhor acepção do termo.

E eis que esse contraste nos leva a encarar a nossa Cadeira à luz de um novo ângulo: o da oposição entre a Arte e a Lei, entre o Belo e o Real, entre a Ficção e a Ciência, enfim, entre o Espírito Grego e o Espírito Romano. Dantas Barreto, no seu esclarecido culto da lei e da ordem – que tanto amamos, que jamais subestimaremos –, na firmeza e na pujança de suas descrições precisas, na honestidade de sua narração da luta e do esfacelamento de Canudos, nas suas diversas anotações de problemas políticos e militares, nos seus magníficos retratos de Pinheiro Machado, de Campos Salles, de Rui Barbosa, tem tons nitidamente romanos, quase direi cesarianos, enquanto Nabuco, em sua vida dramática e polêmica, lembra, à sombra protetora de Demóstenes, figuras gregas, notadamente Alcebíades – como, aliás, se comprazia em chamá-lo, na mocidade, o seu velho mestre, Barão de Tautpheus, que por certo não deveria prever, então, o interesse que iria inspirar ao seu discípulo querido o grande enigmático da enigmática Grécia: Alcebíades, o Belo.

Nesta Cadeira, se Dantas Barreto, militar e político, é o romano em oposição ao grego e não político Joaquim Nabuco, já seu sucessor, Gregório Fonseca, é o grego que irá anteceder ao romano Levy Carneiro. De um lado, predominando, a Arte, a inspiração, a preocupação literária – a Arte como ideal; de outro, o respeito da lei, do dever, a hegemonia do imperativo moral – o culto da ideia. Entre a Literatura e a Filosofia, a Arte e a cogitação ética, situam-se, na variante de suas individualidades, os que, nesta Cadeira me acolhem, clareando o caminho a seguir.

*  *  *

E ninguém cultuou mais a Arte, como ideal, do que Gregório Fonseca, o sucessor de Dantas Barreto. A ela destinado como um sacerdote de antigo culto, por ela viveu, por ela sofreu, e outra coisa não fez em sua vida senão glorificá-la. Rapazola ainda, bem o sabeis, perde seu primeiro emprego porque o patrão, velho e bem nutrido comerciante do fim do século passado, encontra-o lendo (ainda que em hora de descanso) um livro de “poesias”. Crime imperdoável: condenação imediata. Mas, não se amofina muito o réu com a desdita: o poeta em que estava mergulhado era Olavo Bilac... e Olavo Bilac ele o continuará a ler a vida inteira, embevecido.

Pois esse militar de carreira (é verdade que cedo abandonada, em virtude de injusta preterição) não é um “crente”, um romano, como Dantas Barreto. O sangue que lhe corre nas veias é o grego, e ao endeusamento da Grécia, de seus ideais, de seu culto à Beleza, apolínea ou dionisíaca, consagrará sua obra literária – pelo menos, o melhor dela, suas duas conferências famosas: “O Ciúme dos Deuses” e “Estética das Batalhas”. Acima da Ciência, a Arte; acima da Lei, o Belo. A Arte é imortal, a Poesia é a lei suprema. E Gregório Fonseca esquematiza sua visão do mundo:

Ser artista: produzir uma obra prima; criar com o belo existente o belo que não existe; fixar para sempre um aspecto novo da Beleza que se não repetirá; avançar do seu tempo, do seu século, abrindo largas estradas ao pensamento futuro: para os gregos, era divino; é heroico, na expressão de Carlyle. Pelo infinito desconhecido que idealiza, a Arte pode ser também uma religião. Atenas sonhou agrupar em torno à sua beleza, simples e serena, o planeta escravizado; venceu-a – fatalidade do progresso humano – o frio e austero direito de Roma.

*  *  *

Do “austero direito de Roma”, foi Levi Carneiro, sucessor de Gregório Fonseca nesta Casa e meu antecessor imediato – meu mestre e meu amigo –, o mais completo, o mais brilhante, o mais perfeito dos representantes que até hoje tivemos, desde o desaparecimento de Rui Barbosa. Sua folha de serviços ao País e à causa da Justiça e da Liberdade é inestimável, como enorme foi o renome internacional que alcançou. Acompanhou-o sempre o mais vivo sucesso, colocando-o entre os mais notáveis no meio daqueles que, neste País, tinham a possibilidade de aspirar a não importa que posição, por mais destacada fosse ela.

