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Discurso de posse

I
O CÍRCULO HERMÉTICO

Tão imperceptíveis são os fios com que se entretecem os acontecimentos humanos que certos fatos nos deixam em suspenso, vacilantes entre as forças imanentes da causalidade e as interferências imprevistas do acaso. O recurso ao fortuito, para a compreensão de episódios que nos surpreendem, pode significar tanto renúncia à pesquisa, por considerar-se de antemão improvável qualquer resultado positivo, como a crença em poderes que transcendem o mundo das asserções verificáveis. Uma das virtudes dos homens de letras, a dos poetas em particular, é a percepção de linhas que só a fantasia vislumbra sob a crosta fria dos juízos tecidos pela razão, serva do rigoroso e do exato.

Essas considerações, senhores acadêmicos, ocorreram-me ao pensar no destino que tem tido a Cadeira 14, que tenho a honra de ocupar, graças à vossa extrema generosidade. Quantas coincidências marcam a sucessão de seus titulares, todos eles cultores das Ciências Humanas, desde o Direito à Pedagogia, das investigações sociológicas às filosóficas e históricas!

Fundada por Clóvis Beviláqua, o artífice incomparável de nosso Código Civil, eis a Cadeira 14 entregue às mãos receosas de quem tem o seu nome ligado à revisão dessa lei fundamental que, apesar de quase seis décadas de vigência, ainda se conserva em grande parte válida.

Que dizer da coincidência de descendermos ambos de italianos, Clóvis de avô e eu de pai peninsular, casados com brasileiras?

Além disso, como que marcando a vinculação deste lugar a homens empenhados na elaboração de normas legais, lembre-se que tanto A. Carneiro Leão como Fernando de Azevedo deixaram seus nomes ligados a reformas legislativas, no plano pedagógico, cabendo ao meu ilustre antecessor o mérito de ter instituído o primeiro Código de Educação no Estado de São Paulo.

Se recordarmos, outrossim, que Fernando de Azevedo, um dos fundadores da Universidade de São Paulo, é agora substituído por quem teve a honra insigne de ser, por duas vezes, reitor dessa gloriosa corporação de ensino e de pesquisa; e que, por sua vez, ele sucedeu a Carneiro Leão no alto posto de diretor-geral da Instrução Pública do antigo Distrito Federal, não podemos deixar de convir que o encadeamento dos fatos como que parece obedecer a um plano intencional.

Nem se diga que nesse quadro de estudiosos dos problemas sociais não se inclui o patrono da Cadeira, Franklin Távora, pois o Regionalismo, em Literatura, já revela tendência natural à compreensão direta e concreta das relações humanas, sendo que o autor de O Matuto, como o salienta Ronald de Carvalho, não retrata a vida sertaneja “por mero diletantismo, nem para revelar agudezas de estilo ou exotismos caroáveis ao paladar dos citadinos”, mas porque se identifica com os homens do Nordeste, com seus sofrimentos e aspirações. Na realidade, Franklin Távora vai além, pois não lhe faltam preocupações de reforma social, ante os dramas dolorosos tão vivamente descritos, como se depreende do capítulo final de O Cabeleira, onde, antecipando-se ao juízo de Euclides da Cunha sobre os crimes dos sertões, conclui que a Justiça executara o famoso cangaceiro “por crimes que tiveram sua origem na ignorância e na pobreza”, arrematando a sua “história pernambucana” com um patético e ingênuo apelo aos pobres para que “trabalhem, cultivem a terra, as indústrias, as artes, e possam, por seu esforço, vir a ser independentes e felizes”...

Ante essa persistente sucessão de escritores diretamente preocupados com as questões sociais, e dada a convergência de fatos tão singulares como os apontados, enquanto a razão repete aridamente que tudo são obras do acaso, a fantasia abre as asas do sonho e nos segreda as palavras de Herman Hesse a seu amigo Miguel Serrano, que lhe agradecia o privilégio de sentar-se à sua mesa: “Nada sucede casualmente. Aqui só se encontram os convidados certos; este é o círculo hermético.”

Talvez se possa conciliar a razão com a fantasia reconduzindo a parte ao todo, a Cadeira à Academia, onde se encontram os que se dispuseram a ser funcionários da Cultura brasileira, descobrindo nos mais diversos atos de bem servir o segredo da imortalidade. Sim, o nosso é um convívio de pessoas, e a pessoa é o indivíduo de mãos dadas, participante ativo do círculo comunitário. A 41.ª Cadeira, esta é a do lobo solitário, que prefere viver sozinho, às vezes por timidez, outras por vaidade.

Estais percebendo o propósito que me traz a esta Casa, e quanto vos sou grato pela oportunidade que me é dada de falar, do alto desta tribuna, sobre os valores da Filosofia e do Direito, aos quais sirvo há quase meio século, se lembrar que, ainda adolescente, já me aventurava perplexo pelas páginas de Platão ou de Nietzsche.

