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Osvaldo Orico

TERRA QUE TREME

- Que fazeis pr’aí, homem de Deus? Não tens em que entreter-se hoje? E aquele mato que está por queimar? E o monturo dos fundos, quem vai remover? Onde já se viu semelhante preguiça?

Era a voz do feitor, correndo do pátio da fazenda o pobre do Pancho. Pancho Papaterra, como ele o chamava, só porque o rapaz tinha a cor parda do solo e vivia com os pés metidos na lama, como um boneco de barro. Seu derivativo, para espairecer das fadigas do trabalho, era vir espiar Cholita, inclinada no bastidor de bordado com um ar de estampa antiga. Era a sua debilidade. Um momento de folga, um minuto de distração do ferrabrás, e lá vinha o Pancho para junto do alpendre extasiar-se ante a presença da moça, colorindo os olhos baços com aquela pintura, molhando a vista naquela paisagem. Cholita era fria, indiferente, mas sem crueldade. Consentia naquela adoração distante, deixando-se surpreender e admirar pelos olhos fascinados de Pancho:

- Pobre! Deixá-lo pr’aí... Que mal poderá resultar disso? Seria impiedade enxotá-lo quando lhe dá a mania.

Por ela, ficaria por ali quanto tempo quisesse. Não lhe queria mal, apesar dos olhos súplices com que a espreitava, uns olhos ternos na aparência, mas no fundo desejosos. Não podendo revelar a cobiça, refletiam a humildade.

Já o mesmo não se passava com o pai da moça, o truculento Don José, senhor de baraço e cutelo em toda a redondeza. Não era a primeira vez que o zelo ou a crueldade do feitor o varria da presença de Cholita, interrompendo o êxtase do monstro. O coitado volvia aos misteres pesados, recolocando a canga nos ombros disformes. Os braços peludos e grossos tinham que enfrentar novamente o monturo, o charco, a lama, de onde pareciam ter nascido e com os quais se confundiam na labuta de todas as horas. Os olhos guardavam, cabisbaixos e humilhados, a vergonha da fascinação sem esperança. Sua única distração era aquela. Isso mesmo poucas vezes lhe era permitido, porque os cuidados de Don José com a filha não consentiam semelhante passatempo.

- Não quero mais a presença desse tipo perto da casa! Que fique no curral, que é o lugar dos porcos. E essa! Pôr-se agora a fingir que é gente, o Papaterra!...

- Não fales desse jeito, pai. Ele não faz por mal. Não tem nenhum carinho no mundo... É natural que queira aproximar-se de alguém. Por que o tratas assim?

- Trato como devem ser tratados todos esses animais. Nenhuma contemplação. Sei o que valem. Sei do que são capazes.

