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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Peregrino Júnior

Senhor Odylo Costa, filho,

Quisera fazer aqui um retrato, algo desordenado mas fiel de Odylo Costa, filho, quase menino, que conheci aí por volta de 1931 – um retrato como aquele, com declaração de amor, que ele nos deu de Portugal. Desejo, como ele, ternamente contar-vos, sob a pressão das lembranças, o que deste poeta vi, conheci e guardei.

Recordo-me – e com que nitidez! – dos nossos primeiros encontros no Rio. O rapazinho ligeiro, lépido, sorridente, talvez um pouco petulante –, somaticamente pícnico, psicologicamente sintônico –, desde a chegada ao Rio atuando nas rodas de escritores e estudantes, presente, ubiquamente presente sempre, nas redações dos jornais, nos círculos intelectuais, nas áreas mais palpitantes da vida carioca.

Freqüentava sobretudo um grupo misto de estudantes em disponibilidade e intelectuais jovens, em inquieta ascensão (sempre amou os grupos, este homem constitucionalmente gregário), que se autodenominava enfática e orgulhosamente “Nova Geração”, e procurava os seus caminhos, marcando desde logo sua situação e sua presença no turbilhão da grande cidade. A esse grupo festivo pertenciam Odylo, Francisco de Assis Barbosa, Raimundo Magalhães Júnior, D. Martins de Oliveira, Joaquim Ribeiro, Luís Martins, João Lira Filho, Martins Castelo, Dante Costa, e, como “excedentes”, Ribeiro Couto e um jovem bastante usado, que, por modéstia, cala o nome... O grupo se reunia com assiduidade para conversar Literatura, e bebia moderadamente na Lapa e arredores. Bebia chope preferentemente. Depois do chope, fazia incursões alegres pela Rua Taylor, onde Magalhães Júnior – o mais abonado da turma – tinha conta-corrente à disposição dos amigos (desde que não abusassem)...

Eram os iniciados de uma religião de poucos devotos: a Literatura. E amavam, além da Poesia e da Liberdade, os bons pratos e os bons copos. De longe, tímidos, mas teimosos, namoravam uma senhora grave e distante, que os olhava com olhos esquivos: a Glória... Enquanto não chegavam à glória, iam ficando mesmo na Lapa... A chamada “Nova Geração” era inquieta, mas cordial. E certa vez convidou Ribeiro Couto e outros “excedentes” para um jantar em homenagem a Odylo Costa, filho e D. Martins de Oliveira, pelos prêmios que haviam conquistado na Academia, com os livros Analecta No País das Carnaúbas, e a Raimundo Magalhães, pelo processo que lhe movia o Centro Carioca. O jantar seria no Recreio das Flores – e os convidados de honra pagariam, eles também... 15$000! Ribeiro Couto protestou: “Mas isto não é sério!” E arrematou, com sorriso resignado: “Bem feito, para eu não me meter a rapaz da ‘Nova Geração’!!”

E pagou – não sem exclamar: “O mal dos vinte anos: a Literatura!”

Depois melancolicamente:

– Como é bom ter vinte anos a vida inteira!

Não vos curastes deste lindo mal, senhor acadêmico: mesmo dentro desse incômodo e pomposo fardão dourado, ainda continuais teimosamente na casa dos vinte, e dela só vos retirareis, ralado de saudade, como a D. Camila do velho Machado da casa dos 29, quando a convivência amena do chá das quintas vos induzir a uma retirada prudente e discreta... Ribeiro Couto não gostou de uma coisa: houve muitos discursos, e solenes. Mas lamentou que houvesse poucos jantares literários no Rio (a mesma queixa de Paulo Prado em relação a São Paulo) e fundou os famosos jantares do dia 13, que ainda sobrevivem, alegres e teimosos, com os almoços dos Peregrinos,
a que obstinado vos esquivastes sempre até hoje. De resto, recordarei que a moda das homenagens a vários escritores simultaneamente foi implantada pela “Nova Geração” – e me beneficiou com o famigerado jantar do Bar Alpino, que se reuniu unânime em torno de Jorge Amado, pela publicação de Cacau, Dante Costa, pela da Feira Desigual, e a mim – pobre de mim! – sempre agarrado à “Nova Geração”! – pela publicação de Matupá.

Devo esclarecer que alguns dos membros dessa “Nova Geração” conquistaram lugar definitivo e alto na vida cultural do Brasil: Raimundo Magalhães Júnior – trabalhador terrível, publicando livros a jato – e com que brilho e força – está ali sentado, com o seu vistoso fardão, sob a benção de Machado de Assis e o olhar desconfiado de Rui Barbosa... Francisco de Assis Barbosa, seguindo o exemplo ilustre de Magalhães e somando obras de exemplar qualidade, como a já famosa biografia de Lima Barreto, aguarda tranqüilamente a sua vez; o desembargador Martins de Oliveira, com a barba grave e lírica, além de suas sentenças de juiz na Corte de Apelação, planta generosamente estátuas de Santos às margens do Rio São Francisco; Luíz Martins, depois de cantar a Lapa, canta São Paulo e senta-se tranqüilamente na Cadeira de Júlio de Mesquita Filho, na Academia Paulista de Letras; aliás, já nos velhos tempos da Lapa ele observara, sutil e clarividente, que nas novas gerações se havia inaugurado um movimento de pacificação e simpatia diante da Casa de Machado de Assis!

João Lira Filho é o Reitor magnífico (embora não ame o adjetivo pomposo) da Universidade do Estado da Guanabara. E Martins Castelo, Joaquim Ribeiro e Dante Costa – com que ternura comovida os recordamos! – só aqui não estão ao nosso lado, porque partiram prematuramente, convocados por São Pedro, para as tertúlias da Eternidade.

Aliás, por ocasião do famigerado jantar de 1932, falando de “Periquitos” entre “Patativas”, Ribeiro Couto deu-nos um perfil delicioso do artista quando jovem Odylo Costa, filho. Era, dizia ele, o único brasileiro que tem dezoito anos na vida. Estudou num colégio de irmãs do Norte, chama Tristão de Ataíde “meu colega em catolicismo”, sorri com ar de Menino Jesus do Maranhão, é redator do Jornal do Commercio sem qualquer incompatibilidade, declara-se “doutor em Graça Aranha” e telefona para dizer que faz questão de que a gente compareça ao jantar do Recreio das Flores, desde que paguemos 15$000! “E eis um bom retrato sem retoques!”

Esse adorável “chefe de fila” da “Nova Geração” tinha, porém, um vago tédio às conferências, suas e alheias. Recordo a propósito dois episódios elucidativos.Temperamento de líder, como já disse, desde 18 anos já presidia, com a maior compenetração um vago Centro do Norte, de existência obscura e incerta. E em nome desse vago Centro do Norte convidou-nos a fazer uma conferência sobre a famosa Escola Doméstica de Natal. Exultei: iria dizer ao Rio – pensei eu com os meus botões – todo o bem que merecia a criação pioneira de H. Castriciano. E caminhei, contente, uma tarde, para o Studio Eros Volusia, num sobradinho da Rua São José, onde devia realizar-se a palestra. Ali encontrei apenas três pessoas: Gilka Machado, a dona da casa, que de nada sabia: o Gal. Dulcídio Espírito Santo Cardoso, diretor do Departamento de Educação – amigo até o sacrifício... –, que se dispunha a ouvir-me, e Odylo Costa, filho, alegre, fagueiro, de sorriso redondo no rosto imberbe, que se esquecera de convocar o público. Achamos graça na peça que Odylo nos pregou: D. Gilka, um pouco encabulada, prometendo bem maior público para outro dia, desde que avisada com antecedência; Dulcídio,com perfeito fair play, oferecendo-se amavelmente para levar-me em carro oficial para casa, desde que não optássemos por outro rumo. E Odylo, risonho e amável, com a maior naturalidade: Ó diabo! havia esquecido de convidar o pessoal do Centro do Norte. Ao contrário do que podeis supor, não houve zanga nem recriminações – e ficamos amigos para o resto da vida... Em matéria de conferência, aliás, Odylo padecia de incurável amnésia, não se lembrando nem das suas próprias, às vezes.

