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Discurso de posse

A revelação do destino de Gilberto Amado, do “efeito, em outras pessoas, da força íntima”, que nele “palpitava” – escreveria mais tarde – tivera, em 1912, na Holanda, ao ouvir, diante de um retrato seu, o comentário de Graça Aranha: “Ah, quanta vida! Até faz medo!”

Já então recusava a quietude, tinha impulsos de libertar da fotografia a vida que estava elaborando para tantas projeções literárias, políticas, sociais, humanas. Para valorizar um tempo que mata sem discriminação, mas com a astúcia de sobreviver, ele mesmo, o tempo, através dos atos humanos.

Por isso, longe do primarismo dos calendários de bolso, formam-se os vínculos tempo-homem-homem-tempo. Gilberto Amado, eis um símbolo dessa correlação. Insubmisso às estamparias prefixadas e ainda ao mandarinato das contingências, preferiu, ao mundo já feito, fazer o seu mundo. Fazê-lo com palavras, tantas vezes em magia de combinações, como se as tirasse de um léxico do seu invento, com ressonâncias para o eterno. Fazê-lo com palavra e tempo.

Nesse ponto, quase subvertendo os cânones conservantistas do condicionamento da produtividade intelectual ao tempo individual. Várias histórias da Literatura registram antecipações – Rimbaud é um caso universal, alguns dos nossos poetas românticos seriam outro caso – e dilações. Mais importante parece conhecer os agentes externos e os interiores atuantes numa circunstância e na outra. Mais ainda o comportamento dos vencedores da faixa etária de precocidade para identificar-se melhor essa vitória. Saber se foi apenas sobre os dias e as noites ou se os dias e as noites foram bem empregados, além da extensão temporal, na extensão dos valores da obra.

Levando-se em conta a conta dos seus anos, nenhum escritor brasileiro responderia a uma pergunta dessa natureza em tom mais afirmativo do que Gilberto Amado. Quanto mais vivia, mais tirava os sumos da vida. Mago dos processos biológicos, reteve a juventude no âmbito e na plenitude das forças criativas. Os seus livros mais fortes escreveu-os na maturidade.

Somente as conquistas obtidas a custo de alto esforço acham graças meus olhos, dizia, citando e cumprindo Goethe. Uma força me arrebata sempre para maior altura. Eu quero olhar sempre mais longe. A hora sessenta minutos; o dia mais de mil. Que isto te dê a ideia da extensão da tarefa que tens a realizar.

Teve a idéia da tarefa, preparou-se bem cedo para realizá-la. O talento do causeur e do jornalista da mocidade no Recife e no Rio, às vezes, enganava quanto à ojeriza à improvisação. Pois, no trabalho mais do escritor, tudo nele era planejamento, iluminação de idéias e estilo.

Professor estreante, na Faculdade de Direito do Recife, “não pensassem” que “preferisse falar sobre escolas, doutrinas, Ferri, Lombroso, etc., a teoria enfim que mais se presta, na generosidade do pensar, a discurseira e a literatice”. (...) Experimentara “uma espécie de volúpia em acentuar a especialização e preparação na matéria tópica, no recorte preciso, na delimitação rigorosa”. (...) “Não circunloqueio, não faço onda em torno do assunto em preambulosos rodeios e perífrases”, depõe o jovem mestre de Direito Penal. “Nunca subi à cátedra que não fosse com a lição na ponta da língua.”

No Recife e em outros lugares. Em Paris, durante a primeira aula na Sorbonne, em 1933. “Não só a sabia de cor, bem concatenada, como a tinha (diante de mim), datilografada, mundificada de qualquer solecismo por Léger Belair, poeta francês com quem (eu) travara conhecimento à (sua) chegada ao Brasil.”