As advertências da moça não conseguiam influir no espírito despótico e atrabiliário do pai. Don José mostrava-se intransigente, confiscando ao capataz todas as oportunidades de vir postar-se nas imediações da casa e prosseguir naquele estado de embevecimento que quase o humanizava. Porque a atitude de adoração era o meio de humanizar a figura grotesca, suja e terrosa de Pancho, a única porta pela qual ela se comunicava com o mundo. Saía de dentro dos farrapos, escapava-se da imundice, como se a libertassem do cativeiro as asas de um sonho. O físico abjeto, chumbado ao solo, ganhava uma expressão mística, ajeitando-se na sua postura, como se o sentimento interior pudesse remodelar o volume físico, atenuando-lhe as feições primitivas e bárbaras. Encostado na cerca, distraído, imóvel, o monstro parecia menos ignóbil do que acurvado sobre o lodo, a remover a lama da fazenda com as mãos grossas e encharcadas. Quando estava na faina não se sabia onde terminava o entulho e começava o homem. Ambos confundiam-se na mesma escravidão e no mesmo aspecto, enlaçando o seu destino ingrato, como se um se prolongasse no outro. Libertando-se do charco, o monstro como que se libertava também de sua carapaça, incorporando-se à humanidade pela tangente da ternura. Não seria possivelmente um ser humano; mas deixava de ser bicho. Desprendia-se da forma oleosa do barro e era quase gente, com a sua tristeza comunicativa. Afinal, ele pensava. Afinal, ele sentia. E essas duas coisas eram as únicas compensações da natureza. Por via delas é que teimava em fugir do lodo e espreitar, sempre que podia, a imagem de Cholita, a bordar no pátio da fazenda. Quando ela erguia os olhos do rascunho do bastidor, topava com Sancho, agachado lá adiante como uma sombra. Disfarçava o horror que lhe tinha com uma espécie de piedade e tolerância. No fundo, sentia medo; mas não queria agravar a cólera do pai denunciando o pavor que lhe causava semelhante aparição. Iludia-o com a sua bondade, mostrando-se cortês e generosa. Dento dela, porém, travava-se um drama. Porque desconfiava dos instintos que trabalhavam aquela presença estranha. Sabia que essa resignação era fingida; que essa doçura era hipócrita. Buscava tranqüilizar as outras pessoas sobre a conduta de Papaterra, figurando-o um ser inofensivo, poemático, irreal. No íntimo, porém, o pavor a arrepiava. Sentia uma inquietação, um mal-estar. Não essa inquietação nem esse mal-estar que açoitam a mente, povoando-a de fantasmas e visões; mas um desassossego vital, como se aquela caricatura humana lhe esticasse os nervos, lhe mexesse com a vida. Não sabia explicar. Toda vez que ele a vinha surpreender no seu passatempo favorito, uma inquietação lhe sacudia o corpo, fazendo-o estremecer. Continha-se. Procurava dominar-se para não denunciar a ninguém o seu estado. Principalmente ao pai, cuja violência podia ser fatal aos êxtases do monstro. Já lhe cortava o coração a maneira com que o enxotava de perto sempre que lhe percebia o rastro.

- Trata-o de outro modo. É gente como nós. Que culpa tem ele de haver nascido assim?

A intervenção da filha não aplacava a ira de Don José, se acaso bispava a carantonha de Sancho espreitando a moça no alpendre.

Açoitava-o. Xingava-o. Injuriava-o.

- Sai-te daqui, peste do diabo! Já acabaste de dar babugem aos porcos? Papaterra escapulia-se aos saltos, como um sapo, chafurdando novamente no chiqueiro, como lhe impunha o amo. A cara não denunciava a mínima revolta. Parecia conformado com a sorte. Os outros riam dele, zombando do vezo de intrometer-se no jardim para espreitar a moça.

- Este Sancho tem cada uma!

- Para o que havia de dar o biltre!

- Não se enxerga mesmo o safardana! Tirar-se de seus cuidados para andar espiando a senhora. Só mesmo uma surra bem dada.

Os comentários e as injúrias dos maiores da casa não lhe alteravam a máscara de barro. Era de uma resignação a toda prova. Fosse por inocência, fosse por instinto, o monstro não se dava por achado. Aceitava tudo com paciência, mostrando-se complacente e submisso às injúrias que lhe atiravam. Tudo isso fazia presumir que fosse de boa índole, dócil e resignado. Nunca se revoltava. Nem com o cativeiro, nem com o insulto. O patrão é que não lhe tinha nenhuma confiança. Adivinhava no seu íntimo tempestades ocultas.

- Vocês não imaginam de que são capazes essas criaturas!

E apontava para Papaterra, acocorado na sua mansarda, com a cara mais humilde e miserável do mundo.

Uma vez por outra, a peonada da fazenda promovia um farrancho. Havia dança e vinho. Bailava-se e bebia-se. Papaterra, porém, não se metia nos furdunços. Não havia quem conseguisse desentocá-lo do mocambo. Dali só saía se obtinha uma escapulidela. Então, esgueirando-se pelo cercado, ia à cata de um lugar de onde pudesse espreitar a moça. Era a única distração de sua vida. E enquanto não o corriam dali com chibatadas ou palavrões, o tipo deixava-se ficar na sua cisma, estendendo os olhos em todas as direções onde Cholita pudesse aparecer ou ser vista.