Quando Félix Pacheco morreu – que era seu amigo, conterrâneo e chefe no Jornal do Commercio – ele comprometeu-se a fazer uma conferência sobre o ilustre morto no Liceu Literário Português. No dia marcado, às 5 horas da tarde, o vasto salão do Liceu estava repleto de gente sisuda e importante: escritores, acadêmicos, a família de Félix Pacheco e o pessoal do Jornal do Commercio, Cardim à frente, e só Odylo não aparecia. Já se notavam movimentos de impaciência. Cardim, preocupado, mas calmo, olhava a porta com desconfiança: 5h15; 5h20; 5h30 – e nada de conferencista. Afinal, quando começavam a repontar na sala sintomas de inquietação e desapontamento, chega Odylo Costa, filho, despreocupado, com seu melhor sorriso, tranquilo, um vago livro debaixo do braço. E quando todos esperavam um longo estudo sobre Félix Pacheco – chanceler, senador, diretor do Jornal do Commercio, chefe político do Piauí, ele sobe à tribuna e faz, de improviso, o elogio do poeta, do simbolista, do colaborador da Rosa Cruz, lendo versos de Mallarmé, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud e até de Félix Pacheco.

Mas mesmo no tumulto e na alegria da grande cidade, o Piauí e o Maranhão frequentavam-lhe tenazmente a memória. Sua Pasárgada residia-lhe na infância, cada vez mais longe, com as suas águas, árvores e pássaros. Falando de Gilberto Amado, Manuel Bandeira dizia: “Em Minha Formação há uma Massangana, na História da Minha Infância, uma Massangana em cada página.”

Em toda a obra, em toda a vida de Odylo há uma Massangana em cada passo: na Poesia, na Novela, na Crônica, no Ensaio, porque nele a sua presença é ubíqua e permanente: – é a sua Força e o seu Mundo.

Neste instante solene da sua vida, eu sei que ele não está apenas aqui no Rio. Mas também a muitas léguas daqui, na paisagem do seu nascimento, entre aqueles belos sobradões quadrados de azulejo que o viram nascer, como a Gonçalves Dias e Graça Aranha, ou no vale humilde de sua infância, revendo as águas barrentas do Parnaíba (tão diferentes daquele que Da Costa e Silva cantou!...)

O Parnaíba, velho monge

as barbas brancas alongando...

ou talvez, melhor, na paisagem lírica de Campo Maior, onde lhe sorri, linda e doce, a imagem amorável da Felicidade na adolescente Nazareth –

A adolescente era a palmeira esguia
de tranças,

– que ficou a dona de toda a sua Poesia, de toda sua Vida, do seu Destino.

Daí, em toda a sua obra se nos depara por vezes um pouco do perfume, da cor, do sentimento do Vale do Parnaíba, da sua ilha de São Luís, dos campos de Campo Maior. E esse perfume, essa cor, esse sentimento, eu os sinto hoje aqui, contente e feliz!

HOMEM DE CARNE E OSSO

Temos hoje aqui, diante dos olhos, dentro desse pomposo fardão acadêmico, não apenas um importante jornalista, um admirável escritor, um grande poeta, mas também um homem de carne e osso, como queria Unamuno – e que come e bebe, e ama, e dorme, e pensa, e vive, o homem que se vê e que se ouve, o irmão, o verdadeiro irmão. Odylo Costa, filho é esse homem – autêntico, generoso e fraterno. Homem múltiplo: complexo, numeroso e versátil. Ser de singulares dimensões humanas. A um tempo calmo e inquieto, afoito e contido, aliciante e estável. Pícnico e ciclotímico, dotado constitucionalmente, pois, de rara capacidade de adaptação e comunicação, é o “homem contagioso” de Cocteau. Na vida pública como na vida privada, é um modelo superior de lucidez, compreensão, bondade e tolerância.

Homem de muitos amigos – dono de uma espantosa capacidade de fazer amigos –  estes são de três categorias: paternais – como Manuel Bandeira e Gilberto Amado; fraternais – como Ribeiro Couto e Afonso Arinos; e filiais – como os Odylo’s Boys. Todos esses amigos se compraziam na sua louvação – dele e de Nazareth. É interessante recordar a maneira amorável e paternal com que o tratavam Gilberto Amado e Manuel Bandeira. A 11 de março de 1963, escrevia Gilberto a Manuel: “E... que dizer, Manuel I do Brasil, do nosso filho único, na sua tarefa de reerguedor, de ressuscitador?” Manuel fazia poemas a Nazareth:

Nossa Senhora me abraçou,
Sorrindo, disfarçada em rara
Terrena forma nordestina.
E a minha alma se iluminou,
Como jamais se iluminara,
Recebendo a bênção divina.

Martins Napoleão, alto poeta, do Piauí, como Odylo, mandou-lhe também um soneto:

SONETO PARA ODYLO COSTA, FILHO

Li tua poesia em mãos do Dante.
Não teus versos, mas tua poesia
Aquela que nos vem no puro instante
em que o barro mortal, que é forma fria,

ao contato de Deus se torna arfante.
(Assim no peito o coração, no dia
em que se aquece trêmulo diante
do misterioso pão da Eucaristia).

Achaste a Poesia verdadeira
que entre sombras eternas se insinua
até chegar à nossa triste poeira.

A terrível espada do anjo forte
que, atravessando a nossa carne nua,
só nos fere de amor em vez de morte.

Outro soneto, quando ele completou cinquenta anos, inspirou Odylo a Carlos Drummond:

SONETO DE ODYLO E NAZARETH

De mirante no sítio do Rocio
Odylo vê o mundo – campo largo,
campo-maior, onde se estende o fio
da completa existência, e, suaveamargo,

o fruto de viver se colhe: sabe
a tudo que foi sonho e, ainda sonho,
vige, esperança eterna, que não cabe
no tempo o ser, e o vinho no vidonho.
Odylo e Nazareth, tão irmanados
que um não é sem o outro, na paisagem
de filhos e trabalhos ajustados

ao desígnio de Deus: em clara imagem,
feita de transparência e aberta em flor,
nos dois se grava esta lição: Amor.

Guimarães Rosa, em carta, dizia-lhe: “Você escreveu seu livro para o Juízo Final. Você é um dos seis melhores, maiores poetas nossos.”

Também entre os portugueses fez grandes, incontáveis amigos. O seu aprendizado de Portugal “foi um milagre de criação cultural e humana”. Espalhou livros e amigos por todo o velho Portugal. E os críticos, como João Gaspar Simões, Natércia Freire, Helena Cidade Moura, João Maia, José Blanc de Portugal disseram todo o bem que se pode dizer do homem e do escritor. E Vitorino Nemésio mandou-lhe poemas quando ele partiu de regresso do Rio:

Odylo, adeus! Odylo, esperança!
Volta breve!  – Volto não!
– Lisboa está uma criança,
É São Luís do Maranhão:
Sobrado no peito,
Mirante no olhar;
Querendo palmeiras dá-se um jeito,
Cada alfacinha um potiguar.
O mais, Odylo, é meu chorar!

Até o irmão, José Costa, embora reconhecendo que só raramente santo de casa faz milagre, elogia-lhe a inteligência, a bondade, a tolerância, o suave convívio, sem um grito, sem uma palavra grosseira, calando quando não gostava. E conclui o seu depoimento fraternal: “Não é por ser meu irmão, mas aos que são seus amigos e aos indiferentes digo apenas: – aí está um homem que não mudou, tem uma porção de filhos, fora os que Deus levou, mas continua puro, absolutamente puro. Santo de casa que faz milagre...”

Sensível às solicitações do tempo e do espírito, percorreu, ágil e lúcido, vários caminhos: o da imprensa (isento da fascinação profissional da facilidade no julgamento e na ação); da Política (e embora militando alguns anos na UDN, não se deixou impregnar do calvinismo udenista); o da vida pública (sem se deixar contaminar da ambição perturbadora do Poder).

