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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Adonias Filho

Poeta Mauro Mota,

Em vossa obra literária, Sr. Mauro Mota, os caminhos são vários. E, porque sois um escritor – escritor no sentido de um artesão na linguagem, um debatedor nos problemas, um humanista no reconhecimento das coisas –, não tenho como evitar a colocação em vossa obra literária dos estudos de Ciência e as reportagens jornalísticas de circunstância. Esse escritor, feito de juízo especulativo e observação objetiva, que jamais se evade da sensibilidade intelectiva, apenas esse escritor, assim de percepção que capta o mundo e a vida em estado artístico, explicará o poeta. Sei perfeitamente que, apesar de tantos e vários caminhos, aqui estás agora, em nossa Academia, porque sois o poeta.

Permiti que vos diga, pois, o poeta, absorvendo todos aqueles caminhos na herança das experiências e das sondagens em livros como O Cajueiro NordestinoCapitão de FandangoPaisagens das Secas, Terra e GenteImagens do NordesteOs Bichos da Fala da Gente –, deles se aproveitaria para robustecer a vocação lírica. Impossível fugir, por escapismo intelectual, à matéria imediata e viva que se erguia em frente. E, porque ali nascestes para o testemunho e o depoimento, quer quando recordais O Pátio Vermelho e No Roteiro do Cariri ou quando buscais os Votos e Ex-Votos e a Fitofobia e Dietas, permaneceis sempre alerta como a serviço do poeta. E quero afirmar que o poeta, sem sair de vós, dispunha efetivamente de tantos – o cronista, o ensaísta, o memorialista – que não foi difícil reclamar um crítico para a complementação.

Algumas inquirições, como as da Geografia Literária e Província e Academia, bastam para demonstrar a presença do crítico literário. O analista, de tamanho rigor no exame – e sempre a valer-se da curiosidade que o fez um dos biógrafos de Delmiro Gouveia – , revelar-se-ia um receptivo. Dizer receptivo, porém, é dizer compreensão. E, na auscultação que realiza para a abordagem das mensagens e dos estilos, dos processos e das técnicas, não falta essa compreensão que, já convertida em uma das características do crítico, será uma das principais constantes no poeta.

Há um conjunto de obras específicas em torno do poeta, pois, com homogeneidade assegurada pelo mesmo escritor. Esses vários caminhos se encontram, fundem-se por vezes, articulam-se e se combinam como se intrinsecamente estruturassem o poeta – que sois vós, Sr. Mauro Mota – na inventividade e na inspiração, no comportamento e na engenharia. Mas, e de tal modo todos se misturam com o poeta assessorando-o, configurando-o, acionando-o – que, mesmo que o houvésseis desejado, ao poeta não teríeis evitado a localização literária. E, se o destino a impôs, vós a aceitastes em vossa própria liberdade.

Antes que sobrevenha o momento de tentar a auscultação de vossa poesia, porém, seja-me permitido declarar que – e apenas com a obra não poética – o vosso lugar estaria assegurado nesta Academia. É obra, e como acabamos de ver, de escritor identifcado com os temas e as problemáticas, na intimidade do que examina e discute, a justificar o ensaísta que, nas deduções e nas exegeses, sempre conclui acima das controvérsias. Nesse ensaísta, assim complexo e realizado, há um traço que vós mesmo fizestes questão de manter irremovível e que esclarece a localização literária. Refiro-me à fidelidade à Província, e ao Nordeste mais que a Pernambuco, intelectualmente em vós todas as raízes culturais da região.

A vossa vida de homem, pois, nascido e educado no Recife, será para sempre vida de um escritor do Nordeste. E por isso mesmo são nordestinos os temas de vossa ensaística e os vossos principais títulos como o de catedrático do Instituto de Educação de Pernambuco ou o de diretor do Instituto Joaquim Nabuco. A vossa ação pública, como jornalista no Diário de Pernambuco e na Rádio Tamandaré e incentivador de gerações literárias, não conheceria outro espaço. É assim, nascido e educado no Recife a serviço intelectual do Nordeste, que viveis uma contemporaneidade regional decisiva como interferência e contribuição no destino da Literatura Brasileira. Imprescindível citar todos os companheiros, os que antecederam a vossa geração ou que chegaram depois, mas seriam tantos que limito o exemplo a quatro mortos: José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Jorge de Lima.

Mas, Sr. Mauro Mota, se no Recife tivestes o vosso burgo – a exemplo de outros que lá permaneceram como Gilberto Freyre e Ariano Suassuna – do Recife não necessitastes sair para que vossa obra, em irradiação nacional e internacional, repercutisse à sombra dos próprios valores. Foi esse Recife, porém, e antes que possa falar de vossa poesia que é o vértice mesmo de toda a vossa obra literária, foi esse Recife que primeiro estabeleceu as vossas relações com a Cadeira 26, desta Academia.