A fazenda ficava a pouca distância da cidade. Do avarandado da casa via-se a estrada que levava a Chilan, como um braço estendido agarrando o centro urbano. Duas ou três vezes na semana, Cholita saía para as compras. Era ela que abastecia a despensa da habitação, substituindo nas ocupações domésticas a mãe, que cedo se findara. Don Jose, conquanto demasiado zeloso com a filha, permitira que se encarregasse desses assuntos, mesmo para aliviá-la das leituras e dos bordados. Nada mais natural. O único que ficava aos pulos, quando a moça se ausentava, era Papaterra. O capataz não continha a intranqüilidade quando a via sair ou lhe parecia que não estava. Era como se lhe houvessem roubado alguma coisa, como se lhe subtraíssem, mesmo por pouco tempo, uma prenda ou uma jóia. Do atoleiro da fazenda, para onde o empurravam, ele esticava os olhos pela estrada, para seguir ou esperar que a moça voltasse. Os que o observavam naquela obsessão levavam à conta de cuidado as inquietações do infeliz. Pobre! Não tinha outra distração na vida. Nem sequer o vinho lhe apetecia. Que fazer? Criar uma preocupação, alimentar um sentimento qualquer. Cholita era a única pessoa que parecia apiedar-se dele. Pelo menos não o escorraçava, como os outros. Então que sucedeu? Insensivelmente o capataz se foi deixando atrair pela generosidade da moça, transmitindo a essa condescendência a ternura que jamais lhe fora permitido dedicar a alguém. Todos zombavam dele. Ou expulsavam-no de seu convívio. Então Papaterra obcecou-se pela única mão que não o maltratara, pelos únicos olhos que se compadeciam dele. Era a explicação que se podia dar àquela maneira de votar-se a uma pessoa. Assim pelo menos o entendia a gente do lugar. Menos o fazendeiro, homem ríspido e autoritário, que excluía de suas cogitações toda espécie de sentimentalismo. A humanidade estava para ele perfeitamente distribuída, havendo que manter cada um em seu lugar. Quem nasceu para a servidão, devia contentar-se em servir. Pária é pária. A natureza sabe o que faz. Por isso existem o trigo e o joio. Em suas mãos estalava sempre o chicote, argumento que servia para completar a sua teoria. E, muitas vezes, para impô-la.

A verdade é que os fatos lhe davam razão. Suas terras prosperavam. Entre a cidade e o campo, a fazenda era que nem um brinco de permeio. Não havia quem não parasse por ali para admirar as buganvílias que subiam pelo terraço e emolduravam as janelas brancas, tingindo de vermelho a frente da habitação. E as vinhas, caminhando pesadas de cachos sobre os varais das pérgulas. E os pessegueiros! E os canteiros de cravos! E ao fundo, espiando de longe e do alto, pinheiros esguios e contemplativos. Mãos obedientes haviam arrancado do brejo aquela paisagem feiticeira. Os ombros dos párias haviam levantado palmo a palmo as vivendas que a circundavam. E o suor dos últimos suicidas saneava a terra lodosa que restava por brotar. Tinha razão Don José.

- Então, moleque, como vai o pântano?

- Vai indo, vai indo, patrão.

- Há dois meses já que me dizes a mesma coisa e vejo tudo no mesmo. Não há jeito de ir isto avante!

- Um pouco de paciência, patrão. É que essa terra é mesmo braba e escorregadia. Olhe que se tem feito força! Mas a bicha não dá trégua. Trabalha-se pela noite a dentro, até de madrugada. Pancho que o diga.

- Ora, o Pancho!

- Sim, senhor, patrão. Até de madrugada, com lama pela cintura. Vosmecê não se lembra, mas é a verdade. Depois, meu patrão, essas são as tais terras malditas.