E Odylo Costa, filho ama a vida pública, ama o Jornalismo; ama sobretudo a Liberdade e a Democracia. Mas não foi para nada disto que ele nasceu. Ele nasceu para a Poesia: a Poesia está no seu sangue – é a sua Vida e o seu Destino.

A Pasárgada deste poeta situa-se na infância, cada vez mais longe – ó determinação irrecorrível do Tempo! – com suas águas, árvores e pássaros. E ele se compraz no exercício proustiano da evocação das cidades (as Combrays do seu sensível coração), onde lhe amanheceu o espírito de “menino chorão” e rapazinho de cara redonda e riso aberto, cuja topografia, cuja paisagem e cuja história estão sempre presentes à sua memória, porque incorporados às profundas subcamadas anímicas do seu ser.

Deixando-nos ir ao passado, e no meio das recordações e saudades, convocando as imagens e os dias que lhe foram mais gratos, vamos deparar o seu momento mais feliz: 6 de janeiro de 1942. Nos campos de Campo Maior deu-se o suave milagre: o seu casamento com Nazareth, a linda filha de D. Sinhazinha, a quem ele, cinco anos depois, e, com afeto filial, ofertando-lhe um livro, declarava não se cansar de agradecer a Deus – e a ela também – a companheira de seu Destino.

E Nazareth não foi só isto: boa, doce e tranquila, de uma suave e autêntica beleza, sem artifício e sem ostentação, foi também a dona da sua Vida e a fiandeira de sua glória.

Manuel Bandeira abençoa-os no dia do casamento.

Vai a bênção que pediste.
Mas a bênção maior é
Ganhar em Natal tão triste
Maria de Nazareth.

Casados e contentes, Nazareth e Odylo – ó originalíssimo espírito de aventura da mocidade! – meteram-se na cabine de um caminhão F.N.M. – e partiram em viagem de núpcias, pelas ásperas e magras estradas do Piauí e Ceará – deixando para trás os brejos e as águas do Parnaíba, caminharam para os largos campos e as serras azuis do sertão do Nordeste – a paisagem clara e limpa diante dos olhos, a esperança e a alegria no coração – rumo da Vida e da Felicidade.

Em êxtase lírico – diante de Nazareth – seu único Amor e sua Musa – Odylo Costa filho abre um novo capítulo na sua bela carreira: vê crescerem, em tomo do casal feliz, os filhos numerosos, que vão compor o lar harmonioso e fecundo de Santa Teresa. Esses filhos, muitos e queridos – sol das suas manhãs, alegria das suas tardes, estrelas de sua vida (e quero exaltar particularmente aquela que é minha afilhada, a linda e doce Antônia, que, como Nazareth, palmeira alta e graciosa que também ascende a verde trança para o tempo), compõem e completam a harmonia da incomparável Casa da Montanha.

Cria-se, então, em torno de Nazareth – tão linda que Ribeiro Couto a chamava de “Miss Teresina” – uma nova devoção – a devoção da grei da Rua Áurea – e da Santa mais bonita do mundo, “Santa Nazareth”, como a denominava Gilberto Amado. Todos nós, os amigos de Odylo, ou seu Fã-Clube, como prefere o presidente Austregésio de Athayde, todos nós pertencemos à nova devoção dessa família de Boasgentes, consanguínea dos Bonsdeuses, como lá diz na sua linguagem roseana o ex-governador José Sarney. Essa nossa devoção particular tem uma imagem central: “Santa Nazareth”, amada de todos, cantada em prosa e verso.

Esse ser privilegiado que é Nazareth – cuja magia a todos alumbra e domina docemente – ó luz amanhecente do claro dia! – é a chave do segredo de todos os êxitos do novo acadêmico. Todos sabemos a importância que têm as grandes mulheres na vida de seus maridos ilustres.

Em Nazareth – companheira, Musa e Felicidade de Odylo Costa, filho –, dona modesta e silenciosa desta bela noite de consagração pública de seu companheiro, desejamos festejar o espírito, a beleza e o devotamento das brasileiras admiráveis que têm sabido acompanhar a vida pública dos homens ilustres do Brasil, cooperando silenciosa mas eficazmente para o seu triunfo. E nela, na sua doce e bela imagem de Rainha e Santa, concentramos a nossa louvação e a nossa gratidão.

A VISITA DO SOFRIMENTO

Homem feliz – amado dos amigos, respeitado e admirado de toda gente, querido de todos os seus –, pais, irmãos, mulher e filhos, Odylo Costa, filho vivia contente na sua casa de Santa Teresa – quando um dia, de repente, o sofrimento na sua expressão mais dilacerante lhe bateu à porta, com a morte de dois filhos. A sombra da tragédia baixou sobre o seu lar feliz, sem remédio e sem consolo.

Da morte de Maria Aurora, de cujos lindos olhos e de cujo constante sorriso guardo doce recordação, Odylo mesmo conta a história.

“Minha filha viveu doze anos e, deles, onze foram para os pais de desengano e aceitação.” Que doçura, que carinho, que terna atenção guardavam eles para aquele anjinho enfermo, cuja vida se concentrava apenas nos lindos olhos e no suave sorriso! Sua morte foi sombra que desceu melancólica sobre Nazareth e Odylo para a vida.

Mas a perda do “seu menino”, essa foi dramática e brutal, dor que ultrapassa a capacidade de resistir da força humana! Eu, que privara com Odylinho vivo, discreto e amado, tendo viajado juntos e juntos passado dias cordiais de suave convívio, na paisagem maternal de minha terra, entre gente nossa – conheci antes de meus compadres queridos o terrível golpe que os feriu, e que comoveu o País. Odylo, sereno e forte, comenta ele próprio, a sua grande dor, diante do filho assassinado:

“Digo-lhes uma coisa. Eu levo a minha dor devagarinho, não me faço de tolo com ela, isso jamais. Para que ensaiar rebeldias inúteis? Trato-a de leve, bem de leve, de mais leve (para que ela me deixe viver e cuidar dos outros).” Mas, refletindo como homem do seu tempo e da sua gente, ele, em vez de ressentido e revoltado, tem um pensamento generoso:

Do fundo da minha dor humana, nestes dias que se abateram sobre um homem que sempre pensou mais nos outros do que em si, eu me julgo no direito de, como pai de Odylo Costa, neto, o menino que morreu como um homem em defesa da sua hombridade de homem, da sua humanidade de homem, dirigir um apelo aos milhares de filhos da mesma Pátria que pensaram com emoção no sacrifício de meu filho. Demos um sentido a esse sacrifício, fruto de bem humano e essa pobre semente de sangue humano. Olhemos para os outros meninos. Salvemos os outros meninos.

Manuel Bandeira – o grande poeta, o maior amigo – explica o singular fenômeno:

[...] aquele martírio da filhinha doente, anos e anos, e depois o assassinato do filho mais velho, assaltado na rua, em Odylo desabrochou uma série de poemas admiráveis. E o romancista foi também reconduzido ao romance pelo filho. O filho morto lera os originais inacabados de sua novela – gostou e pediu-lhe que terminasse o livro – e Odylo Costa, filho concluiu e publicou a sua obra-prima. Quer dizer, o seu menino fez o milagre e reconduziu-o à Literatura e à Glória.

Além disto, Odylo transformou o golpe trágico que o ferira num gesto generoso: a defesa da criança abandonada – e dessa campanha resultou a sensibilização do poder público e da opinião nacional com a criação imediata da Comissão de Bem-Estar do Menor. Embora, anos passados, tudo continue na mesma, como sói acontecer no Brasil.

AS RAÍZES DO ESPÍRITO

É permanente a presença do Maranhão e do Piauí na inteligência e na sensibilidade, quer dizer na obra e na vida do Sr. Odylo Costa, filho.

O oxigênio inicial, que ele respirou na Rua da Paz, 82, impregnou-lhe o corpo e a alma. Foi ele decerto que lhe nutriu as raízes mais fundas do espírito, fixando-lhe a memória profunda do ser no meio ilustre da terra maranhense. Aliás, a atmosfera cultural de São Luís, que Graça Aranha evoca nas suas Memórias com tão vivo colorido e tão clara luz, sempre foi propícia ao florescer da inteligência.