II
AS CIÊNCIAS HUMANAS NO MUNDO DAS LETRAS

Não sei, em verdade, se me recebeis como jurista ou como filósofo, e é bem possível que à vossa aguda percepção terá sido dado descobrir em meus escritos ardente devoção aos valores estéticos e literários.

Como será possível bem servir às Ciências Humanas sem procurar conciliar o rigor dos conceitos com a beleza da forma? Como não reconhecer que uma lei bela já é meio caminho andado para a realização da Justiça, e que uma frase clara reflete a transparência mesma de uma ideia conscientemente amadurecida? Sem ser necessário reduzir a Ciência à linguagem, nas pegadas de Wittgenstein e dos neo-positivistas contemporâneos, é inegável que o pensamento autêntico já é um esboço de ação, e que a verdade guarda em si mesma, na raiz de sua revelação, a força de seu enunciado.

Se assim deve ser em qualquer país, podemos dizer que no Brasil se trata de valor integrado no processo de nossa Cultura, como um de seus característicos fundamentais. Com razão foi dito por Antonio Candido que, “ao contrário do que sucede noutros países, a Literatura é aqui, mais do que a Filosofia e as Ciências Humanas, o fenômeno central da vida do espírito”, tendo Fernando de Azevedo atribuído ao ensino humanístico, ministrado nos colégios de padres, “o interesse pela vernaculidade e o pendor para dar a tudo expressão literária, como também o amor à forma pela forma”.

Não é sem motivo que os pórticos centrais da tradicional Faculdade de Direito de São Paulo ostentam três nomes de poetas, Álvares de Azevedo, Castro Alves e Fagundes Varela, a lembrar aos moços que ninguém entra na Casa do Direito sem se defrontar com os valores da Beleza e da Poesia.

Dos méritos de Clóvis Beviláqua como escritor dá-nos Pedro Calmon este julgamento veraz:

A clareza solar, a simplicidade sem plebeísmo; castiça compostura da expressão, que não carece da energia suplementar das palavras vibrantes; traço elegante da frase; apuro da sintaxe, imagem apropriada, frescura e até graça de uma adjetivação atraente. Seu estilo é a medida, o senso, é a intuição de seu magistério e a sua consciência de jurista filósofo.

Como todo cultor autêntico do campo de conhecimento que lhe tocava investigar, tinha Clóvis plena consciência da íntima ligação existente entre Jurisprudência e linguagem, ao fixar, no seu Direito das Sucessões, esta diretriz que é uma profissão de fé na Justiça e na Beleza:

O estudo do Direito não é uma simples volúpia da mente; é antes a religião austera e grave do justo, cujos bonzos somos nós, os juristas. E para divulgar as verdades desse evangelho, cujas folhas de aço brunido a humanidade caldeou, na forja das lutas sociais, é preciso ter um pensamento claro e forte e uma palavra límpida e sóbria.

O dom de síntese, que se estadeia em todas as suas obras, desde as suas primeiras monografias sobre o Direito da Família, das Sucessões e das Obrigações até o Direito das Coisas, publicado aos 83 anos, derradeira, mas não menos valiosa pérola de um precioso colar, atinge o seu momento culminante nos comentários límpidos e sucintos do Código Civil, exemplo admirável de sacrifício do supérfluo para que não houvesse sombras perturbando o pensamento essencial.

A sua personalidade de “santo e sábio”, na qualificação deslumbrada de Euclides da Cunha, confundia-se com a de mestre do Direito, fazendo-nos evocar o ensinamento platônico de que não há Justiça sem homens justos. Jurista filósofo, preocupado até o fim de sua vida com a possível visão global das Ciências, desde a sua admiração juvenil por Augusto Comte e Herbert Spencer até a sua reação contra o historicismo trágico de Spengler, jamais fez da Filosofia um adorno de suas pesquisas jurídicas, por saber que, focalizada à luz dos supremos valores humanos, a Jurisprudência, consoante lição perene do Digesto, é vera, non simulata philosophia.

De outro lado, como esquecer os liames que ligam o Direito à Educação? Desde os clássicos ensinamentos de Montesquieu, sabemos quão relevante é a “função pedagógica” das leis, fato que no desenvolvimento da cultura pátria tem sido mais de uma vez posto em evidência.

Pedagogo e homem de letras foi, acima de tudo, A. Carneiro Leão, cuja atividade é marcada também por amplo leque de interesses, desde a Sociologia aplicada à administração escolar até as pesquisas filosóficas que o tornaram um dos primeiros membros do Instituto Brasileiro de Filosofia. Não obstante seu incansável apostolado de brasilidade através da Europa e das Américas, para difusão de nossa Cultura, jamais a excelência da forma desertou das páginas penetrantes que nos legou sobre os mais variados temas, considerando ele a língua “tesouro tão sagrado quanto o fogo da cidade antiga”.

Dispensável seria encarecer as virtudes estilísticas de Fernando de Azevedo, reveladas não só nas suas preciosas evocações de vultos e momentos dos mais expressivos da cultura latina, ou nos ensaios que lhe reservam lugar de relevo na história de nossa Crítica Literária, mas também por constante amor ao apuro da forma, qualquer que fosse o objeto de sua análise.