No entanto, ouçamo-lo falar, ouçamo-lo testemunhar sobre sua vida, sobre o ideal que a norteava, e logo a surpresa nos acomete, decisiva. Não grita, apenas murmura:

Advogado, simples advogado, sem aptidão para mais, eu me consolo de me sentir destituído de aspirações maiores, amando a minha profissão na sua beleza, na sua força, na sua humildade, nas suas aflições, no que comporta de abnegação, de lealdade, de desinteresse; no que exige de desassombro, de probidade e de vibratilidade; no que proporciona de independência, no que ensina de tolerância.

Não vos peço, de pronto, que atenteis na modéstia dessas palavras – modéstia evidente, por demais evidente. Apenas, para o que esconde: a fidelidade ao Espírito. Pois, que significam essencialmente, essas declarações desse homem que foi tudo, quase tudo, em nosso País? E eu levaria muito tempo, minutos incontáveis talvez, se enumerasse aqui, com rigor, todos os títulos que conquistou, todas as posições que ocupou, todas as medalhas que recebeu – e todos os postos que soube recusar –, tudo, enfim, o que retrata a trajetória desse filho da simpática e modesta Niterói, a quem, no fim da existência, presidentes da República encomendavam projetos de Constituição, na mesma medida que ante ele se haviam aberto os portais da Corte Internacional de Justiça de Haia ou os da Conferência Pan-Americana de Lima – sem falar de suas responsabilidades como constituinte, em 1934, como consultor-geral da República, como fundador e primeiro presidente da Ordem dos Advogados, até sua consagração literária como membro e como presidente desta Casa.

Julgo inútil, porém. Todos vós sabeis que o “advogado, simples advogado, sem aptidão para mais”, se foi um grande advogado, o advogado padrão de sua classe que todo o País, não se fartou de saudar e respeitar, foi além disso, mais do que isso, um grande jurisconsulto, um extraordinário cultor do Direito e dos problemas jurídicos – que Luiz Gallotti proclamou “um dos maiores de sua classe” – e, também, um seguro homem de letras, dominado pela “paixão da obra puramente literária” (na feliz conceituação de Josué Montello) que, por toda a vida, só fez justificar e confirmar seu justo ingresso nesta Casa e o exercício de sua Presidência. E tudo isso, servido por uma das mais admiráveis qualidades que conheço: a capacidade de admirar, tão rara nesta nossa época de demolidores e desmitificadores.

De fato, Levi Carneiro foi, a todo instante de sua vida, um homem de admirações, de grandes admirações, de verdadeiros “cultos” que seu sentido de lealdade obrigava a não esconder, a não “regatear” – a proclamar gritantemente. Mais do que a todos, admirou Rui Barbosa, seu mestre das primeiras lutas forenses, seu mestre das derradeiras inspirações jurídicas. Admirou, cultuou Rui, mas não foi só a ele que celebrou. Também a Nabuco e Rio Branco, Mauá e Campos Salles, Tamandaré, Oliveira Viana, Pedro Lessa, Afrânio Peixoto, Edmundo Lins, Gilberto Amado, Fernando de Azevedo, Cassiano Ricardo, Gilberto Freyre, esses e muitos outros, nacionais, e estrangeiros, como San Martin, Mitre, Bolivar, Rivadavia, tantos, tantos – e sempre o mesmo entusiasmo, sempre aquela mesma capacidade de compreensão e inteligente fervor com que também acompanhava todas as manifestações literárias, sobretudo as poéticas, das mais velhas às mais jovens gerações.