- Lorotas! Malditos são aqueles que não sabem fazer as terras produzir. Não me venham cá com histórias da carochinha. Lá é que se ouvem coisas de feiticeiras e dragões. Metam o braço com vontade e verão se isto seca ou não seca. Também com as léguas do lado se passava o mesmo. E hoje! E hoje! Lá está o massapé coberto de laranjeiras.

E Don José mirava orgulhosamente as áreas arrancadas ao pântano.

- É verdade que tínhamos então um braço. O pai do Pancho não media as horas de trabalho. Tinha de fazer, fazia.

- Por isso mesmo, patrão, acabou do jeito que se sabe: misturado com a lama. É preciso cuidado. A terra é traiçoeira. Quando quer se vingar, não há quem lhe escape...

A insinuação do capataz ia ao fundo da alma do fazendeiro, despertando-lhe recordações da maneira pela qual se assenhoreara daquelas áreas. Diziam-se coisas. Aquilo tudo estava em mão de uma pobre gente que, de uma hora pra outra, fora obrigada a abandonar suas palhoças e ranchos. E se dispersara pelas redondezas, vagando sem teto, como almas penadas. Então vinham as pragas. E uma delas caíra exatamente sobre o capataz mais fiel de Don José. Morrera abraçado ao solo. O filho, o pobre do Pancho, era aquela desgraça. Parecia uma vingança da terra, com a sua aparência de sapo escravizado ao charco.

A ambição de Don José não via tais indícios. O que ele queria era a riqueza, a propriedade, o triunfo. Não lhe importava como consegui-lo. E à custa do sacrifício de quem fosse. Podia tudo ir para o diabo! Contanto que as lavouras cobrissem os sítios de que se apossara. O resto era conversa fiada...

- Por que não compra também as terras que ficam do outro lado da estrada, patrão?

- E o homem está disposto a vendê-las?

- Claro! E, se não estiver, a gente o convence!

Para todas as violências havia sempre um argumento. Não foi necessário muito esforço para persuadi-lo da conveniência de fazer o negócio. Bastou a idéia. Da realização se encarregaria ele. Mandou arrear o cavalo. Juntou os homens. E foi. Cholita ficou em seu bastidor de bordado, distraída com os matizes das lãs que lhe coloriam o linho. O dia passou calmamente, sem que ela levantasse os olhos do pano. Nem mesmo para ver a tarde, que oferecia um aspecto heróico. O céu vermelho parecia lutar com a noite, opondo-lhe a resistência de grandes nuvens rosadas. A cordilheira, ao longe, batida de sol, escaldava. Por fim, o horizonte se deixou encher pela noite e a moça interrompeu o trabalho, estendendo os olhos à noite que chegava macia e veludosa como os novelos que lhe caíam das mãos. Desceu ao portão para espiar a estrada. O pai demorava. Já passava das oito sem que voltasse. Esperou ali um tempo. E nada. Nisto sentiu alguém ao seu lado tocar-lhe a mão. Um coisa se movia sob seus pés. Baixou os olhos para identificar o que fosse. Quase recuou horrorizada. Logrou, porém, conter-se. O Papaterra, esgueirando-se pelos canteiros, chegara até ela e beijava-lhe os dedos. A princípio, com receio. Depois, com sofreguidão.