Seu feitio fundamental de humanista manifesta-se em tudo que escreve, demonstrando como a pesquisa científica, sobretudo nos domínios das ciências do espírito, pode e deve progredir em sintonia com a consciência artesanal própria do homem de letras. Percebe-se que não se entrega às primeiras impressões formais, mas cuida de descobrir para cada ideia a estrutura verbal mais adequada e elegante.
 
Do seu longo convívio com os jesuítas parece-me que lhe ficou um senso de disciplina e de austeridade, elementos incindíveis de seu estilo de vida e de escritor. Estudioso de ideias, ou de fatos elevados ao nível teórico, de coisas tornadas transparentes em razão do enfoque conceitual, a natureza não lhe interessa a não ser na medida em que serve de apoio à explicitação de um pensamento. Quando ela surge em suas páginas, vem composta e ordenada, como que amoldada ao esquema do discurso.

Nenhuma vibração excessiva no seu estilo, nada que traia transbordamentos de alma, ou nos dê a impressão de forças telúricas originárias mal contidas no rigor da frase. Tudo nele é medido e comedido, sujeito ao crivo de uma crítica objetiva e lúcida, acompanhada de leve ironia, embora, às vezes, seus períodos se alonguem e se percam em meneios barrocos.

A dominante composição ordenada dos elementos verbais projeta-se na estrutura de seus livros, quase todos precedidos de uma longa introdução, seguida de um texto denso e minucioso que culmina num feixe de conclusões ou perspectivas, quase a lembrar-nos as regras a que deviam se ajustar o teatro grego ou a oratória romana.

III
O EDUCADOR

Não creio possa haver na vida de um homem dignidade mais alta do que a de educador, e foi esta a nota marcante na complexa e rica personalidade de Fernando de Azevedo, apesar de ter tido uma “vida numerosa”, consoante expressão feliz de Cassiano Ricardo ao saudá-lo em nome da Academia.

À medida que nos identificamos com a tarefa básica que nos cabe exercer no mundo, o nosso comportamento vai se convertendo, imperceptivelmente, em missão, em forma de vida, no nosso peculiar e irrenunciável modo de existir. Daí o sentido pedagógico que se infunde em todo empenho deveras consciente, culminando por permear todas as nossas atitudes de natural intencionalidade comunicativa e aliciadora. Não é sem motivo que cultura e educação são termos complementares, até certo ponto idênticos, reconduzidas que sejam ambas à fonte espiritual outorgadora de significado aos homens e às coisas.

Quando, porém, é a Educação mesma que se põe no centro de nossa existência, por mais que nossas atividades se multipliquem, nos planos da Sociologia ou da História, ou nos caminhos e descaminhos da “praxis”, é ela que acaba por prevalecer, infundindo a sua cor essencial a todas as nossas criações. É o que acontece com Fernando de Azevedo, cujo nome é justamente lembrado ao lado dos de Anísio Teixeira e Lourenço Filho, os quais compõem o tripé sobre o qual se assenta, principalmente, a renovação dos estudos pedagógicos no Brasil contemporâneo.

Recordar esses três nomes é evocar uma das fases mais significativas de nossa vida cultural, assinalada por apaixonadas dedicações e não menos árduas polêmicas, por contrastes que o tempo já se encarregou de atenuar. Sentimos todos que já se quebraram as arestas mais vivas que extremavam atitudes e posições, sendo-nos permitido perceber, sob o emaranhado das correntes em conflito, um núcleo essencial de ideias incorporadas, por quase unânime consenso, à nossa experiência educacional, muitas delas ainda em processo de efetiva atualização.

Valorado, à distância, aquele grande movimento de reforma educacional que, quase ao findar da década de 1920, desfraldou a bandeira da “escola ativa” ou da “escola do trabalho”, ventilando a controvertida tese da “progressiva socialização da criança” –, frase que se prestou a interpretações dúbias de fundo ideológico, desde a coletivista à estatizante –, aquele movimento, tendente a despertar no Brasil uma consciência educacional fundada nas conquistas atuais da Ciência e da Tecnologia, já se recorta na tela do tempo com contornos mais precisos.

O mérito primordial de seus mentores consistiu, a meu ver, em terem colocado, pela primeira vez, com plena consciência crítica, o problema da educação popular não só na unidade congruente de todos os seus graus, mas também em função de uma cosmovisão considerada adequada às nossas circunstâncias histórico-sociais, visando à democratização do ensino. Se partiam, com efeito, do reconhecimento de que os valores pedagógicos não podem prescindir de uma prévia Antropologia filosófica, isto é, da conpreensão “do que é e do que deve ser o homem”, não procuravam inferir, abstratamente, de uma Filosofia as medidas práticas a serem adotadas, mas procuravam subordinar a política educacional “aos diversos graus de estrutura e aos caracteres contingentes de uma coletividade”.