Atentemos pois, agora, e de um modo todo particular, naquela intencional carta de apresentação: “Advogado, simples advogado...” E, a um exame mais refletido, à luz de toda a experiência profunda de seu viver, não será difícil descobrir o que há de mais essencial em Levi Carneiro: a fidelidade a si próprio, ao ideal que se propôs defender, à preservação dos valores do Espírito; a irredutibilidade em seu amor e em sua veneração pela Lei, pelo Direito, pela Liberdade, pela Justiça, pela Ordem, pela Nação. A sua absoluta fidelidade ao Espírito.

Se muitas vezes vos entusiasmastes pelo jurisconsulto; se vos irmanastes ao defensor de liberdades, públicas e privadas; se aplaudistes, em tempos pretéritos, o apologista do federalismo, de cuja excelência se embebera na leitura de Rui e de Nabuco; se acompanhastes as angústias do municipalista, do defensor dos direitos da infância e da concessão de voto aos analfabetos, do sistemático adversário do júri; se vos orgulhastes do continuador dos sucessos de Rui Barbosa na Corte de Justiça de Haia; atentai no “advogado, simples advogado” e abismai o vosso interesse e o vosso cuidado nas páginas singelas e verdadeiras – simples, humanas – e quão inesquecíveis! – de O Livro de um Advogado. Nelas encontrareis Levi Carneiro todo ele, Levi Carneiro de corpo inteiro, Levi Carneiro em sua imensa capacidade de admirar e de servir, Levi Carneiro “advogado, simples advogado”, tal como ideou que devia ser, e o foi, a vida inteira.

A esse “advogado”, na verdade, melhor poderíamos chamar: um servidor do espírito, um “sacerdote”, usando a expressão, tão adequada, do nosso Ivan Lins. Em teoria, concebe esse sacerdócio, tal como o vimos há pouco, quando fixa, tão modestamente, os limites de sua existência, e, mais adiante, acrescenta:

[...] advogado... nenhum advogado o é verdadeiramente, nem logra o prestígio e a estima de seus próprios colegas – se não tem uma consciência inflamada pela Justiça, o empenho constante da verdade, a preocupação ininterrupta da moralidade – se não é, em suma, um perfeito homem de bem.

Na prática, os exemplos aí estão para mostrar como esse homem de bem – esse “perfeito homem de bem” na vida pública e na vida privada, no desempenho das funções que exerceu tanto quanto na constituição de uma família cuja integridade a todos nos honra – justificou plenamente seus conceitos teóricos, suas exigências morais. Pois não é ele o advogado que, certa feita, até nas grades da Casa de Detenção vai parar – por uma noite que seja – na defesa dos direitos de determinados comerciantes, seus constituintes? Pois não é ele o advogado que, um dia, é obrigado a deixar sua filha, ainda muito pequena, no leito de agonia, para atender à ineludível necessidade de comparecer à assembleia geral de uma simples sociedade anônima? Pois não é ele o advogado que recusa o cargo de procurador-geral da República, alegando que, apesar da sedução do posto, “em bandeja” oferecido pelo próprio Presidente da República, Getúlio Vargas: “Logo reconheci que precisamente os meus hábitos inveterados de advogado, que escolhe os clientes, não me permitiriam ser bom advogado de um cliente só, e de um de tantos, tão diversos, por vezes tão difíceis casos, como tem de ser a União Federal?”

A honestidade do advogado, a integridade do jurista –  a honestidade do indivíduo, a integridade de seu espírito – eis, sem dúvida, os limites dentro dos quais transcorreu a problemática desse “perfeito homem de bem” de quem me foi dada a ventura de ter sido amigo e constante devedor pelo apreço com que tantas vezes nos distinguiu, a mim e aos de minha família, e de quem me é concedida, agora, a subida honra de ocupar a vaga, na substituição de outros homens que, como ele próprio disse, ao aqui receber Gregório Fonseca, sempre tiveram, na preocupação pelo “bem público”, o seu “principal objetivo”.