Tempo houve – e que infelizmente já vai longe – em que na bela cidade viveram juntos alguns dos homens mais ilustres do Brasil: João Francisco Lisboa e Odorico Mendes, Sotero dos Reis e Gonçalves Dias. E confirmando, bem mais tarde, sua famigerada tradição ateniense de cultura, de lá vieram um Gomes de Sousa, um Graça Aranha e um Tasso Fragoso, um Artur e um Aluízio Azevedo, um Coelho Neto, um Humberto de Campos, um Viriato Correia, um Josué Montello... Era terra clássica de helenistas, de latinistas e de vernaculistas; de matemáticos e de filósofos; de poetas e de escritores. E foi sempre terra que se orgulhou de falar bem o seu vernáculo com limpidez, elegância e correção.

Examinando as condições de formação do Maranhão, é fácil compreender e explicar o fenômeno. Veríssimo lembrou algumas das circunstâncias que lhe facilitaram esse privilégio: a posição geográfica que o aproximava da metrópole; a boa qualidade dos povoadores; a influência cultural dos jesuítas; os sentimentos cívicos que se nutriram nos estímulos pugnazes das lutas contra as invasões estrangeiras; os privilégios políticos e nobiliárquicos; a abastança dos grandes proprietários da terra...

Narrando, aliás, a história da expedição de João de Barros, o biógrafo do donatário da Capitania do Maranhão, Manuel Severim de Faria, cita fatos que permitem compreender até certo ponto a origem do prestígio da afortunada gleba de João Barros. “Neste tempo” – diz ele – “quis el rei D. João III mandar povoar a província de Santa Cruz, vulgarmente chamada Brasil, que Pedro Álvares Cabral, levado da força dos ventos, descobriu nas primeiras praias do Novo Mundo, indo para a Índia, no ano de 1500.” E adiante acrescenta, referindo-se a João de Barros: “Era a capitania, que lhe coube por sorte, a do Maranhão, parte setentrional do Brasil, e a mais enobrecida dele em grandeza de rios, fertilidade de plantas, abundância de animais, e fama de riquissímas minas.” Havia de ser forte, pois, o seu poder de sedução. É certo que Vieira, que desembarcara nas praias de São Luís em 1633, não era otimista na descrição dos nossos povoadores: “Os povoadores, que se mandam para as mesmas terras, são os criminosos e malfeitores, tirados do fundo das enxovias, e levados a embarcar em grilhões.” Mas o próprio Lisboa, após pacientes pesquisas, procurou reabilitar esses malsinados povoadores.

No V Livro das Ordenações do Reino verificou Lisboa que a pena de degredo estava cominada para 250 delitos – e destes os mais frequentes eram “pecados veniais contra os bons costumes, delitos de opinião e pensamento, o exercício de profissões privativas de um sexo pelo outro, bem como os embustes e as mistificações dos feiticeiros, dos alcoviteiros e dos adivinhos”. Se assim acontecia, como provou Timon, os degredados que vinham para o Brasil não eram propriamente criminosos e malfeitores, como dizia Vieira, mas homens de imaginação, inclinados ao ócio, à poesia e à revolta... Deviam gerar, por conseguinte, como geraram, intelectuais e conspiradores, políticos e poetas... mistura espiritual que gerou o povo do Maranhão.

Por isso mesmo, quando visitei – e quantas vezes! – a bela cidade de São Luís, ao contemplar-lhe a graciosa paisagem de luzes claras e tranquilas, eu sempre me transportava inevitavelmente ao passado, que era a atmosfera específica de sua vida. Lá longe, na larga baía de São Marcos, eu tinha de repente a ilusão de surpreender ainda velejando as caravelas de João de Barros, de Aires da Cunha, de Fernão D’Alvares de Andrade... e as naus audazes de Alexandre Moura expulsando as frotas invasoras dos franceses... e as quilhas holandesas, bordejando lá fora, ao vento do largo, sob o acompanhamento alvoroçado dos tubarões vorazes...

Desbotada e triste como uma gravura antiga da era colonial, São Luís conserva as rudes torres de paredes patinadas, e os casarões de azulejo, os tetos cobertos de limo, e as ásperas ladeiras de lages rugosas, como há um século, como há dois séculos, como há três séculos, como nos tempos primitivos de Vieira ou nos tempos inquietos de Lisboa... Naquela pracinha alegre, que se debruça sobre o mar, “onde palmeirinhas de ariri abanam, ciciando, as comas verdes, orfãs e nuas de sabiás”, Gonçalves Dias desce de uma palmeira de mármore, para passear, na calçada da Igreja, “dando o braço a umas senhoras, conversando alegre e satisfeito, sem deixar rever o menor vislumbre daquela melancolia e desesperação que nos revela em seus mimosos versos”, como naquela noite da Festa dos Remédios que Timon descreveu com o colorido gracioso e a maliciosa minúcia de um precursor da crônica mundana. Odorico Mendes, no sólido granito da sua herma, tem o ar de quem recita em voz baixa Homero no original com sisuda compenetração. João Francisco Lisboa aparece à porta do n.º 67 da Rua Formosa, para distribuir o último número de O Brasileiro... Por que será que o Padre Vieira não veio hoje repetir para nós aquele seu famoso sermão da Igreja da Sé?...

“Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, qual é o jejum que quer Deus de vós esta Quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos”...

“Nada de tertúlias”, diz o Sr. Odylo Costa, filho,

[...] nada de arcádico. Abaixo essa falsa imagem! Repara-se. Com João Lisboa nasce uma nova prosa, feita de amplidão, de majestade – e de graça. Com Gonçalves Dias, a Poesia romântica. A Poesia romântica? A própria Poesia brasileira. Com Sotero dos Reis, uma nova gramática. Com Aluísio Azevedo, um novo romance. Com seu irmão Artur, uma nova comédia. Com Celso de Magalhães, uma ciência do folclore. Com Nina Rodrigues, uma ciência do negro. Raimundo Correia é o primeiro parnasiano. Graça Aranha rasga, num grande gesto, o fardão acadêmico para se incorporar à revolução modernista. Da convicção filosófica de Teixeira Mendes se tinge a República ao nascer. E Sousândrade adivinha, nas iluminações doidas de precursor, as formas de amanhã.

Essa a atmosfera cultural da cidade em que nasceu o novo acadêmico que hoje recebemos. A grande força, confessa ele, é a do primeiro ar que respiramos.

Mas o Sr. Odylo Costa, filho, mal completara cinco anos, foi morar na beira do Parnaíba, primeiro do lado maranhense, depois, defronte, em Teresina, de onde atravessava o rio para férias no Olho d’água da Prata, ou aos domingos na vila fronteira de Flores.

Assim nasceu e viveu sua infância o poeta Odylo Costa, filho – entre o Piauí e o Maranhão. O Piauí frequentou-lhe ternamente a memória e o Maranhão fixou-lhe no espírito e no coração a sua poderosa influência. Aliás, as “águas do norte”, como as denomina o Sr. Sarney, vindo do Piauí, atravessando o Maranhão e atingindo as “matas submersas” do Pará, geram uma cultura singular: a cultura dos homens que conhecem simultaneamente a civilização do couro e a civilização humanística da melhor tradição luso-brasileira. É da fusão maravilhosa dessas influências simultâneas que nasceram para o Brasil esses famosos frutos da dualidade cultural do Piauí – Maranhão, chamados Humberto de Campos, Deolindo Couto, Carvalho Neto, Francisco Pereira da Silva, Martins Napoleão e Odylo Costa, filho – essa estranha flor humana, da Arte, da sensibilidade, do pensamento político e da ação pública.

Todos eles são filhos da fusão ecológica, sociológica e intelectual das duas regiões vizinhas que se completam e enquadram no esforço comum da preparação de homens para o Brasil.

ITINERÁRIO

Para ser sistemático e claro, quero dar-vos aqui o itinerário que o Poeta percorreu do nascimento à imortalidade. Quer dizer, a sua ficha de identidade literária e civil.