Era uma carícia úmida, esquisita, escorregadia. Como se o lodo subisse do solo. E a enlameasse. Sempre tivera por aquele ente estranho uma grande piedade mas naquele momento, sentindo mais que a sua presença, o seu contato, tomava-se de medo, de nojo. Evitava, porém, denunciar o pavor que a dominava. E permanecia ali, imóvel, como que presa à terra, sem dizer palavra, sem fazer um movimento. O capataz, estimulado por uma aparente benevolência, avançava com as mãos pelos braços de Cholita, envolvendo-os em afagos súplices, derretidos... E como não encontrasse resistência, espalhava-as pelo rosto, pelos cabelos, sem que a moça se sentisse com ânimo de escorraçá-lo, de afastá-lo dali com os pés. Estava como que grudada ao solo, a respiração suspensa, os sentidos perturbados. Não se julgava dona de si mesma. Queria gritar; mas uma sensação nervosa lhe tapava a boca. Desejava fugir; mas as pernas desobedeciam à sua vontade, imobilizadas no terreno. E o pior é que as mãos de Pancho já não se contentavam com o rosto, nem com os cabelos. Varavam-lhe os seios, forçando o decote do vestido. Pela estrada, nenhuma sombra viva. Papaterra, desempenando o busto até antes acurvado e grotesco, ameaçava arrastá-la para o fundo do quintal, onde ele refocilava no brejo. Então sucedeu uma coisa que nem mesmo Cholita teria podido esperar: uma onda de sangue lhe degelou as pernas. E com elas arremeteu contra o capataz, obrigando-o a esgueirar-se pela sombra do jardim. Dali continuava a espreitá-la. Poucos passos o separavam do alvo. Humilhado e corrido, ameaçava-a ainda com a sua presença. Cholita alongou os olhos pela estrada, como a implorar proteção. E nada. De repente, sentiu que as vicejantes trepadeiras do alpendre desabavam, que a casa vinha abaixo, que as paredes não resistiam, que a terra se partia em pedaços, irritada e aflita, esticando os nervos na contorção de um minuto terrível, trágico. Um minuto, apenas...

Quiseram poupar a Don José a verificação do sucedido; mas ele teimou em visitar os escombros. Queria participar da tragédia pela dor, já que não lhe pudera oferecer a vida. Aquela vida egoísta, calculada, lucrativa... De longe via o espetáculo sinistro. Ambulâncias. Padiolas. Barracas de lona fincadas no solo como se quisessem costurar a terra feita em pedaços. Toda a ambição de uma existência estava ali arrasada. Nada escapara à catástrofe: a vivenda, o arvoredo, o gado, a lavoura. Desceu a remover o entulho para descobrir o que era mais caro ao coração. Os olhos empapados e feridos nada podiam distinguir: nem onde estivera a flor, nem onde houvera o monstro. Tudo era a mesma pasta informe. Massa escura sem vestígios de perfume ou de instinto. Cegueira da natureza. Revolta do solo! Força que não distingue a inocência ou o crime. A beleza ou a podridão.

Embalde se esforçava o fazendeiro para recompor destinos, em busca de um vestígio que lhe segredasse onde brilhara a estrela ou chafurdara o sapo. Embalde dava tratos à bola, já meio atarantado, para recompor um mundo que ele vira, que ele criara com a sua vontade e o seu chicote, um mundo sensível, ordenado, obediente. Onde cabiam a luz e a sombra. A estufa e a lama. O incenso e o asco.

Tudo era agora um só espetáculo. Uma única dor. Uma igualdade sem remédio, desperta subitamente a um simples arrepio da terra.

(Marabaxo, 1960.)

 

BATISMO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA

"Foi também ele quem manifestou as tendências modernas; e o que há de bom e natural no estilo do escritores também atuais é de seu exemplo que deriva.

CAPISTRANO DE ABREU

A posição de Alencar na história da literatura brasileira não é, como parece a muita gente e pareceu a José Feliciano de Castilho, um desafio às tradições da língua no que ela tem de belo e flexível, ondulante e móvel, desenvolto e plástico - a língua dos cancioneiros, de Gil Vicente, de Sá de Miranda, dos poetas que a usaram como instrumento do convívio humano e de comunicação com sua época.

Longe disso, embora seus romances houvessem provocado a polêmica que marcou o divisor de águas entre sua maneira de escrever e os clássicos d’além-mar, a expressão do jornalismo e do orador parlamentar não nos leva a considerá-lo um revolucionário desejoso de romper com a herança idiomática e estabelecer um padrão típico, suscetível de negar sua formação intelectual.

As diferenciações que imprimiu a seu estilo representam um rompimento com os compromissos da estrutura arcaica da língua, entravada pelo purismo dos clássicos, num processo de evolução semelhante ao que levaria Camilo Castelo Branco, Garrett, Rebelo da Silva, Latino Coelho a fugirem aos moldes clássicos, para darem à sua poesia autonomia e liberdade de movimentos.