 

VIDA PRÉ-CONSCIENTE

De onde lhe viera tão cedo esse programa de objetividade e síntese, marcantes do vigor de seus ensaios? Essa metodologia de professor de estudantes, também professor de palavras, ensinando às palavras a ter uma voz que não fosse a dos clãs lexicológicos, evitando que ficassem mudas ou feridas em atritos de fraseado, libertando-as dos juntamentos tradicionais? O gosto pela Poesia e pela Arte Literária?

Do convívio com os estilistas e com as teorias? Da assimilação de hábitos dos contemporâneos?

Viera – Jacques Maritain faz a advertência sobre o processo – de

[...] uma profunda atividade inconsciente, pois o intelecto e a vontade [...] o universo dos conceitos, das conecções lógicas [...] são precedidas pelo trabalho oculto de uma imensa vida pré-consciente, que se desenvolve na noite, mas numa noite translúcida e fértil, parecida com a antiga luz difusa, criada antes que Deus colocasse – como diz o Gênero – astros no firmamento para separarem o dia da noite.

Em relação à Poesia, a parte da intuição toma-se absolutamente predominante. Estamos em face a uma intuição de origem emotiva, entramos no império noturno da atividade primitiva do intelecto que, muito além de conceitos e de lógica, age em ligação vital com a imaginação e a emoção. Abandonamos a lógica e os conceitos, lidamos com a intuição, liberta da racionalidade.

Viera – e aí talvez apareça a substância mais longíngua da formação de Gilberto Amado – da precoce intuição de gênio para Literatura. Não foi por acaso que falou em “homens treinados desde meninos nos grandes campos da lavoração intelectual”. Não foi por acaso que falou na “infância militante”.

“Estância contribuiu para a história da semântica”, afirma no primeiro memorial. Mas contribuiu através da perspicácia do seu menino – tantos outros, no trânsito para adultos, nem de longe perceberam tal contribuição – atento às transfigurações da linguagem municipal, que o impressionava a ponto de formar ecos vitalícios na sua mente.

Queria conhecê-la na procedência, nos elementos compositivos, nas implicâncias prosódicas e até psicológicas. O grito de mãe de um jovem suicida, “Por que você me fez isto?”, ficara-lhe na retentiva para o entendimento mais tarde. “Caso típico de egocentrismo”, essa variante de pronome. Mórbida rotação do indivíduo sobre si mesmo!Tudo lhe cai na órbita desmedida. Alguém diz, por exemplo: – “Tenho passado mal.” ‘E eu?’, atalha o egocêntrico. Toma a palavra.” E toma a palavra, o egocêntrico, na súplica do remédio para a doença criada: a solidariedade compensativa da falta de outra espécie de criação, válida no destaque social.

Ao pronunciar a palavra Cons-tan-ti-no-pla, Seu Inácio Ludovice dá ao menino esta insuscitada visualização: “a de um trem comprido rolando na manhã clara os anéis de seus vagões, ou de uma serpente elástica e vigorosa, que não acabava mais.”

Falava difícil, com o pedantismo do A ao Z. Com a cesta de mercadorias na mão, levava o menino para a feira, também de suas vaidades de fraseio. Tirando do caçuá uma raiz de inhame, pergunta ao matuto perplexo: “Meu amigo, quanto solicita por este produto alimentício?”

O pai, Seu Melk, de quem herdara o senso crítico para refiná-lo e aplicá-lo depois em outras situações, resumia o juízo sobre essa celebridade local: “Não passa de uma besta.” E dava-lhe, com o teatrinho de Itaporanga, chances a outras notações válidas às verdes preocupações linguísticas. O esdrúxulo ator Genaro Rosa deveria chamar o marquês da peça de vampiro. Mas, na hora da representação, esquece a pronúncia dos ensaios e brada para toda a assistência ouvir: “O sr. é um vampiro.” Caso parecido com o de imperativo negociante português, falando, grosso e franco, aos companheiros em divergência na sessão solene do clube: “Se não me querem como presidente, esculhais outro.”