Esse sentido de “concreção”, posto em relevo por Fernando de Azevedo, esse constante propósito de ligar a política pedagógica ao complexo de nossas condições e necessidades coletivas, em uníssono com as diretrizes dominantes de nossa época, representou um valor positivo, na medida em que nos devolvia a nós mesmos, impondo fecunda mudança de atitude diante dos problemas.

Bem sei que não subsistem, atualmente, as ilusões com que se comprazia o “Iluminismo pedagógico”, cujos adeptos, nas pegadas de John Dewey, julgavam estar realizando, nos domínios da educação, uma verdadeira “revolução copernicana”, aguardada desde os modelos da cultura grega, “ao ritmo da verdade progressiva” capaz de fazer o homem “passar do místico ao positivo, pela educação científica do espírito”. Não ignoro que uma compreensão mais realista dos valores existenciais exige mais prudente confiança em todo plano de educação, cujo objeto é o homem, um ser por natureza imprevisível; nem tampouco atribuímos a motivos pedagógicos resultados dependentes, na realidade, de múltiplos fatores históricos e econômicos, mas tais divergências não nos impedem de reconhecer que o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, da lavra de meu eminente predecessor, abriu caminhos que ainda hoje estamos trilhando, no sentido de compreender-se o ensino como dever precípuo do Estado e a escola como fonte de liberdade individual consciente e instrumento crítico de participação comunitária.

Cabe observar que, na campanha renovadora em que Fernando de Azevedo se empenhou com denodo, a sua formação clássica e humanística, bem como o muito que representava em seu espírito a cultura francesa, sobretudo através da Escola Sociológica de Durkheim, impediram-no de entregar-se ao pragmatismo instrumentalista que fascinava a maioria de seus companheiros de ideal. Procurou antes compor, de maneira harmoniosa, as exigências do Humanismo Clássico, cuja tônica consiste na afirmação do valor fundante da subjetividade, com o Humanismo científico que proclama o valor objetivo e transpessoal das verdades conquistadas através da História. Continua sendo essa, senhores acadêmicos, a mais difícil e a mais delicada missão dos intelectuais de nosso tempo, convencidos todos, cada vez mais, da complementaridade que deve existir entre subjetividade e intersubjetividade, para evitarmos as trágicas soluções coletivistas que aniquilam as individualidades e bloqueiam o processo dialógico da História.

IV
UM CONCILIADOR DE ANTINOMIAS

Fernando de Azevedo jamais se contentou com elucubrações teóricas, sempre impelido que foi para o plano da ação, o que explica ter sido mais um enamorado de Roma do que da Grécia, talvez por sentir-se menos atraído pelo Logos, como contemplação pura, do que pela Voluntas que significa a inteligência empenhada nas alternativas inevitáveis do querer e do agir.

Homem de pensamento e de ação, compreendeu, bem cedo, a força das antinomias que se interpõem entre o projeto e a realidade, entre o modelo e a ordem surpreendente dos fatos, passando a exigir de si mesmo e de seus colaboradores fidelidade e dedicação de todas as horas.

Tinha-se na conta de revolucionário e até mesmo de “reformador radical”, pelo menos em assuntos pedagógicos, mas é fácil perceber com tal radicalismo, consoante ele mesmo cuidou de ressalvar, bem pouco se conciliava com a sua formação humanística e clássica: “Era no passado”, advertia, “que deitava raízes, alimentadas nos estudos da antiguidade grega e latina, e com escala pela Idade Média e pela Renascença, até os tempos modernos.”

Quem soube melhor compreendê-lo foi Anísio Teixeira, ao descobrir nele “uma estranha conciliação dos valores antigos e novos”. Essa ambivalência de seu ser pessoal gera-lhe perplexidades no plano teórico, e lhe sugere conciliações só compreensíveis na esfera da praxis.

A atitude, com efeito, de Fernando de Azevedo, enquanto homem de ciência, é a de um relativista, embora se considere até mesmo cético. O ceticismo, ponderava ele, se “condenável talvez em matéria moral, tem sua razão de ser em matéria de Ciência, em que esse ceticismo feito de dúvida, de modéstia, de tolerância é de rigor e não é mais do que a dúvida metódica de Descartes, com que nos procuramos resguardar das conclusões feitas e das conclusões apressadas”.

Tal atitude, em última análise, mais relativista do que cética, preserva-lhe uma posição de equilíbrio e meio termo, levando-o a evitar soluções extremadas. Atente-se para o expressivo tópico de seu livro A Educação e Seus Problemas, em que confessa:

Talvez seja uma quimera de meu temperamento procurar por sistema, nas sínteses em que se conciliam as antinomias, as soluções dos problemas postos por esses conflitos entre o indivíduo e a sociedade, o idealismo e o materialismo, a especialização e a cultura geral, a teoria e a prática, a universalidade e a Nação.