É exato que Alencar foi mais longe em seus romances. Não só introduziu novos elementos na paisagem, com a presença do índio e sua coreografia visual, como deu à sintaxe da língua outra melodia pela simplificação que adotou e pela instrumentação dos períodos de que se serviu para tornar mais dúbil, flexível e plástica a fala brasileira de seus romances.

Nesse sentido, ainda que se lhe negue a autenticidade de um criador de tipos ou de renovador da escola romântica pelos precedentes e modelos a que obedece na escolha de personagens já captados por outras penas em outras literaturas, seu perfil de romancista emerge com a figura de um patriarca no gênero, pelas dimensões geográficas da obra que deixou, estendidas em diferentes latitudes, como se quisessem abraçar num ciclo ambicioso as barrancas de todos os rios onde garimpou os temas favoritos.

Quando o velho José Feliciano Castilho denuncia na imprensa, através de suas Questões do dia, a quebra dos padrões ortodoxos da língua usada por Alencar e enumera suas impropriedades e deslizes, em vez de cometer um agravo, faz-lhe um louvor: o de escrever por conta própria, independente das lições ultramarinas e disposto a seguir as nascentes já combativas da linguagem popular, por onde começa a reação da fala brasileira aos carcereiros do idioma.

É esse sentimento de rebeldia que leva o jornalista e crítico José de Alencar a censurar os versos de Domingos José Gonçalves de Magalhães, atacando-lhe A Confederação dos Tamoios, por entender que a elaboração da obra ficou abaixo do tema por sua dependência aos filões da poética lusitana, de que ficaram prisioneiros seus versos.

Quem ler os reparos que lhe fez o articulista, verá que Alencar, ao contrário de Boileau, reclamava uma alteração de ritmos e cadências novas para manifestações oriundas de nossos motivos históricos e regionais.

Esse cuidado em preservar sua obra da submissão aos textos clássicos é a primeira condição que abona a faculté maîtresse de Alencar como romancista e pioneiro do gênero em nosso país. Porque, ainda que se venha a discuti-lo ou a negá-lo em sua originalidade, sob a alegação de nos ter deixado um mural de imagens e não uma galeria de tipos, arrancados à vida e não trazidos da lenda, seu comportamento obedeceu a uma fase histórica das nossas letras e foi produto do instante lírico de uma corrente que se perderia no tempo e no espaço, se a pena do escritor não o houvesse captado na prosa saborosa de seu engenho.

Negar-lhe o patriarcado do romance seria o mesmo que negar a significação da figura de Gonçalves Dias na busca dos heróis de nosso fabulário épico, refugando um material riquíssimo da era nuclear em que viveu, onde o urânio existente nas tradições e reminiscências das tribos indígenas permitiria a usina geratriz dos únicos poemas verdadeiramente nacionais que elas nos legaram.

E não se diga que Gonçalves Dias escreveu de oitiva, por "ouvir dizer", pois a cultura indianista de que era dotado, conferida depois na viagem empreendida à Amazônia (de que trouxe o abundante material recolhido em fontes primitivas e autóctones) serviria para trabalhos da maior importância nos estudos sobre a originalidade de nossas etnias...

Ainda que o gênio solar de Castro Alves, como cantor da raça escrava, lhe dispute o principado do verso, a corrente gonçalvina continuará a ver no autor de Juca Pirama o símbolo genuíno da alma brasileira através da evocação das tabas sagradas onde soaram maracás e borés.

Se é inautêntico o título de patriarca do romance brasileiro, conferido a José de Alencar pela importância e desdobramento de sua obra, teríamos também de confiscar ou desmerecer a valia de que se enaltece o vulto de Carlos Gomes como intérprete musical da partitura com que explorou um dos temas básicos da bagagem do escritor cearense - O Guarani - dando-lhe cor, som e alvorada, - os três elementos que tornaram permanente e garantiram o poder auditivo de sua criatividade, a caixa de ressonância da sua obra escrita.