*  *  *

Este, senhores acadêmicos, o quadro de valores que pesam sobre meus ombros e que, pela segunda vez, deveriam acabrunhar minha vã pretensão de aceitar um lugar à sombra de vossos galardões de servidores do Espírito. Mas, como poderia eu resistir a essa tentação, se, no pequeno horizonte de minha visão pessoal, outro ideal não tive, em toda a minha já hoje longa vida, senão esse de viver sem trair o Espírito, de manter sempre acesa essa fidelidade que aprendi no berço e que meus mestres, os de meninice como os de maturidade, os de vida ensinada como os de vida vivida, sempre me fizeram colocar acima de tudo, glórias como posições, recompensas como triunfos literários?

Minha geração – perdoai que ainda hoje fale em “geração”: slogan do primeiro livro que publiquei, já lá se vão mais de quarenta anos – foi uma geração que lutou, que sofreu, que sangrou, que se consumiu nessa batalha em torno da fidelidade ao Espírito. E, se muitos erros cometeu, se se deixou levar a posições extremadas, quase inumanas às vezes, frequentemente fronteiriças dos piores abismos – dos que ladeavam a direita e dos que ladeavam a esquerda – não duvideis, um só instante, de que somente uma preocupação a norteava: essa obsessão intimorata na defesa do Espírito.

Esquecemos tudo – até mesmo, por alguns momentos, a sangue cristão que corria em nossas veias –, porque nos sentimos apavorados com a ideia de que o Espírito estava em perigo, de que forças demoníacas avançavam para destruí-lo à sombra da avalanche revolucionária que começava solapar o Ocidente, fazendo desmoronar a burguesia que já havia traído o Espírito desde o século XIX. Nossa febre subiu, incontida, irreprimível. Nossa angústia não teve limite, incontrolável. Pronunciamos palavras loucas, muitos de nós pelo menos. Mas, compreendei que não era a ninguém em particular que nossa violência visava – apenas a obsessão de preservar o Espírito guiava a nossa “santa ira”. Vivíamos eriçados, de arma em riste, verdadeiros Dom Quixotes desse Espírito de que nos havíamos investido Cavaleiros.

Quixotismo vão, o nosso, ó meu caro Jorge Amado, ó meu caro Adonias Filho, ó minha muito cara Rachel de Queiroz, que sofremos perseguição e tivemos o nosso nome “pichado” em paredes de jornalecos murais – o Espírito não estava em perigo, o Espírito não arriscava ser destruído por legião alguma, de direita ou de esquerda, porque o Espírito não podia ser destruído – porque o Espírito jamais poderá ser destruído.

Foi um dos meus dois grandes mestres de romance, Cornélio Penna, – o outro mestre, era Lúcio Cardoso que, vivo fosse, aqui deveria estar, em meu lugar, ele o maior de nossos romancistas –, foi Cornélio Penna quem me abriu os olhos um dia para a verdade encerrada num dos maiores momentos do Evangelho, e que considero a chave de meu reencontro comigo mesmo, com o meu sangue cristão que os devaneios nietzscheanos haviam arrastado quase à incredulidade. Abriu-me ele docemente os Evangelhos e eu pude ler: na sombra do Jardim das Oliveiras, Jesus acaba de ser entregue aos homens dos sacerdotes, e à sua volta, tudo é medo e desordem – é noite –, tudo é prenúncio de renegação e sacrifício. E São Marcos relata: “Então, desamparando-o, todos os seus discípulos fugiram. Ia-o porém seguindo um mancebo, coberto com um lençol, sobre o corpo nu; e o prenderam. Mas ele, largando o lençol, lhes escapou, nu.”

Por que temíamos tanto, por que temermos tanto pelo Espírito, pergunto eu – ó meu caro Jorge Amado, ó meu caro Adonias Filho, ó minha muito cara Rachel de Queiroz –, se o Espírito é como esse inexplicável mancebo do Evangelho? Quem o poderá reter, quem o poderá algemar – que força, que poder, que massa de varapaus, que legião romana, que super organização, que manuseio de armas secretas? O “mancebo” escapará sempre, deixando o lençol, nu.