Para acentuar ainda mais essa tendência fundamental, pretendia que a Universidade de São Paulo fosse orientada pelo “claro espírito de Ariel, feito de serenidade e de equilíbrio, capaz de fundir, numa larga síntese, todas as antinomias”.

Fiel a tais propósitos, assim como não contrapõe o Humanismo científico ao tradicional, também não vê contraste entre Universalismo e Nacionalismo, reconhecendo ser a Nação uma das maiores forças da História.

Da mesma forma, no que se refere à causa da Democracia, que se confunde com a da liberdade e a do espírito crítico, também não titubeia em optar pela “Democracia social e econômica”. “Nem a Democracia liberal nem a ditadura”, proclamava ele, em 1936, com a afirmação, até certo ponto surpreendente, de que “a salvação da Democracia estará provavelmente na substituição da Democracia liberal e parlamentar por uma Democracia representativa mais próxima da Democracia direta, não somente política, mas político-econômica, com instituições sindicalistas ou corporativas obrigatórias”. Não sei até que ponto Fernando de Azevedo se manteve fiel a essa perspectiva política, mas é certo que jamais deixou de se considerar um “liberal”, o que não implica contradição alguma, pois uma coisa é o Liberalismo como categoria histórica e regime político contingente, e outra coisa é o liberalismo como atitude espiritual e exigência ético-política, fruto da convicção de que toda ordem democrática deve se fundar na autoconsciência da liberdade própria e no concomitante reconhecimento da liberdade alheia.

O mesmo espírito conciliador é confirmado no que se refere ao valor da História, repelindo ele tanto o historicismo absoluto como as “verdades supra-históricas”, convicto de que o “relativismo histórico, de acento singularmente moderno” é o único compatível com o processo cultural e a natureza contraditória da espécie humana.

Merece especial referência, nesse contexto, a judiciosa repulsa a toda concepção unilinear ou monocórdica da evolução histórica, pelo reconhecimento de que “as respectivas fases não terminam bruscamente, mas se prolongam cada uma delas na seguinte”. Assim acontece, efetivamente, visto como podem coexistir, através do tempo, os processos técnicos e os estilos de vida mais conflitantes, originados de épocas distintas, os arcaicos lado a lado com os novíssimos, uns e outros desempenhando uma função social válida, assim como, às vezes, se justapõem, em sincretismos surpreendentes, categorias sociais opostas, vinculadas a fontes que a rigor já se poderiam considerar exauridas.

Nessa linha de pensamento, mostra-se Fernando de Azevedo defensor ardoroso da “unidade na diversidade”, certo de que o Brasil não poderá apresentar, “ainda mesmo em período mais orgânico, o caráter de um bloco maciço e infrangível, com a harmonia e a unidade lógica de um sistema ideal”. A essa luz, insurge-se ele, com razão, contra os planos artificiais que pretendiam e ainda pretendem impor um modelo universitário único para todo o país, quando é graças às diversidades regionais que poderão eclodir as potencialidades todas de nosso espírito criador.

É claro que, nesse quadro de ideias, o materialismo econômico não inspira ou condiciona as suas análises e interpretações da cultura brasileira. Condenando toda e qualquer preponderância do econômico sobre o político, concorda com Gilberto Freyre quanto à necessidade de se recolher da melhor tradição filosófica e romântica “o pleno sentido humano que sempre há de atuar contra as especializações inclinadas ao esquecimento do homem pelo homo oeconomicus ou qualquer outro retalho ou pedaço de homem”.

Foi com esse espírito aberto, acolhedor de orientações distintas e contrastantes, que Fernando de Azevedo se manteve, durante 15 anos, à frente da Companhia Editora Nacional, fundando e dirigindo coletâneas que se tornaram instrumentos indispensáveis à compreensão da Cultura brasileira, bem como à atualização de nossos conhecimentos científicos e pedagógicos.

Não desejo concluir a análise das conciliações aporéticas tentadas pelo autor de A Educação entre Dois Mundos, sem alusão a uma tese polêmica ainda recentemente focalizada por Thomas E. Skidmore em sua obra Black Into White – Race and Nationality in Brazilian Thought. Refiro-me à ousada posição de Fernando de Azevedo no concernente ao nosso problema racial.

Contrariando, nesse ponto, a sua natural tendência à composição dos distintos ou dos opostos, ao invés de reconhecer os valores positivos da “mestiçagem”, situando-se entre os extremos da “branquitude” ou da “negritude”, assevera – e pensa poder fazê-lo à luz dos censos demográficos analisados –, que a nossa evolução étnica tende ao desaparecimento progressivo dos negros e índios, “tanto nas diluições sucessivas de sangue branco como pelo processo constante da seleção biológica e social e desde que não seja estancada a imigração, sobretudo de origem mediterrânea”... Desse modo, o Brasil estaria fadado a “recolher à velha Europa – cidadela da raça branca –, antes que passe a outras mãos, o facho da civilização ocidental”, à qual emprestaríamos uma luz nova e intensa, a da atmosfera de nossa própria civilização.