E isso porque, através do Recife, dar-se-ia o vosso encontro com o vosso antecessor, Gilberto Amado, o memorialista que – à sombra do próprio testemunho – não sei possa vir a ser superado como escritor de ideias, analista de caracteres, o psicólogo que, sem censuras íntimas, pôde revelar um tempo inteiro com todos os grandes problemas e as principais criaturas. Seria um dever, e tanto de confrade quanto de discípulo, deter-me um pouco em torno de Gilberto Amado.

Vós acabastes de fazer-lhe o elogio incensurável e justo. E, por este lado, em consequência, nada mais a dizer. Mas, ao ressurgir como adolescente no Recife de sua formação, Gilberto Amado não deixava de reanimar – em tempo posterior – mas não deixava de reanimar a vossa própria formação, Sr. Mauro Mota. No Recife de ambos, dele e vosso, em tempos diversos, os períodos foram de crise, a crise da formação intelectual. Não importa discutir ou especular agora, e no fluxo daquela crise, sobre doutrinas, teses, teorias, conceitos, dogmas, julgamentos e mitos. Tudo a concluir é que das agitações e das procuras as vocações se revelaram e que, como Gilberto Amado, vós não tardastes a se filiar a essa raça estranha, de inconformístas e criadores, que é a raça dos escritores autênticos.

A Cadeira 26, tanto de Gilberto Amado quanto de Constâncio Alves e Ribeiro Couto – uma Cadeira de escritores autênticos – tinha efetivamente que ser vossa. E, ao ocupá-la, apesar de todos os títulos que são vossos, quem definitivamente a reivindicou, conquistando-a, foi o poeta. E o poeta que, como já o disse, absorvendo os vários caminhos de vossa obra literária, não sacrificou o ensaísta, o crítico e o memorialista para que se fizesse em dimensão excepcional.

Tenho-vos de frente, agora, como o mesmo poeta que há dezoito anos, no 1952 da publicação das Elegias, desafiava o então crítico profissional. Crítico já não sou, Sr. Mauro Mota, mas, e porque permaneceu viva na Arte e nos componentes, a vossa poesia aí está, em símbolo, imagens e valores, pedindo exegese. Uma poesia nascida maior e que, a partir das Elegias – que mereceu o Prêmio Olavo Bilac, desta Academia –, já não pôde crescer precisamente por ter nascido maior.

A Antologia Poética, que publicastes em 1968, confirma o nível igual dos poemas, extraídos de todos os outros livros. Em todos eles, esses livros posteriores ao livro das Elegias, vós não alterastes a linguagem e a técnica, mantendo-se sempre distante – e nesses vinte anos de poesia – das experiências apressadas e das inovações sem estrutura. É por isso, e quando releio os poemas de A TecelãOs EpitáfiosO Galo e o Cata-Vento e Canto ao Meio, é por isso que asseguro que vós não precisastes mudar para subsistir.

As linhas do percurso, esses elementos de concepção e execução que explicam a tessitura do verso e o ideário lírico no conjunto da obra poética – convertendo-a no monobloco em círculo –, essas linhas já respondiam pelo impacto das Elegias. Não tínheis necessidade da originalidade, pois, para, dentro dos modismos, atualizar-se.

O debate fora longo e complexo em torno da Poesia. O debate, aliás, a partir da reforma ronsardiana, jamais deixou de ser áspero talvez porque excessivamente contraditório. Todos nós sabíamos de sua colocação histórica, a fermentação inteira nos conflitos e consequências, agravando-se o ponto já agudo à proporção em que a Poesia mais se identificava com a Arte Moderna. E, nessa fermentação espantosa, que ainda hoje não se pôde caracterizar para definir, tantas foram as fórmulas e posições que será fácil admitir a transitoriedade na precipitação das mudanças. O nosso testemunho, porém, começaria sobre os depoimentos dos que já não eram românticos.

O Simbolismo, os herdeiros do Simbolismo como queria Bowra, o cientificismo poético na base da Psicanálise ou o fiosofismo na base de teorias especulativas, a correlação com as Artes Plásticas e a Música, o geometrismo de alguém como Valéry. É todo um universo de procura e recusa, de manifestos e protestos, tamanha a guerra poética – no fundo das experiências – que não faltaram as acusações e as defesas. Mas, quando a pólvora deixou de queimar – com Bremond insistindo há quase meio século ser a comunicação a condição vital da experiência poética –, o que sobrou foi, com a revalorização da linguagem, a superação de colocações ortodoxas para a Poesia. A atualização, em consequência, não decorria de qualquer modismo poético, mas, e unicamente, do ato criador em si mesmo. A atualização se faz, em consequência, e para valer-me de uma expressão crociana, mas a atualização se faz quando o poeta é simultaneamente homem e humanidade. Não tínheis necessidade da originalidade, pois, para dentro dos modismos, atualizar-se.