Nu é o Espírito. Ninguém mais nu do que ele em toda a variação dos tempos. Nu estava Sócrates ao beber a cicuta, nu estava Jesus Cristo no Madeiro Sagrado, nu estava São Francisco quando falava aos pássaros da Umbria. Nu está sempre o Espírito. Mas, atentai, atentai bem: nesse mancebo que larga o lençol e sai, nu, pelo vazio atroz do Jardim da Traição, se não estou querendo apontar, se não estou querendo insinuar, de modo algum, o nosso moço de hoje, despido de tudo, cabelos crescidos e desgrenhados, barba ao vento, não é possível também deixar de concordar que, no hippie do mundo em que vivemos, o que predomina, o que transcende todas as pequenas revoltas (pueris ou não) contra os erros dos pais (culpados ou não) e das gerações que os antecederam, (responsáveis ou não), é o medo, o pavor pelo destino do Espírito que eles julgam atraiçoado pelos que os precederam. Os perigos que denunciam, ameaças absurdas, inaceitáveis: – a guerra, a mecanização total, o Deus-consumo, a bomba exterminadora –, não são, em essência, perigos em si. São, fundamentalmente, a negação do Espírito, a traição à vida, aos seus valores inalienáveis. Mesmo que o não saiba e não suspeite, é contra isso que essa geração se contorce, grita, urra, e, numa reação de desespero, elege o abismo que ameaça tragá-la.

*  *  *

Espanta, pois, que contra o espírito acadêmico, contra as Academias, esteja voltado todo esse fermento novo que revolve e faz estremecer o mundo? Espanta que também a vossa, a nossa Academia, seja alvo dessa desconfiança, dessa onda de contestação?

Absurdo seria que assim não fosse, no mundo em que vivemos. Mundo dilacerado, mundo congestionado que perdeu suas bases, que sofre em seu equilíbrio essencial, mundo que luta contra todos os mitos, que não tem mais eixo nem apoio, ideal nem segurança, mundo perdido no labirinto das negações sistemáticas – mundo sem Deus que tenta inventar numa figura de Jesus Cristo humanizado, desdivinizado, quase caricato, um ersatz para o desespero que o envolve.

Mundo, entretanto, que continua a existir, ancorado em suas bases eternas, em tudo o que resiste ao tempo e às mudanças, aos modismos e aos ímpetos de destruição, ao vaivém das ondas de revolta e de negação. Mundo que encontra nas Academias, no espírito das Academias, um de seus mais firmes sustentáculos, mundo de que sois seguramente, senhores membros da Academia Brasileira de Letras, no âmbito de vossa esfera de ação, o mais seguro dos esteios.

Porque sois os representantes do Espírito e ele é eterno e não sofre variações e limites de condicionamento. Não conhece o tempo e não respeita as contingências econômicas. É como o gênio. Não distingue nobres de plebeus, não se curva ante os potentados e também não bajula a populaça. Ignora a mocidade, os ímpetos arrasadores das gerações que pensam que destruir é criar, como faz pouco do olimpismo dos mestres que, fugindo à velha lição nietzscheana de Zaratustra, só querem ensinar, ter discípulos, e sonham estancar as fontes novas que jorram desordenadamente, ao sabor da inspiração, da renovação. O gênio, manifestação suprema do Espírito, não tem idade. Genial é o menino Rimbaud, aniquilador de todos os equilíbrios de sua época, como genial é o velho Goethe, revivendo, condensando, agrupando em torno de si, do seu eu octogenário, tudo o que décadas e décadas de incessante experiência pessoal trouxeram à sua extraordinária capacidade de compreensão e apreensão do mundo que viveu como homem algum jamais viveu o seu mundo. Não duvideis: o gênio é como o Espírito: não conhece países, raças, idades, não respeita lugares, privilégios, dons de talento ou educação, decoro, virtudes pessoais, vontade, esforço, nada – e dele não é preciso ter “ciúmes”, como tão bem percebeu Joaquim Nabuco quando disse: “O gênio há de revelar-se de qualquer modo: ele faz sua própria lei, cria o seu próprio berço, esconde o seu nascimento como Júpiter infante, no meio de seus coribantes.” Pois o gênio, como Espírito, bem o sabeis, “sopra onde quer”, como São João o atesta: Spiritus ubi vult spirat.