REINO DAS PALAVRAS

Tudo isso está longe de representar, aqui, qualquer contribuição ao anedotário, qualquer sequência de episódios de superfície ou de paróquia. Antes, essa vigilância temporã sobre pronúncias e pronunciamentos entrelaça-se com as raízes mais fundas do aprendizado de quem confessa o gosto pelo dicionário, que as palavras o levavam às noções, abriam estradas por onde caminhava.

É dessa fase do caminhante no reino das palavras a receptividade aos agentes ambulatórios da cultura popular, aos rapsodos sertanejos, fazendo as noites itaporanguenses insones, de viola e cantoria. É dessa fase de caminhante no reino das palavras a primeira resistência ao discurso de improviso, gênese da outra, ao discurso armado com as substâncias residuais do rococó, mantidas pelo bacharelismo ornamental de sibilante brilho tribunício. Tudo, nesse madrugador dos caminhos, na época brasileira da pergunta: “Fala bem?” – e esse falar bem era falar mal – para medir os valores do espírito, era mesmo o caminhar sem pausa e a pesquisa da expressão.

Iria valorizá-la em Pernambuco, passando “do monólogo ao diálogo”, da oralidade ao livro, por isso mesmo, sem libertar-se das “obsessões da adolescência”, se  situarmos no plano das perquisições literárias – já lera parte de Vieira e Camilo nas brochuras de Seu Leal, de Itaporanga – agora com espaço e estímulos propícios ao desenvolvimento.

Daí, desde o primeiro ano, a intensidade nas leituras dentro e fora do currículo – juristas, historiadores, filósofos, sociólogos, romancistas, poetas – já com discernimento para considerar manifestação de espírito de aldeia o paralelo Spencer – Comte, que agitava Sílvio Romero, do mesmo gênero do que levara Sílvio a apor Tobias a Castro Alves, a “Escola do Recife” a Machado de Assis. Já com o espírito de tolerância para certas fraquezas existentes em todas as culturas e lembrando, a propósito, a observação de Bertrand Russell sobre Aristóteles, que, mesmo sendo Aristóteles, pouco recorria aos métodos de observação, só vigorantes do começo do século XVII em diante, e chegara a afirmar que as mulheres tinham menos dentes do que os homens. “Apesar de haver casado duas vezes, nunca ocorreu a Aristóteles olhar para dentro da boca das esposas.”

Daí, nos outros anos do curso jurídico, mais o namoro com as vitrinas da Livraria Nogueira e da Ramiro do que com as moças que avançavam da Ponte da Boa Vista, “passo cadenciado, grandes chapéus, saias compridas e um ar de civilização assombroso para os olhos itaporanguenses;”daí, o prosseguimento das leituras na Biblioteca da Faculdade e nas repúblicas de estudantes, situadas em sobrados de ruas recifenses ainda hoje de revivescimento do Império, Rua da Imperatriz, Rua do Imperador, Rua Imperial, Rua Princesa Isabel – as leituras nunca para um rendimento solitário: para o conhecimento das coisas e das formas por que eram ditas.

Lembre-se a exegese sobre o texto de Os Sertões. Talvez ninguém a tenha feito com maior perseverança, sentindo que “escrever difícil não era difícil”, substituindo “as palavras arcaicas, obsoletas, pelas de uso corrente, reduzindo a estilo normal trechos e trechos”, às vezes, toda uma página a oito, a dez linhas, embora reconhecendo que Euclides acabara empolgando-o com “o próprio artifício girandoloso do estilo”.

Lembre-se a repulsa aos adjetivos atávicos, de atavio. A repulsa, por isso mesmo, à retórica: essa afirmativa quando Rui representava um ídolo: a leitura da Réplica fora-lhe útil por ter mostrado, já a esse tempo, “não só como se deve escrever, mas sobretudo como não se deve escrever”. Ainda o modo de ver a conduta dos “rapazes da Faculdade que, em Pernambuco, escreviam, nas revistas acadêmicas e mesmo nos jornais, e botavam tudo que tinham aprendido para fora, mostrando uma sabença exagerada”.