V
O SOCIÓLOGO

É Fernando de Azevedo apontado como um de nossos mais eminentes sociólogos, e não creio possa haver alguma voz discordante. Seus méritos vão desde o plano dos princípios e da clara e precisa exposição dos sistemas até a aplicação do método sociológico na disquisição de nossos problemas fundamentais, ou na reconstituição histórica dos ciclos de nossa Cultura.

Pelo menos duas gerações de brasileiros aprimoraram seus conhecimentos graças aos Princípios de Sociologia de Fernando de Azevedo, obra escrita com plena consciência de estar sendo exposta uma Ciência que ainda se acha à procura de seu objeto, ou, como salientava ele, “uma Ciência imatura, não bem constituída e organizada”, o que exige “o abandono de toda ideia preestabelecida, o abandono de todo preconceito”. Daí ainda o seu propósito de “extremar, nas doutrinas estudadas, as hipóteses científicas, as hipóteses de trabalho e as verdades apuradas”.

Não obstante tais reservas, é inegável, porém, que a Sociologia constituiu o horizonte último de sua compreensão do universo e da vida, a tal ponto que, em seus escritos, prevalece a tese contiana da Sociologia como Ciência primeira, bem como a compreensão da Filosofia como síntese provisória do saber científico, “um salto no desconhecido, sem conservar pontos de apoio constantes”. Seu entusiasmo pelos estudos sociológicos contrasta, com efeito, com certo desinteresse pelas pesquisas filosóficas puras, como o demonstra o fato de ter-lhes destinado apenas seis páginas dentre as 800 dedicadas à análise da Cultura brasileira... Tal orientação não destoava da reinante há bem pouco tempo, até e enquanto prevaleceu a tese desconsolada e falha de que a Filosofia no Brasil tem sido tão somente a história de influências passiva ou afoitamente recebidas. Já foi demonstrado, à saciedade, como desde os tempos coloniais, soubemos criar algo de novo no mundo das Letras, emancipando-nos da Literatura europeia. Ora, uma análise mais aprofundada de nossas produções nos domínios filosóficos está revelando que algo de próprio já se afirma também na forma de nossa participação no diálogo universal das ideias.

Não permaneceu Fernando de Azevedo adstrito à tela dos princípios sociológicos. Por temperamento, foi logo levado a aplicá-los, tanto no domínio da Pedagogia como na interpretação de nosso desenvolvimento intelectual ou político. Pertence à primeira dessas diretrizes a sua Sociologia Educacional, que, no dizer de Roger Bastide, foi obra pioneira, instauradora de uma ordem de estudos da qual Émile Durkheim nos havia dado apenas o prefácio. Esse livro, sob certo prisma, condensa as ideias capitais de meu preclaro antecessor, com a afirmação de uma tese essencial a toda atividade educativa que é o reconhecimento do poder de interferência ou de direção do homem no desempenho histórico. Essa crença na “intervenção deliberada da sabedoria humana nas diversas partes do movimento social, para dirigi-lo de acordo com as leis naturais”, Fernando de Azevedo a atribui à inspiração de Dewey e Bergson, procurando conciliar “as duas faculdades específicas do homem (a linguagem e a técnica) e a tendência à exploração, à descoberta, à criação, em que se alarga, no plano humano, ação do impulso vital (élan de vie) e que consiste numa exigência de criação”.

Ora, tal entendimento da evolução histórica subentende uma série de problemas incompatíveis com a sua acanhada compreensão da Filosofia, mas é a ambivalência de seu ser pessoal, de cunho ao mesmo tempo humanístico e científico, que lhe vai fornecer, mais uma vez, a chave para as suas sugestivas interpretações de nossa “Cultura” e “civilização”, tomadas estas duas palavras nas acepções tradicionais que ele persiste em conservar, em todas as suas obras, em contraste com o que prevalece, hoje em dia, no estudo da matéria.

Fiel ao constante propósito de uma visão global dos fenômenos sociais, como não crê em leis imanentes ao desenvolvimento histórico, sabe compor, com engenho e arte, os resultados das análises particulares, tendo sempre a evocação do passado como ponto de referência, mas sem se arriscar a prever o futuro, pois, a seu ver, em matéria de futurologia, tudo tem sido previsto, menos o que acontece...

Exemplo de harmoniosa composição do particular e do geral, do presente e do passado, num amplo painel em que se combinam os tons sociológicos e históricos, é-nos dado por Canaviais e Engenhos na Vida Política do Brasil, talvez o mais orgânico e maduro de seus livros.