Odylo de Moura Costa, filho – filho do casal Odylo de Moura Costa e Maria Aurora Alves Costa, nasceu em São Luís do Maranhão, a 14 de dezembro de 1914. Estudou as primeiras letras no Colégio do Sagrado Coração de Jesus, em Teresina, e o ginasial no Liceu Piauiense.

Em março de 1930, Maranhão e Piauí ficavam para trás e Odylo Costa, filho, em companhia dos pais, chegou ao Rio de Janeiro, bacharelando-se em Direito, pela Universidade do Brasil, em dezembro de 1933. Desde os 16 anos, porém, já se revelara no jovem maranhense a vocação de jornalista, vocação que após vagos ensaios provincianos, encontrou seu primeiro abrigo nas colunas do Jornal do Commercio, em 1931, pela mão amiga de Félix Pacheco.

Estreando na Literatura em 1933, com as páginas de Graça Aranha e Outros Ensaios (que inicialmente se denominava Analecta), obteve nesse mesmo ano o Prêmio Ramos Paz, da Academia. Editou em 1932, também, uma Selecta Cristã, pela Livraria Católica.

Em 1936, em colaboração com Henrique Carstens, publicou o Livro de Poemas de 1935, seguido nove anos mais tarde de um volume intitulado Distrito da Confusão, coletânea de artigos de jornal em que fazia a crítica do regime ditatorial, nos duros dias de 1937. Desde então não publicou mais nenhum livro, dedicando-se quase integralmente ao Jornalismo, onde revelaria espírito de renovação e modernidade.

Redator do Jornal do Commercio até 1943, foi sucessivaniente fundador e diretor do semanário Política e Letras (de Virgílio de Melo Franco), redator do Diário de Notícias, diretor de A Noite e da Rádio Nacional, chefe da redação do Jornal do Brasil, de cuja renascença foi um de seus milagres, diretor da Tribuna de Imprensa, diretor da revista Senhor, secretário do Cruzeiro Internacional e diretor da redação de O Cruzeiro, e novamente redator do Jornal do Brasil.

Em 1949 teve representada uma peça infantil, “O Balão que Caiu no Mar”, inspirada em poema de Manuel Bandeira.

Em 1952 e 1953 fez crítica literária no Diário de Notícias, onde também criou e manteve, com Eneida e Heráclito Sales, a seção Encontro Matinal, além de assinar crônicas diárias na Tribuna de Imprensa.

No governo Café Filho foi secretário de Imprensa da presidência, e instituiu, no Catete, os famosos “almoços de intelectuais do presidente”, diretor da Rádio Nacional e superintendente das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União.

Em 1965 – 1966 foi Adido Cultural à Embaixada do Brasil em Lisboa. Regressando, em maio de 1967, recusou o convite do Presidente Costa e Silva para diretor da Agência Nacional, preferindo a direção, em São Paulo, da revista Realidade, que deixou para assumir, no ano seguinte, a direção da Redação, no Rio, da Editora Abril.

Eis aí, em rápida síntese, a biografia do Sr. Odylo Costa, filho –, e o seu itinerário de homem público e escritor.

JORNALISTA

Odylo Costa, filho, tudo o que faz, segundo observação de Manuel Bandeira, o faz com amor. E a sua atividade jornalística foi sempre um ato de amor.

Ele soube ser, em todos os jornais em que militou, “um abridor de caminhos”, “um doador de sangue novo”. Entrasse num jornal, por mais velho e quadrado que ele fosse, Odylo o renovava, o rejuvenescia, o transfigurava. Fazia imediatamente o milagre da metamorfose material e literária. E fez escola: além disto, aliciador e aglutinante, criava equipe de jovens colaboradores. Os chamados Odylo’s Boys, que aí estão espalhados pela imprensa brasileira, são prova singular da sua capacidade de seleção e de comando. Autêntica vocação de líder conseguia, com mansa decisão, que os companheiros se identificassem com as tarefas comuns e trabalhassem ao seu lado com entusiasmo, lealdade e alegria. Os jovens jornalistas formados nessa bela escola em que “se aprendia fazendo”, são hoje legião. Exerce ao mesmo tempo, com exemplar competência, as diferentes especialidades do ofício. É um fabuloso “fazedor de jornal” – ele, sozinho, sabendo desempenhar todas as tarefas profissionais, das mais árduas às mais frívolas.

Rachel de Queiroz apontou-o como o mais completo dos jovens jornalistas – e explicou, clara e afirmativa:

Haverá outros, grandes articulistas; haverá outros, fabulosos repórteres; haverá grandes organizadores, campeões de vendagens, gênios de manchete. Mas que reúna em si o complexo dessas qualidades todas, em alto nível; sendo um homem de cultura e bom gosto, ter aquele seguro instinto do que deseja o leitor médio de jornal; sendo indiscutivelmente uma pessoa de intelligenzia, saber fazer um jornal que satisfaça a todos os gostos de público – ele é esse.

Nas páginas esquecidas dos jornais em que militou – Diário de NotíciasA Tribuna de ImprensaJornal do Brasil – nas revistas: SenhorO CruzeiroRealidade – reside a melhor substância, e a mais numerosa, da sua personalidade: da sua imaginação, da sua sensibilidade, da sua capacidade, a voz mais autêntica da sua tríplice vocação de homem público, de político, de escritor.

A transformação do Jornal do Brasil foi um dos seus momentos felizes, como momentos felizes do seu fecundo labor mental, da sua dinâmica atividade profissional foram a sua meteórica passagem por O Cruzeiro, Senhor, e  Realidade.

Mas, além de dinâmico renovador, Odylo Costa, filho foi a aptidão mais ampla de jornalista que até hoje possuímos: secretário, editorialista, articulista, repórter, cronista, crítico literário, ensaísta. Tudo que no jornal apresenta a marca viva de uma personalidade de dimensões surpreendentes. E que admirável estilo o deste jornalista! Que fluência, que graça, que correção e que simplicidade! Um estilo límpido e elegante, original e escorreito, rigorosamente literário, sem literatura, despojado e lúcido. E foi do fundo palpitante e sedutor desta profissão árdua e bela – exercida com tanto fulgor, devoção e dignidade – que emergiram o escritor, o novelista, o poeta.

Confessou ele certa vez que em “cada jornalista há um escritor que não se cumpriu”. Esquecia-se o Sr. Odylo Costa, filho de que o jornal não foi jamais uma frustração para as vocações literárias, mas uma autêntica escola de escritores: Machado de Assis, Rui Barbosa, José do Patrocínio, freqüentaram essa escola.

Esta noite nos prova evidentemente o contrário do que ele afirmou: o escritor se cumpriu – e generosamente – no jornal e fora dele – no livro, e a Academia o compreendeu e coroou merecidamente.

Com que emoção recordastes, certa vez, aquela noite de 1931 em que Félix Pacheco vos chamou à sua casa e iluminou vossos 16 anos com a notícia de que no dia seguinte começaríeis a trabalhar, como repórter, no Jornal do Commercio! Oh!... vossa primeira noite de plantão, o vosso nome impresso na tabela de reportagem! O aprendizado nas mesas da redação e não nos bancos da Universidade, como hoje! Que bela e útil escola! A vida é boa! A vida é bela, Sr. Odylo Costa, filho, e está repleta de nobres e generosas lições, que são, afinal, estímulo e compensação para aqueles, como vós, que realizam suas tarefas com amor!