Duvidoso de sua obra em face da posteridade, segundo as confissões feitas ao Visconde de Taunay, nos momentos mais críticos da enfermidade que o levou antes de completar cinqüenta anos de idade, José de Alencar não disputa com ninguém o título com que, nestas páginas, fixamos seu perfil literário e o papel que representou em sua época.

Machado de Assis, o único de nossos mestres que poderia pleitear-lhe o confronto, abdica desse direito, reconhecendo-lhe a majestade imperial no domínio da ficção, quando experimenta o espanto que lhe causa sua presença, ao ver-se perto dele, apresentado por um amigo comum: "o mesmo espanto do menino Heine, ao ver passar Napoleão."

Dez anos mais tarde, em 1897, celebrando o lançamento da primeira pedra de seu monumento, na praça que lhe guarda o nome, manifestaria seu enternecimento ao artista que, desenganado de política, regressaria às letras definitivamente, para prosseguir uma obra que resistiria ao tempo, à negação, às dúvidas, perdurando como uma chama viva no coração da juventude.

Se o espírito de Alencar, de acordo com o ritual indígena, passou a habitar as montanhas azuis e de lá contempla os efeitos da posteridade pela qual tanto aspirou, ficaria regozijado com a influência de sua obra nas gerações que despertam para a vida.

Nas estações ferroviárias, nos aeroportos, nas bancas de jornais, sucedem-se as edições populares de seus romances, e já começam a aparecer em coleções caprichosas e cuidadas os livros que melhor respondem ao desafio do tempo.

Assim como ontem eram lidos à luz dos lampiões pelos rapazes do tempo, são lidos e saboreados à claridade das lâmpadas pelas moças de nosso tempo, oferecendo-nos o testemunho da perenidade que os anima.

Até as crianças, que antes não dispunham de elementos para alcançá-los, deles dispõem para a leitura através das estórias em quadrinhos com que a mão de um editor benemérito, Adolfo Aizen, fez de seu parque gráfico o veículo para aproximar da infância brasileira as obras essenciais do romancista.

Essa foi a resposta da vida ao desafio do tempo. Resposta que atinge o próprio Machado de Assis, cuja admiração votada a José de Alencar não impediu reparos aos descuidos gramaticais de seu ídolo, arrastado pelo policiamento da língua literária que lhe era inato, ao passo que, em Alencar, a musicalidade da língua estava acima de sua pureza e concisão.

Resumindo as considerações feitas a respeito do desrespeito do romancista cearense aos cânones e modelos ortodoxos da arte de escrever, a conclusão a que chegamos é a de que, por sua indiferença à perfeição do estilo, Alencar se antecipa a todos os romancistas vindos dele e que fizeram tábula rasa do receituário estilístico, mantendo-se incólumes às observações e retoques da gramática, para ficarem fiéis ao fenômeno de sua formação desalinhada e soberba.

Emergindo de um movimento de emancipação intelectual, o novelista mais festejado do romantismo brasileiro aceitou o papel de pioneiro e padrinho do batismo nacional da língua portuguesa, assumindo a responsabilidade de conduzi-la pelos caminhos ou descaminhos de nossa fala, de acordo com as preferências e opções que lhe garantiram o primado horizontal da expressão, como instrumento musical de um povo dilatado por um território infinitamente mais amplo que o da matriz tutelar, e testado pela variedade de vozes que irromperam das clareiras abertas nas selvas espantadas...

O pioneirismo estético de José de Alencar, derrubando os muros de uma cidadela hermética, provoca um cisma na estilística de seu tempo pela introdução do elemento florestal na paisagem da novela. Foi como se ele houvesse soltado de seu esconderijo os demônios da mata, abrindo-lhes as fronteiras do idioma, no exercício de seus poderes de demiurgo da expressão.

(José de Alencar. Patriarca do romance brasileiro, 1977.)