Essa penetração em processos vigentes, agora com a insistência de um teórico da Literatura quase em regime de tempo integral, nem se fazia circunstancialmente nem para servir a qualquer interesse didático ou transitório. Fazia-se para servir à vocação de escritor em busca de sua linguagem e com o viço para manter-se mesmo em conjuntura da espécie dos dois anos de ciências exatas na Bahia e dos atropelos de subsistência na primeira fase do Recife.

O MENINO E O HOMEM

Vocação de escritor realizada na amplitude permitida por um talento multifário, insumbisso a exclusividade, afirmativo em vários gêneros – o Ensaio, a Poesia, o Romance, as Memórias – embora, mesmo pela experiência simultânea, a da própria vida e a das formas de vivê-la e revivê-la em transfigurações de artista, tirasse, mais de si mesmo que das influências exteriores, o material de construção de seus livros.

Difícil esta simbiose: a do menino associado ao homem, e com um poder senhorial sobre o homem. Acompanhando-o em caminhos distantes e vários, mas impondo-lhe a voz de comando, as reações, a carga de lembranças, a volta aos itinerários da infância. Eis a luta: a do menino de Itaporanga com domínio sobre o homem de saber universal.

Deputado, senador, pensador político, jurista, diplomata, presidente de assembleias internacionais de Direito, Gilberto Amado fez-se grande em todos esses postos, inclusive porque jamais os desassociou da sua grandeza nuclear, a de escritor.

Quando, estudante ainda, tomava o bonde nas tardes ociosas, do Recife, dizia ao condutor: “Até o fim da linha.” Temos aí a revelação do inconsciente, a linguagem simbólica oposta à medianidade, às estações intermediárias.

“Até o fim da linha” era a voz de um destino literariamente inaugurado, no Diário de Pernambuco, com os “Golpes de Vista” e o pseudônimo Áureo recorda a precaução ao escrever: a de “fugir das elucubrações filosóficas em que torvelinhava o (seu) espírito entre Kant e Darwin, entre a lei moral e a luta das espécies, para adaptar-se ‘à tarefa de comunicar-se (me) com o público sem caceteá-lo. Não espantar o leitor’. Ao contrário, atraí-lo.”

Em coerência com essa vigilância, a coluna – o historiador literário ou social chegaria a tal evidência – é também, em diversas manhãs, de renovação jornalística. Não que, pelo jornal, que aparecera pisando nas brasas espalhadas, nas ruas do Recife, pela Confederação do Equador, sendo o próprio fundador do jornal, Antonino José de Miranda Falcão, um manda-brasa dessa Confederação, tivessem deixado, antes, de existir redatores nativos de categoria, e alguns de categoria extraordinária, caso, ainda no século XIX, do Padre Lopes Gama e de Antônio Pedro de Figueiredo; não que, entre os contemporâneos de redação de Gilberto Amado, uns mais vividos, outros de sua geração, tivessem deixado de existir um Artur Orlando, com a sua erudição; um Aníbal Freire, com a moderação de ontem e de hoje, promovendo a enquete (“Como considera o Jornalismo no Recife e quais os meios de remodelá-lo?”) para – a justificativa é dele –“dar trégua, por momentos embora, a esta luta íntima, luta das personalidades e não de princípios, campanha de ridículo ou de ódio pessoal”; um poeta, Faria Neves Sobrinho, transformando-se em Lulu Sena e jogando aos adversários do situacionismo epigramas assim:

É qualidade ingênita: o boi muge,
O asno zurra, o cão ladra, o gato mia,
A cascavel chocalha, o leão ruge,
Baltasar calunia.