O FICCIONISTA

Quem conhecia o jornalista – a imaginação, a fantasia, o justo senso da realidade, a capacidade de penetrar as subcamadas profundas dos seres e dos fatos – poderia adivinhar o ficcionista que nele morava, escondido e calado. O narrador havia de ser, por força, o prolongamento do repórter. E principalmente do cronista ágil, fluente e coloquial, dotado de senso de humor, de ironia sem sarcasmo, de vocação dramática e manso lirismo, amorável e unânime, cobrindo pessoas e fatos. O seu estilo ágil, lépido, enxuto e tão pessoal, segredo dos seus dons inatos de escritor – indicava naturalmente a aptidão artesanal do novelista, que se ocultava nele. Até que um dia, mostrando uma história inacabada a Odylinho, este gostou e pediu-lhe que a terminasse – e, ainda em honra do filho morto, ele publicou uma novela que é A Faca e o Rio, seguida, logo depois na edição portuguesa de outra: A Invenção da Ilha da Madeira. Por fim, deu-nos um conto de Natal: História de Seu Tomé Meu Pai e Minha Mãe Maria. Essas três novelas – singularmente diferentes no fundo e na forma – são três admiráveis amostras da vocação ficcional do Sr. Odylo Costa, filho.

A Faca e o Rio – segundo confessa o Autor – foi inicialmente crônica; desta evoluiu para roteiro de cinema; e acabou, a pedido do seu menino, sendo a extraordinária novela que a crítica literária, unânime, louvou e consagrou.

A história telúrica de João da Grécia e Maria – uma autêntica tragédia grega, na sua gratuita naturalidade – é a história do amor tardio de um velho por uma moça simples e bela. O caso de João da Grécia e Maria, que se desdobra, fluente e natural, num clima de pastoral dentro da paisagem gorda e funda dos vales, dos rios e das matas do Norte, resulta um drama comovedor e empolgante.

Os episódios das águas do Piauí – como o idílico banho de rio de Maria – são humildes poemas de amor. As cenas que se passam na Amazônia, autênticas e rudes na sua dramaticidade, são por si sós todo um forte romance: o romance da ambição e do ciúme. E se a história é bela e apaixonante com seus tipos e suas paisagens, seus episódios marginais e sua central e unânime força telúrica, o estilo em que foi escrita é dos mais despojados, límpidos e fortes. O movimento do estilo corresponde ao movimento do pensamento do autor. E, como queria Jules Romain, a imagem que nos sugere é a de uma mansa voz, com a sua modulação e o seu timbre adequado. A técnica cinematográfica da narração, resultou, nas mãos ágeis do Sr. Odylo Costa, filho, um achado.

A graça ligeira e alada, a língua destra e segura, a expressão exata e pura, são, de resto, o segredo da força e da beleza literária das suas outras duas novelas: A Invenção da Ilha da Madeira e História de Seu Tomé Meu Pai e Minha Mãe Maria. Na Invenção da Ilha da Madeira, com o dom da inovação e da fantasia, num verdadeiro estado de exaltação lírica, ele põe São Pedro – o santo de sua devoção particular – a defender perante Deus a conveniência de entregar a ilha da Madeira aos pescadores portugueses. “E Jesus, com extrema doçura, curva a cabeça: ‘– Faça-se’. E foi assim que, numa certa manhã de outrora, Deus entreabriu os dedos da Sua grande mão fecunda, apartou a bruma e permitiu aos barcos portugueses inventarem a Ilha da Madeira.”

A terceira novela é delicado monólogo – a narração coloquial da história do Pai e da Mãe do protagonista, e aqui ainda uma vez aparece a figura dramática de João da Grécia – no meio das aflições e das doçuras, entre revoltosos armados e rudes caboclos pacíficos da beira do rio, em que se desdobra a vida simples, do quotidiano triste daquela humanidade tão boa, humilde e pobre, que habita geralmente a ficção e a lembrança do Sr. Odylo Costa, filho – contador de histórias como poucos no Brasil de hoje, de ontem, de sempre. Admirável, este narrador fluente e exato que consegue fazer viver, no seu mundo rural do Piauí, gente que poderíamos chamar de bíblica, como propôs a autora de O Quinze, como numa palpitação de Beleza e de vida autêntica.

O POETA

Antes da Semana de Arte Moderna, no Brasil, Poesia era geralmente sinônimo de soneto. Nem havia brasileiro digno deste nome que se atrevesse a ingressar na carreira das Letras sem levar na bagagem meia dúzia de sonetos mais ou menos lapidares. Só dois escritores, naquele bom velho tempo, inauguraram sua carreira literária, sem o indispensável estágio no soneto: Euclides da Cunha e Afrânio Peixoto. Todos os outros, inclusive Coelho Neto, cujo soneto “Mãe” se não existisse não faria falta à sua obra, iniciaram as suas atividades literárias perpetrando os quatorze versos parnasianos, de rimas ricas e chave de ouro. Daí ter afirmado certa vez Américo Facó que nós possuímos uma Literatura de sonetos. Ainda que maliciosa e irônica, a observação não deixará de ser válida.

Realmente, até 1922, pelo menos, os nossos poetas só sabiam fazer sonetos, fossem eles românticos, parnasianos ou simbolistas. E, posto não tivéssemos ainda grandes poemas, já possuíamos dúzia e meia de sonetos famigerados. Todos os poetas brasileiros, e isto com visível escândalo dos que se penitenciavam de idêntico pecado, começavam sempre, invariavelmente, rimando sonetinhos pouco mais ou menos líricos. A indústria nacional do soneto, que, mesmo sem o protecionismo das tarifas alfandegárias, prosperava assustadoramente, era um exemplo de organização e eficiência.

O mais curioso, nessa manufatura brasileira, era que os fabricantes só se preocupavam, na realização das suas obras-primas, com duas coisas: a “chave de ouro” e a “rima rica”. Achada a “chave de ouro” – Eureka! – o poeta abria sobre as pernas o Dicionário de Rimas, e com mão diurna e noturna pacientemente ia catando as palavras raras que, enfileiradas e bem comportadinhas, deviam constituir, um dia, a glória da Literatura Nacional.

O amor da rima rica era tal, entre nós, que um poeta de São Paulo, segundo contava Guilherme de Almeida, levou três anos com um soneto interrompido, à espera de uma palavra que rimasse com “lâmpada”. Afinal, após tantos anos de paciente pausa, tendo ido à Europa e voltado, o homem do soneto, ao encontrar o grande poeta de Raça, do Triângulo, abrindo-lhe os braços na efusão de um vasto gesto de cordialidade, gritou-lhe com entusiasmo delirante:

– Achei!!!
– ?!...
E imediatamente acrescentou, explicando o mistério da sua frase cabalística:

- Achei, meu caro poeta.Achei, afinal, uma rima para "lâmpada"-"Vâmpada!!" Estupenda!É o nome de uma tribo na ásia. Agora já posso acabar o meu soneto!

E despediu-se cheio de lírica alegria.

Apesar disto, ou por isto mesmo, o soneto gozava, entre nós, de um largo prestígio. E havia, no Brasil, sonetistas muito conceituados. Daí não existir no País um só poeta que não tivesse o seu soneto célebre, O soneto, na vida dos nossos poetas, era uma fatalidade. Desde Olavo Bilac (Ora, direis, ouvir estrelas...) até o Noronha de Gouveia do “Periscópio” (Anda, vem cá, deixa de prosa...) todos os poetas da praça perpetraram quatorze versos notáveis, com uma boa “chave de ouro”. Havia, até, alguns poetas que só eram conhecidos pelo soneto fatal. A este número pertenceram Anibal Teófilo (“A Cegonha”) e Júlio Salusse (“Os Cisnes”). Por este lado a moda do soneto teve a sua utilidade: salvou do anonimato alguns vates que nasceram com o precário destino de morrer ignorados. Isto é, deu nome aos Soldados Desconhecidos da Poesia...

Mas o soneto afinal desgastou-se. Mais do que isto: desmoralizou-se –, e desapareceu. O Modernismo, agressivo e demolidor, combatendo-o com a habitual veemência, colocou-o fora de moda e fora de forma. A saturação era unânime. Ninguém mais ouviu falar dele... Sobreveio o melancólico crepúsculo, que apagou durante quarenta anos o soneto do firmamento da Poesia brasileira. De repente, Odylo Costa, filho retoma-o na sua pureza e graça, e, corajosamente, o recupera. Recuperou-o, reabilitou-o e preservou afinal, convenhamos, uma forma poética de corte clássico na velha tradição luso-brasileira. E cada soneto de Odylo Costa, filho é uma pequena obra-prima. Gostaria de, como exemplo, e isto seria uma pura delícia, repetir-vos aqui todos os seus sonetos, que o situaram, como queria Guimarães Rosa, entre os cinco ou seis maiores poetas do Brasil, mas vou citar apenas os sonetos preferidos por Manuel Bandeira e o próprio Guimarães Rosa.