A duração, e como se verifica, foi uma resultante da estabilidade poética, vossa mensagem e problema, a captação das coisas do mundo e da vida em proveito da vossa condição de homem e vossa humanidade de poeta. Não há em vossa poesia, pois, qualquer oportunidade já que nasce e se faz em uma única manobra tática, acima das recomendações ortodoxas, o canto em ritmo espontâneo.
 
E, se negastes o poema formalizado e intencional, imediatista e convencional – esse que estiola a Poesia para emprestar ao poema a ridícula gravidade de um esqueleto – foi porque negastes antes a originalidade, a spurious originality da definição de T.S. Eliot ao inquirir os poemas de Ezra Pound. Não sois um técnico a permitir, com a invasão da arte desinteressada e até antidoutrinal, e a compor como se estivesse a elaborar um cálculo matemático, não sois o técnico que fabrica ao invés de criar.

Não tínheis como favorecer esse técnico que, corrompendo no artista a sua organicidade, invariavelmente sepulta o poeta. E o poeta que sois, em conseqüência, embora também uma intérprete de realidades comuns, tem a legitimidade sobretudo na liberdade com que deixa circular a Poesia como a música no verso. É bom dizer, Sr. Mauro Mota, que sois um grande poeta precisamente porque tendes a liberdade como a primeira condição para a Poesia no sentido da criação absoluta.

Não será difícil verificar que, em se valendo dos antecessores e respeitando as tradições poéticas comprovadas, pudestes inventar e reinventar em vossa liberdade criadora. Essa medida, que justifica o poema de vanguarda e o soneto clássico, esclarece por que – a partir das Elegias – há uma destinação clássica em vosso verso. A imagística, assim rica de figuras e quadros, não prova apenas o vosso engenho imaginativo. Prova também que, na representação lírica, os valores extremos são tomados, não para a transfiguração, mas para a revelação em termos de sofrimento e angústia humanos. Há o exemplo:

Sinto, na solidão da noite escura,
que, de onde estás, não me abandonas: guias,
e que vais a meu lado, de alma pura
como, nos tempos que morreram, ias.

Ou:

Passos incertos sobre as lajes frias
sigo em busca de ti, sigo à procura
do tumulto da vida de outros dias,
que foi contigo para a sepultura.

Esse lado grego do reconhecimento, que é a procura do mistério na sondagem interiorizante – e, sem qualquer dúvida, o tema clássico –, explicará por que fizestes da morte uma constante. O motivo rilkeano, intrinsecamente dramático embora à margem das cogitações metafísicas como em Dante e Blake, encontraria em vós uma outra dimensão. Há o exemplo:

Tua presença é eterna, eterna é a vida
que, feliz, para sempre, viverás.
Morta é a morte, levaste-a de vencida,
não nos separaremos nunca mais.

Todas as reações psicológicas se totalizam emocionalmente no ciclo de as “Dez Elegias”. Na verdade, e se na confissão de Álvaro Lins – vosso amigo de infância e nosso companheiro morto – foi uma grande dor que se transfigurou em poesia, as Elegias se “desdobram num processo interior de unidade na variedade”. E, se o vosso verso – o vosso verso límpido, nascido sob estruturas imagísticas e combinações intelectuais –, se o vosso verso é sangue, a uma espécie de romantismo heterodoxo retomastes porque, ao invés de intelectualizá-la, o que fizestes foi criar uma poesia vívida, sofrida e sentida. Será antivaleryana essa marca orgânica. Mas, evocando a sua morta, como o nosso Machado de Assis, e nessa reconquista de um passado pela memória, puderam as Elegias – e muito antes de Os Epitáfios – surgir como realizações definitivas que valorizam a Poesia Brasileira.

E isso porque, ao compô-la, assim nessa vibração tão emocional quanto reflexiva e muito longe do abstracionismo lírico, lembrando por vezes a doçura petrarquiana, vós a compusestes como “casual” e não “intencional”. Fórmulas e obrigações, o receituário que tem perturbado tantas vocações, foram dados banidos.

E, precisamente porque há aquele “espaço de vida”, recomendado por Keats, em vossa temática da morte é que a fuga escatológica, salto noturno em busca da Amada sepulta, não corta as raízes com o mundo. O espaço de vida subsiste, menos talvez como lastro que vença a escatalogia, mas subsiste como uma âncora, elemento que une o poeta à sua idade. Aproximando Dryden de Pope, no prefácio de Prometheus Unbound, Shelley – talvez o melhor intérprete crítico de si mesmo – não esquece esse aprisionamento do artista ao seu tempo. E, se apesar de vossa linguagem clássica e de vossa temática sem épocas, sois moderno é porque o poeta não pode escapar à contingência e à condição.

É essa obra, e sobretudo o circulo poético, que explica e justifica a vossa presença na Academia. Tínheis que chegar, Sr. Mauro Mota, para nosso orgulho – nós, que somos agora os vossos companheiros –, mas nosso orgulho em proclamar que, neste momento, um grande poeta moderno do Brasil ocupa a Cadeira de Laurindo Rabelo.

27/8/1970