Desenrola-se nessa obra, como em suas demais produções, uma curiosa “história paralela”, resultante da presença permanente, em sua mente, dos modelos antigos. Se se refere às grandes áreas sertanejas, ocupadas pelas lavouras de cana, é aos latifúndios de Roma que remonta o seu pensamento. O senhor de engenho lembra-lhe o pater familias, assim como a estrutura da família patriarcal, no início de nossa civilização, repete o arcabouço de tipo romano, comprazendo-se o seu espírito na descoberta de pontos de contato e dessemelhança entre a nossa tipologia colonial e a da Renascença. Pode-se dizer que era uma tendência conatural à sua mente, induzindo-o a comparações sugestivas como a feita, em seu livro No Tempo de Petrônio, entre a posição geográfica de Roma, protegida pelos pântanos e refúgio de criminosos e aventureiros, com o planalto de São Paulo, “onde, nos primeiros tempos coloniais, se formou, no isolamento criado pelas serras e atoleiros, o mais forte núcleo de independência e se enrijou, na paixão das aventuras, o espírito indomável dos bandeirantes”.

Dir-se-á que nenhum historiador da Cultura pode evitar tais contrastes e confrontos, mas é exatamente por isso que se não deve reduzir o processo histórico a um encontro casual de tipos e modelos, e que toda “teoria da cultura” é condicionada por uma “teoria do homem”, pelas “constantes” que, através das mutações históricas, revelam a unidade essencial da fonte da qual os acontecimentos promanam. Tais problemas não são postos explicitamente por Fernando de Azevedo, mas latejam, implícitos, em toda a sua obra de historiador e de sociólogo.

O que me atrai sobremodo, nas suas reconstruções do passado, cuja finalidade primordial é a melhor compreensão do presente, consiste no sentido de concretude e totalidade. Seu espírito não sofre do mal tão comum de apequenar os assuntos. Se algo o distingue será talvez certo exagero na ansiedade das visões globais.

Assim é que, convidado a prefaciar os resultados do Recenseamento Geral de 1940, toma-os como ponto de partida para uma compreensão panorâmica da Cultura brasileira, na qual a análise dos problemas educacionais se me afigura a de maior alcance; se indaga dos valores da “civilização do açúcar”, é toda a vida política brasileira que se descortina diante de nossos olhos; se estuda a Estrada de Ferro Noroeste e seu papel no sistema da viação nacional, é motivo para situar o problema ferroviário no plano da política continental, já antevendo, na marcha para o Oeste, a conquista dos pantanais, e a nossa expansão nos setores da energia elétrica e da indústria do petróleo.

Concepções grandiosas, horizontes amplos, mas, como sempre, sem desprezo das minúcias da investigação, e sem ultrapassar os limites objetivos das Ciências. Embora não o declare, a sua religião é, no fundo, a da positividade, pois, na urdidura espessa das verdades científicas que o fascinam e empolgam, não se abrem clareiras de perplexidades para a transcendência ou o mistério...

VI
A MÁSCARA E O RETRATO

Fernando de Azevedo, senhores acadêmicos, não ocultava a sua preocupação pelo futuro de sua imagem de homem de letras, de educador e de sociólogo, tantas são as confissões e reivindicações de ideias e atitudes ao longo de sua obra.

Tal preocupação, que representa a sombra natural da vaidade humana, talvez se mostre mais pronunciada na República das Letras. Dela padeceu, como todos nós, mas de forma aguda, o meu nobre predecessor, o qual, como que temeroso do juízo dos pósteros sobre sua personalidade, deixou-nos uma distinção subtil entre “máscara” e “retrato”, dizendo-nos que este reproduz fielmente uma fisionomia; enquanto que aquela fixa apenas os seus traços característicos, sem qualquer intenção de disfarce ou ocultação.

Na realidade, no jogo pirandelliano ou kafkiano dos espelhos e das imagens, bem difícil será saber onde acaba o retrato e começa a máscara, pelo menos à luz subjetiva dos retratados. Em se tratando, aliás, de um latinista exímio, não será demais lembrar que, no teatro romano, persona era a máscara representativa do protagonista nas suas notas típicas.

De qualquer forma, cuidei de transmitir-vos as impressões que me ficaram da leitura ou releitura das obras de um espírito lúcido e rigoroso que se arreceava das contradições e ambiguidades, sem reconhecer quão necessárias são, muitas vezes, a luz e a sombra, a linha precisa e a que se esfuma na sugestão criadora.

Através de suas ideias mestras, das que o tempo avaro me permitiu reunir neste discurso, pode-se intuir o talhe essencial de sua personalidade complexa de homem eternamente insatisfeito, dominado por uma dedicação sem termos à terra brasileira, cuja Cultura queria projetada no futuro, mas plenamente preservada em suas raízes tradicionais, o que o impediu de perceber a contribuição relevante de valores novos, incorporados, sim, mas não diluídos em ser histórico.

Mineiro, integrado de corpo e alma ao chão paulista, conservou de sua terra natal o sentido reservado e comedido, que o fez destacar, da oração de Fichte ao povo alemão, o tópico significativo em que o mestre do idealismo germânico conclamava os seus concidadãos para que fossem, antes de tudo, “sérios”.

Tendo feito de São Paulo a sua pátria adotiva, procurava contrabalançar o senso da tradição com o sentido projetante do futuro, o primado de cujos imperativos e valores lhe parecia essencial tanto à atividade pedagógica como ao destino social e político de um povo.