Bandeira preferia “Soneto de N. Senhora do Bom Parto”:

Adolescente era a palmeira esguia
de tranças. Mas no mel do seu cabelo
tal mistério morava que de vê-lo.
a alma desesperada renascia.

Era a Beleza?  A simples alegria?
Era a presença do sutil desvelo?
Era a graça, era o corpo, era a Poesia?
Era a saudade do materno zelo?

Era a esperança, a  fé, a caridade?
Impossível dizê-lo com certeza.
Mas nela havia tanta eternidade

Que pôs Nossa Senhora do Bom Parto
Nove bocas em torno à nossa mesa
E uma sombra perene em nosso quarto.
Guimarães Rosa encantava-se com “Soneto da Fidelidade”:

Não receies, amor, que nos divida
um dia a treva do outro mundo, pois
somos um só que não se faz em dois
nem pode a morte o que não pôde a vida.

A dor não foi em nós terra caída
que de repente afoga mas depois
cede à força das águas. Deus dispôs
que ela nos encharcasse indissolvida.

Molhamos nosso pão quotidiano
na vontade de Deus, aceita e clara,
que nos fazia para sempre num.

E de tal forma o próprio ser humano
mudou-se em nós que nada mais separa
o que era dois e hoje é apenas um.

E, agora, estes, que são do meu particular agrado: “Soneto de amor carnal”:

Há, neste amor carnal, esquecimento.
Vem de repente, bruto como a sede,
e desfaz sob a chuva e sob o vento
os afrescos e as sombras da parede.

Desmancha-se o mortal encantamento
na unidade da trama de uma rede
de veias. Desce o nada. E esse momento
é um copo d’água para a eterna sede.
Mas o que pacifica, o que transcende
e faz da vida um vinho sempre lúcido,
é a confusão das almas na saudade.

Ela que em teu cabelo a luz acende,
que o mundo a nossos olhos faz translúcido
e transverbera o chão na eternidade.

Também me encanta o “Soneto de Jó”:

Este grito, que é rio amargo, choro
que não é meu apenas, mas de todos
que o filtro das insônias decantou,
ouve-o, Senhor, que é grito de infelizes.

Perdi-me e Te procuro pela névoa,
no céu em fogo, no calado mar
a Teus pés volto. Faça-se o que queres.
Tanto me deste que por mais que tires

sempre me resta do que Tu me deste.
Deus necessita do perdão dos homens
e é esse perdão que venho Te trazer.

Com o coração rasgado, mas ao alto,
Senhor, Te entrego os filhos que levaste
pelo amor dos meus filhos que ficaram.

E ainda este – “Soneto maranhense”:

Ai terra que me dói, meu brejo escuro;
xexéus nos ninhos do buritizal.
Na lagoa as mulheres batem roupa
numa nudez sem pejos e sem gritos.
Nascem de novo os olhos de eu menino.
Cavam os braços a levada funda.
Correm, ferozes, jacarés no choco.
Na lama do curral, gibões e vacas.

Tucanos voam. Bandos de marrecas
cantam bem longe sobre os bois que choram.
Paraíso da infância, abre caminho

pelo mar, pelas grotas, pelas cercas,
e traz-me o cheiro bom das sapucaias
para a cura teimosa da saudade.

Foi com o livro Tempo de Lisboa e Outros Poemas, editado em Portugal, que Odylo Costa, filho veio mostrar-nos sua força e sua grandeza de poeta. Não era apenas o poeta bissexto que Manuel Bandeira incluíra na primeira edição da sua famosa Antologia, cometendo o engano – raro em Bandeira! – de pedir a Nossa Senhora de Nazareth que o conservasse fiel à prosa em que ele era mestre... E não era tão somente um delicioso, um incomparável sonetista, senão também o autor de uma delicada “Canção do Exílio” –, o exemplo de Gonçalves Dias foi fecundo, inspirando ao maranhense de hoje, quando se viu em Lisboa, rimas de nostalgia – que podem situar-se entre os mais belos poemas do nosso tempo:

Nasci numa cidade em frente ao mar:
seus azulejos me protegem no ar.

Cresci numa cidade em frente ao rio:
água de barro varre em mim o frio.

Cidade de cidades, me fiz homem
entre teus morros: anjo e lobisomem.

Urbe sem rei nem lei, mas provinciana,
vestida e crua, humana e desumana,
riso que deste me cobraste em sangue:
filhos perdidos, sua Mãe exangue.

Desse imposto da morte veia adentro
lavei os olhos: fiz da vida o centro.

Mundo no mundo, luzes na montanha,
deixo-te as formas com ternura estranha:

acima da alegria e além da dor,
curvas das praias são lições de amor.

Freqüentador assíduo de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Verlaine, como de Antonio Nobre e Alphonsus de Guimaraens, que lhe deixaram marcas de Simbolismo na sua lírica da fase lisboeta, fixou esta incomparável “Declaração de amor à cidade de Lisboa”:

Lisboa dos gerânios na sacada.
ter a alma por tuas flores arrancada.
das suas dores fundas esfregadas,
ficar leve e branquinha de lavada,
de sol e não de lágrimas lavada...

Ó Lisboa das flores pelo chão,
ervas e flores, rio e coração,
Lisboa de Garret e João de Deus,
em tuas mãos ponho os destinos meus.

Nasço de novo em ti. Abre-se em rosa
a rocha malferida e dolorosa.

Ó Lisboa de touro e cal, de tinta suave,
da janela de pedra (voo de ave),
cidade de colina e ponte, cria
na vã saudade e súbita alegria.
Põe nesta ausência, à força de paisagem
e de canção, as salvações da viagem.

Não podes ressurgir os corpos perecidos
mas podes devolver-me os sonhos já perdidos.
Ó Lisboa das naus, que o poeta amou outrora,
dá-me para beber consolações de agora.

Faz-me um vinho perfeito, decantado,
nas noites longamente preparado,
sem gosto à terra nem às pedras do lagar,
onde o Senhor possa o seu pão molhar.

E ainda nos deu, além de outros, enriquecendo seu livro, um comovido poema, de índole histórica e regional –, lendas velhas da escravidão – no “Romance dos pretos da Capela Velha”.

Tremia como se o matassem sezões bravas.
– Não me fale dessas coisas, moço.
Isso tudo não existe. Nunca existiu.
Histórias que contam. Que falam.
Não tinha ninguém de meu vendo. Ninguém viu.
Ninguém contou. Eu não vi.
Se visse, tinha seis anos, não sabia mais. Faz tanto tempo.
Não vi. Não soube. Ninguém contou.
Já falei demais, moço. Não sei. Não falo.
Não falo. Não sei. Não falo.
Pai também não viu. Sou muito velho.
Sim, sou muito velho. E pai também não viu. Pai morreu.
[Não falou.

[...]
Nasceu destarte Odylo poeta feito e acabado, detentor de todos os segredos da técnica do verso, como seu amigo Ribeiro Couto, e realizou uma obra pequena, mas antológica, que por si só o situaria entre os nossos melhores poetas de todos os tempos.

Os seus versos – os publicados e os inéditos, que só os amigos íntimos temos o privilégio de conhecer – são música, proporção, harmonia e graça, surpreendendo a um tempo pela espontaneidade e equilíbrio. É fascinante a riqueza metafórica e metonímica da sua poesia. O exercício excitante e sutil de procurar a magia lírica, essa busca apaixonada do maravilhoso, que afinal é sortilégio de toda Poesia, doce na simplicidade e clara naturalidade do quotidiano, constitui o segredo da sua originalidade: um lírico íntimo e secreto, confidencial e doméstico. E, longe dos compromissos de escolas e de modas literárias, ele se enfileira hoje entre os melhores e os mais autênticos poetas da língua portuguesa de todos os tempos.