Não que Gilberto Amado permanecesse de todo imune a esses ardores panfletários e epigramáticos. Ele mesmo chamara, num artigo, os jornalistas da oposição de “estúpidos e cavalgaduras”; mas o fato é que só os teve ocasionalmente, mais receptivo ao verdadeiro espírito de Pernambuco, o de continuidade nas tradições culturais.

ANTECEDENTES HISTÓRICOS

A primeira flor literária do Brasil desabrochou em Pernambuco, recorda Capistrano de Abreu. O que atribui às viagens à Europa, ao conhecimento de livros históricos, inclusive os de João de Barros, com citações dos nomes de Albuquerque e Duarte Coelho; à tendência literária dos capitães-mores da terra, evidenciada em Jorge de Albuquerque e seu filho Duarte, autores de livros.

Prosseguem: “[...] a condição impõe-se, foi Pernambuco, nem podia deixar de sê-lo, o centro de que partiu nossa evolução literária; para compreendê-la, o historiador da nossa Literatura deve ali estudar as origens; antes do grupo baiano conhecido, existiu o grupo literário pernambucano” no qual figuraram Frei Francisco do Rosário, Ambrósio Fernandes Brandão, o autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil, e Jorge de Albuquerque Coelho, filho de Duarte Coelho e descendente, da parte de Dona Brites, dos Albuquerque, os poetas Garcia e Afonso, cujas composições entram no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende. Pois – registra o Conselheiro João Manuel Pereira da Silva, nos Varões Ilustres do Brasil – Jorge de Albuquerque Coelho era

[...] um literato conceituado pela sua erudição e pelos seus talentos. Destacou-se na fase da nossa literatura quinhentista, documentadas através das sessões promovidas pelos estudantes do Colégio dos Jesuítas de Olinda, com “recitações de umas orações em prosa e verso, e em português e na língua brasileira, o Tupi, e por fim em muitos epigramas, breves composições poéticas sobre um assunto qualquer, então, e ainda por muito tempo, em corrente vaga”.

Olinda constituiu-se, portanto, a casa-matriz da cultura nacional. Em Olinda, se assinalou o ciclo literário colonial do século XVI, inclusive através dos cursos superiores estabelecidos nos conventos. Em Olinda, houve as aulas de Retórica e interpretação dos clássicos, do Padre Antônio Vieira. E o sonho do Bispo Azaredo Coutinho: a criação de uma universidade.

Sílvio Romero assinala que, “dentro das forças do regime do Classicismo e do Absolutismo régio, a Literatura Brasileira ‘inicia-se de fato, no terreno da produção espiritual, com a publicação da Prosopopéia’” de Bento Teixeira, morador das colinas olindenses.

Nos tempos seguintes, passando-se pela fase da ocupação holandesa, com os cientistas e os artistas de Maurício de Nassau, as conquistas intelectuais aumentariam até a fundação do Curso Jurídico que, em Olinda, cujo seminário colonial Oliveira Lima consideraria um núcleo de preparação da independência do Brasil, representou, entre 1827 e 1854, no Convento dos Beneditinos, uma espécie de compensação para o sonho do prelado Azeredo, dando ao Império figuras da categoria do Barão de Penedo, de Sinimbu, Cotegipe, Nabuco de Araújo, Eusébio de Queirós.

Gilberto Amado sente, no Recife, a importância desses antecedentes históricos, da história feita com as revoluções libertárias do século XIX, dos movimentos da Faculdade de Direito, cujas ressonâncias ainda encontra: as da poesia de Castro Alves e Tobias, e as seguintes, da germanização e da filosofia de Tobias, núcleo da “Escola do Recife”, de tantos epígonos e irradiação.