Sopra onde quer, nas academias e nos bares, nas catedrais e nas prisões, nas praças de esportes e no laboratório dos cientistas, na privilegiada pena dos protegidos dos reis ou nas anotações em rasgados de papéis atirados nas sarjetas. Para os perseguidos como para os ricos, os fartos, a lei é a mesma: a escolha imprevisível, o mistério, o milagre da eleição divina. E nem mesmo o sofrimento – essa suprema prerrogativa dos Bloy, dos Dostoievsky, dos Soljenitzine – pode obscurecer o chamado divino que também eterniza os Miguel Ângelo, os Racine, os Proust. Não há lei, não há condicionamento para o Espírito.

Sopra onde quer, não tenho dávida sobre isso – e não o podeis ter, vós, senhores membros desta Academia onde tantas vezes ele já soprou e onde ainda soprará outras muitas vezes. Se tendes um recinto, lugar regulamentado, as vossas portas estão abertas, sempre abertas para o Espírito, para a sua penetração, tanto sob as formas extremas da revolta dos Rimbaud – tivestes, ainda há pouco tempo, Graça Aranha – quanto do olimpismo goethiano – tivestes, também, Coelho Neto. Sois a síntese, o equilíbrio, a terra matriz e ubérrima, o celeiro, a Casa que tudo abriga.

*  *  *

E permiti que, para terminar, vos relembre a parábola de um velho e grande mestre francês, que muito amei na mocidade e ainda hoje venero, como sei que muitos de vós o venerastes e venerais ainda: Maurice Barrès. Coloca ele, no final de sua admirável La Colline lnspirée, o diálogo de duas forças: a planície e a colina; a planície, onde sopram todos os ventos e a colina onde se construiu uma capela, símbolo de tudo o que fica e resiste ao tempo e ao ímpeto das inovações:

“Eu sou”, diz a planície, “o espírito da terra e dos mais longínquos ancestrais, a liberdade, a inspiração.” E a capela responde: “Eu sou a regra, a autoridade, o elo de ligação. Sou um corpo de pensamentos fixos e a ordenada cidade das almas.” “Eu agitarei tua alma”, prossegue a campina. Aqueles que vêm respirar meu ar, põem-se a formular perguntas”... Mas a capela objeta: “Visitante da planície, traze-me teus sonhos para que eu os purifique; teus impulsos, para que eu os oriente. É a mim que procuras, que desejas, ainda que sem o saber... Quem quer que sejas, nada do que há em ti de melhor, te impede a aceitação do meu socorro... Fomos preparados, eu e tu, por nossos pais. Encarno-os, como tu mesmo os encarnas. Sou a pedra que dura, a experiência dos séculos, o depósito do tesouro da raça. Casa de tua infância e de teus pais, assemelho-me às tuas tendências profundas, àquelas mesmo que ignoras, e é aqui que encontrarás, preparado para cada uma das circunstâncias de tua vida, o verbo misterioso, elaborado para teu uso quando ainda não existias.”

E o próprio Barrès comenta por nós: “Eterno diálogo desses dois poderes, a qual deles obedecer? E será preciso escolher entre eles? Ah, muito antes, que possam essas duas forças antagônicas se defrontar eternamente, sem nunca uma vencer a outra! O que poderá representar um entusiasmo que consista numa simples fantasia individual? E uma ordem que não esteja mais animada por um entusiasmo qualquer? A capela nasce da planície e dela se nutre perpetuamente – para a nossa salvação.

Senhores acadêmicos, bem o sabeis, vós sois do Espírito, vosso é o reino da “pedra que dura, da experiência dos séculos, do depósito do tesouro da raça”. E eu vos peço permissão para lembrar: não tendes por que temer. Não morrereis com o tempo, com o suceder das gerações. O vento da planície, o anseio e a grita dos jovens de hoje e de amanhã não vos destruirão. Serão, pelo contrário, com a impulsão de sua força intocada, com o destemor de sua mocidade, a vossa nutrição, o alimento, o sangue de vossa Eternidade. Permanecei sendo o que sois: “A pedra que dura, a experiência dos séculos, o depósito do tesouro da raça.”

6/6/1972