CRÍTICO E ENSAÍSTA

Neto de professor, filho de juiz, o gosto de julgar e o prazer de ensinar vieram-lhe do sangue e fizeram dele um crítico literário dos mais lúcidos. Vida inteira dedicada ao convívio dos livros, leu bem mais do que escreveu. Mas, além de ler e escrever, viveu – e é da vivência lúcida e sensível deste homem ancorado na vida, que brotou a sua crítica literária – clara, isenta e livre. Sua passagem pela crítica literária do Diário de Notícias (1953) proporcionou-lhe oportunidade de escrever alguns estudos excelentes sobre o panorama do Simbolismo brasileiro, sobre o jeito malicioso e discreto com que os mineiros contam histórias, sobre a vida e o drama de Lima Barreto; sobre problemas de Literatura para crianças, sobre História e Biografia, sobre alguns temas históricos do seu agrado particular (José Bonifácio, Nabuco, Rui). Depois, noutros jornais, a “Evocação de Cabiuna” (talvez o melhor, mais agudo e compreensivo estudo publicado no Brasil sobre Ribeiro Couto); sobre o poeta e o homem Gonçalves Dias. Mas não só na área estritamente literária este crítico se afirma. Tratando com versatilidade e clareza vários temas sociais, políticos e até cientificos, revelou-se um ensaísta extraordinário. Ensaios esplêndidos os que publicou sobre “as comidas do Brasil”, sobre “o Brasil guloso”, sobre a arte de comer e beber. Machado de Assis já dizia que a natureza tem suas leis imperiosas; e o homem, ser complexo, vive não só do que ama, mas também (é força dizê-lo), do que come. Odylo Costa, filho via esse lado do ser humano – e estudou, como ninguém, o que ele come. E com repouso de espírito e lição de gosto, estudou o que se come e o que se bebe na sua terra do Maranhão. Bom garfo, que delicioso estudo o seu – com autoridade de experiência feita, sobre o arroz de cuxá!

Ensaios políticos de rara penetração os seus sobre Jânio, Salazar, Osório, herói e cidadão.

Eu não creio que ninguém até hoje tenha estudado com mais isenção, realismo e compreensão, a obra e a personalidade do homem que governou Portugal durante largos quarenta anos do que o Sr. Odylo Costa, filho, no seu ensaio: Salazar: Agonia e Queda. É uma obra-prima de acuidade e penetração, a explicação de um Governo e de uma personalidade humana. E a imagem total e fiel de uma época e de um povo.
 
Outros ensaios magistrais deve-lhe ainda a nossa Cultura. Citemos os mais importantes: Recuso – Atualidade Brasileira: Sociologia e História Política do Fenômeno da Renúncia; O Último Bragança: Jânio. Perfil Político; Roteiro Misterioso (Alma Noturna da Bahia); Problema Racial no Brasil: Defesa da Fraternidade Entre os Homens; Tentativa do Roteiro Sentimental de São Luís do Maranhão; Retrato Desordenado e Declaração de Amor a Portugal; Rui Barbosa e Romantismo Político; Evolução do Cafajeste. Isto, sem contar o prefácio de Planalto, de Afonso Arinos, e o de Minha Infância, de Gilberto Amado. E toda essa obra, variada, límpida e importante dorme esquecida nos numerosos jornais que enriqueceu com sua colaboração.

O TEATRO

O teatro – ó espírito múltiplo e inquieto – também vos seduzia, e escrevestes a peça para crianças, baseada num poema de Bandeira, – “O Balão que caiu no mar”, representada em 1949. Delícia de peça em um prólogo e três atos. Modelo de graça, ternura, ágil diálogo, conversa encantada de crianças, em que os meninos ainda acreditavam na cegonha – longe vão esse tempo e essa ingenuidade!... A luta do espadarte com o balão no mar... É um lindo poema, de clara e fria noite de São Pedro, em que Cabiuna, Goiabinha e Manuel Bandeira –, sua humanidade lírica e afetiva – com os peixes, a baleia, as sereias confraternizam no reino do maravilhoso, no mundo lúdico da infância, todos contentes no amor da vida e da Poesia.

Lá no meio desse mar
Ouvi cantar e escutei,
Era a senhora sereia
Lá no palácio do rei.

Sr. Odylo Costa, filho,

Tenho comigo a impressão, quase diria a certeza, de que vos sentireis muito à vontade na Cadeira 15, para a qual vos convocou, avisada e lúcida, a nossa Academia. Fundada sob a inspiração de Gonçalves Dias – vosso conterrâneo e que, como vós em Lisboa, cantou a nostalgia do exílio; criada por Olavo Bilac – uma das vozes mais genuínas da nossa terra; e ocupada sucessivamente por Amadeu Amaral e Guilherme de Almeida, nela compreendereis, como Augusto Meyer, que a principal virtude e o melhor influxo deste ambiente é o de incutir no nosso espírito a ideia de uma continuidade no esforço comum, através das gerações. Nessa Cadeira ilustre respirareis o amor da tradição viva, e o seu exemplo e o do seu ideal de confraternidade a serviço do Brasil, da Cultura e da Liberdade. Quatro poetas tão altos, mas tão diferentes, estiveram sempre, como vós, submissos a essa tríplice vocação que é a tradição comum dos que aqui vos precederam.

De todos eles, só um conheci pessoalmente: Guilherme de Almeida. Conheci e amei. Frequentei-lhe com assiduidade aquelas sextas-feiras modernistas da Rua Julio de Castilhos, onde nos reuníamos, como nas terças-feiras de Ronald de Carvalho na Rua Humaitá, para conversar Literatura. Era o bom velho tempo gratuito e caloroso do Modernismo – e os convivas na casa linda de Baby e Guilherme eram Ronald, Leilah e Wanda, Manuel Bandeira, Prudente de Morais neto (para nós então apenas Prudentinho), Sergio Buarque de Holanda, Afonso Arinos Sobrinho (então com seu diminutivo de Afonsinho), Tácito de Almeida, Onestaldo de Pennafort – e um ou outro paulista graduado, de passagem pelo Rio. Antes dessa época, acompanhara o namoro – tão lindo e romântico – de Guilherme e Baby, e publiquei mesmo na minha coluna diária de jornal, o “Poema da Ausência” (em francês), que o poeta de Nós dedicara à noiva. Foi nessa Casa que Guilherme leu, para os amigos, seus poemas modernistas Raça e Meu. E foi então que recolhi de Guilherme a melhor definição dos brasileiros.

Poetas, e poetas, e poetas!

Grato me foi, muitos anos depois, saudar Guilherme de Almeida em São Paulo, na solenidade das Arcadas, em sua coroação de Príncipe dos Poetas, em nome dos escritores brasileiros.

Como estava gentil e feliz o grande poeta – na sua condição de Príncipe, que era, como quem dizia, o Principal, o Maior da sua geração.

E ele encarnou com dignidade e alegria o papel de Príncipe – porque já encarnara com alegria e dignidade o papel de Herói – o Poeta Soldado, de São Paulo.

Sr. Odylo Costa, filho,

A chama do espírito que arde generosamente e que se alimenta do seu próprio fogo é que nos aquece e ilumina, nesta Casa, que é nossa e que de hoje em diante é vossa também para a vida. As emoções que nos visitam a alma são afins, e nos identificam, em unânime humildade, no respeito dos mestres e na ilusão dos discípulos.

Não há, nesta Casa de Machado de Assis, na área tranquila da nossa convivência, espaços vazios e neutros de indiferença.

Esta Academia, que nos cumpre honrar no compromisso, com as suas tradições e com seu labor, afinal ensina a todos nós o sentido da duração e da eternidade, e nos devolve ao espírito com a confiança no destino comum, a alegria de olhar para o Futuro, sem jamais esquecer as vozes respeitáveis do Passado.

Se a felicidade é, como queria Gasset, uma dimensão da Cultura, nós hoje estamos felizes e é com particular satisfação que vos saudamos em nome dos nossos confrades e vos convocamos para participar da serena cordialidade do nosso suave convívio. Sede bem-vindo!

24/7/1970