Difícil será dizer, porém, qual dessas forças preponderava em sua personalidade. “Revolucionário” não o foi, por certo, se dermos à palavra o peso todo de seu significado. Dir-se-á que a sua vida se desenrola na tensão constante do antigo e do moderno, o que se nota em todas as suas decisões, como, por exemplo, ao determinar que o Instituto de Educação desta cidade maravilhosa fosse construído em estilo colonial, como de estilo colonial desejava todo o campus da Universidade de São Paulo, apesar de conceber ambas as entidades como instrumentos de “reformas radicais”.

Talvez seja essa tensão o motivo recôndito de certas atitudes aparentemente ásperas ou intolerantes, quando, na realidade, resultavam de sua integral dedicação às funções exercidas sempre com alto senso de responsabilidade.

Por maior, no entanto, que fosse o seu empenho, nunca faltou às regras de polidez e de elegância, como era de se esperar de um admirador de Petrônio, arbiter elegantiarum, de tal modo que, já no declínio de sua vida, pública, podia se vangloriar da “capacidade (ou da fortuna) de jamais ter tido adversários de que não pudesse fazer amigos”, e – o que é raro nos azares da política –, de “não ter tido abissínios”, de jamais ter sido atacado, quando decaído do poder, pelos que o haviam apoiado, nem ter sofrido desilusões daqueles em que realmente confiara.

Nos poucos meses de mais íntima convivência, quando ambos desempenhávamos as funções de secretário de Estado, em São Paulo, tive a felicidade de conhecê-lo melhor, parecendo-me que, sob a capa de frio insulamento, se escondia um refreado desejo de comunicação, tendência da qual já me apercebera no seio do Conselho Universitário, onde, porém, a sua constante, atitude de liderança era pouco propícia à formação da “corrente simpatética”, a que se refere Luigi Bagolini em seu primoroso ensaio sobre os moralistas ingleses do século XVIII.

VII
SAUDADE DO FUTURO

Perdoai-me, senhores acadêmicos, se me alonguei em demasia, perdendo-me em considerações um tanto distantes das letras floridas, mas quisestes-me jurista e filósofo, e todo artesão honesto trabalha melhor com a sua própria ferramenta.

Ademais, não são a Filosofia e o Direito estranhos a esta Casa, que já contou, em seu seio, como ainda conta, com representantes dos mais ilustres de uma e outra Ciência. Lembrá-los todos seria um desfilar de nomes, bastando evocar os de Rui Barbosa e Lafayette Rodrigues Pereira, Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua, Graça Aranha e Pedro Lessa, Artur Orlando e Alcântara Machado.

É uma tradição que a Academia preserva e acalenta, tão significativa é a plêiade de confrades que, no presente, dignifica o pensamento nacional nos planos da Jurisprudência, da Filosofia Geral, da Filosofia Literária, História, política ou jurídica. Nem podia ser de outra forma, sendo esta a Casa de Machado de Assis, sobre cujos valores filosóficos Afrânio Coutinho e Barreto Filho nos brindaram com análises penetrantes.

Era natural, pois, que, logo após a vossa gentil escolha, ao preparar-me por merecê-la, um estranho sentimento de antecipada saudade desta noite começasse a se apossar de meu espírito. “Saudade do futuro”, para empregar expressão de minha adorada Lívia Maria em ensaio que lhe valeu merecida láurea universitária, em concurso sobre Casimiro de Abreu, promovido pelo Ministério da Educação e Cultura. Saudade do futuro, nostalgia precursora e receosa daquilo que pode, deve ou tem de acontecer. Saudade arraigada no senso de precaridade do que somos e fazemos.
 
Somos um ser que espera e desespera, na polaridade do lembrar e do esquecer. Triste é quando o que longamente se almeja descamba para o olvido, enquanto que a saudade é o escrínio no qual amorosamente guardamos os momentos preciosos de nossa existência.

No mais recôndito de meu espírito já se abriga a lembrança deste encontro, que quisestes tornar ainda mais emocionante pela palavra carinhosa e sábia de Cândido Motta Filho, grande amigo e companheiro de tantas horas alegres e amargas, e exemplo raro de homem de ciência e de letras.

A entrega do colar confiastes a Josué Montello, para que um literato puro, dos mais eminentes do País, apusesse a sua chancela ao meu ingresso nesta Confraria, trazendo o cálido vento do cais da Sagração para amenizar a frígida garoa paulistana. A espada, símbolo da força espiritual da Academia, ser-me-á entregue por Alceu Amoroso Lima, síntese admirável de amor às Letras e à Filosofia.

Já começa a declinar o arco desta noite que nos tornou iguais no culto da amizade e da Beleza. A noite é sempre fonte de igualdade e comunhão, enquanto que a luz solar distingue, individualiza, fustiga. Noite que é generosidade e participação, noite do orvalho que sobe da terra, mas parece sobre ela descer com o seu manto de ternura.

Guardemos a saudade orvalhada desta noite!

21/5/1975