Quando insiste em dizer que a sua geração não recebeu influência dessa “Escola”, só faz declarar às avessas que essa influência existiu, pois acerca do autor dos Estudos Alemães, afirmaria num ensaio interpretativo de primeira ordem:

Em meio aos conformados, ele se revoltou. Enquanto todos, ou quase todos, resolviam o seu destino nos miúdos afãs de vida quotidiana, ele partiu na sua longa viagem para as alturas do pensamento, para as fontes da Cultura. [...] Depois dele, alguns indivíduos começaram a ver novos caminhos abrindo-se no horizonte fechado. Novas direções rasgaram-se para os estudiosos, os pensadores.

Tanto que guardaria um ressentimento porque Artur Orlando não lhe dera o retrato falado de Tobias. Olhos, cabeça, dentes, voz, roupa, sapatos, chapéu, gestos. Queria conhecer tudo, com amoroso interesse. O tudo que, com a minuciosa curiosidade pela aparência das pessoas, conhecera diretamente em Nabuco – o nariz fino nas bases e mais grosso sobre as narinas, a cabeça toda branca, os bigodes, os olhos pequenos bem próximos um do outro, a gravata parecendo laço feito no colarinho baixo – quando Nabuco viera, com os representantes de outras nações, para a Terceira Conferência Pan-Americana e desembarcara, no Recife, nos braços dos negros, no meio da multidão.

Iria ouvi-la na visita à própria juventude, que deixara, mais do que em outros lugares, no teatro de Vauthier, o imperial Santa-Isabel, entre as paredes marcadas do timbre de sua voz como se o fossem de um afresco sonoro na campanha abolicionista.

No Diário de Pernambuco, Gilberto Amado considera O Abolicionismo “um dos maiores livros da nossa literatura política, que o leva à procura de todos os autores citados” e lhe, “abre os olhos sobre os nossos problemas fundamentais”.

INTEGRAÇÃO NA VIDA PERNAMBUCANA

Inquieto ele mesmo, reflete a inquietude nos “Golpes de Vista”, mirante de acontecimentos regionais e brasileiros. Variam os assuntos – livros, autores, políticos, teatro, arvoredo, mulheres, vitrinas – com alternativas de tratamento, mas neles prevalece o ensaio literário curto e ágil, a mostra dos poderes de análise de quem engrandeceria o gênero, engrandecendo-se com ele, e pela oposição às normas do eruditismo, às da ostentação, às de se mostrar, às de fazer o que os outros fizeram sem fazer nada de seu ou dizer o que os outros disseram sem dizer nada de seu.

Ainda a integração na vida pernambucana em tal profundidade como se procedesse das primeiras dinastias canavieiras, se tivesse brincado nos pátios das casas-grandes de Salvador, Nossa Senhora de Ajuda ou dos engenhos da planície do Recife. Volta os sentidos para os bairros flutuantes em mar e rio. Para o de São José ainda com as casas de biqueiras e andorinhas, as cadeiras na calçada, as comadres espiando nas rótulas, o Pátio de São Pedro, o Largo das Cinco Pontas, o itinerário de Frei Caneca, os conventos e as fortalezas coloniais, os Cais do Apolo e de Santa Rita, a Rua das Cruzes, o Café Lafayette, a Rua do Brum, o Capibaribe passando entre a Rua do Sol e a Rua da Aurora, as varandas, as regatas, o Ginásio, a Faculdade de Direito, José Higino, Paula Batista, Aprígio Guimarães, Martins Junior, Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Adolfo Cirne, Gondim Filho, Gervásio Fioravanti, Laurindo Leão, Faelante da Camara, Henrique Milet, “pitoresco, interessante, um Golias grisalho, tonitruante, desafiando a classe”, José Vicente Meira de Vasconcelos, “velhinho vivo como um esquilo, que soltava a lição num só folego, sem parar”, Constâncio Pontual, Odion Nestor e seu Juvenilia, o primeiranista Assis Chateaubriand, já com extraordinário talento desabrochante para o Jornalismo, os sobrados monárquicos guarnecidos de palmeiras, os quadros de Teles Júnior, os sofás de Béranger, os grandes espelhos que viu no Palacete Azul, da viscondessa do Livramento, a moda das conferências literárias, as cartolas, os fraques, a “Rosa dos Alpes”, a Maxambomba, o palácio do Conde da Boa Vista, o primeiro Barbosa Lima, Rosa e Silva, Estácio Coimbra, Dantas Barreto, Várzes, Madalena, Caxangá, Poço da Panela, Parnamirim, Oliveira Lima, Alfredo de Carvalho, Regueira Costa, Carneiro Vilela, José Mariano, Baltasar Pereira, Manuel Caetano, Gonçalves Maia, Trajano Chacon, Alfredo Gama, Augusto e Mário Rodrigues, as procissões, as novenas, os domingos, os passeios de canoa, as alvarengas de açúcar e abacaxi, os lampiões, as pontes, Boa Vista, Maurício de Nassau, a Buarque de Macedo, do trânsito de Augusto dos Anjos, cuja importância de poeta compreende logo:

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à Casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no destino e tinha medo.

CHEIRO E VOZES DO RECIFE

Gilberto Amado pensa no destino sem medo. Ouve todas as vozes recifenses: as 17, de 24, de 49, as vozes dos sinos das igrejas barrocas, as vozes da terra e do mar, a dos poetas e a dos oradores, a dos seresteiros e dos violões, a da serenata de Adelmar Tavares:

As estrelas no azul brilham sorrindo
Estás dormindo
E eu venho, meu amor, te despertar.
...........................................................
Acorda, abre a janela,
Estela.

Ouve as vozes dos pregões matinais, a das retretas na Praça da República, a dos pianos de arrabalde, vozes católicas e profanas, das cantoras do coro das igrejas e dos pastoris de Beberibe, a voz da própria luminosidade, “o berreiro da luz”, no meio-dia da cidade tropical.

Sente todos os cheiros recifenses: o cheiro das moças “orvalhadas de tépido suor”, o cheiro dos livros, das frutas nativas, dos bosques de cajueiro, mangaba e sapoti, dos “tônicos” e das loções do cabeleireiro Odilon Duarte, o cheiro dos resedás e jasmins saindo dos portões de ferro gementes e patriarcais.

Por tudo isso, Gilberto Freyre escreve:

Foi no Recife que a sua carne de adolescente moreno e tropical, de provincianozinho de Sergipe, se fez verbo; e aqui (no Recife) seu verbo e sua carne se fundiram numa só e magnífica expressão de criador de beleza plástica e de ideias fortes, não só em língua neolatina, como em país americano e em terra tropical: língua, país, terra, que se renovaram, se revigoraram com a sua presença e sob sua ação de intelectual whithmaniano. Whithmaniano porque de qualquer de seus livros maiores, seja de prosa ou de poesia, se pode dizer: quem toca neste livro, toca num homem.
 
Por tudo isso, escreve o próprio Gilberto Amado que intelectualmente tornara-se filho de Pernambuco, a terra que o fizera crescer em estatura intelectual e moral, dando-lhe forças e esperanças; na sua atmosfera estimulante, formou-se-lhe o caráter, a seiva pernambucana impregnou as férvidas imaginações que abrolhavam dentro dele e das quais iriam sair A Chave de Salomão, os estudos e ensaios de O País, tudo o que de melhor e mais original escrevera. “Em grande parte” – eis o fecho de Minha Formação no Recife – “devo a Pernambuco tudo o que fui e o que sou no Brasil.”

GILBERTO AMADO E AS ÁGUAS

Do Recife, “o adolescente moreno e tropical” guarda ainda uma experiência: a de repórter portuário. A dureza de copiar manifestos de mercadorias importadas – e esses manifestos, contendo livros, revistas, figurinos, fazendas, luvas, perfumes, alimentos, remédios, talvez sejam ainda um documentário vivo para o estudo das influências francesas de época no Recife – atenua-se na convivência com águas e navios, os navios cujos nomes depois também relaciona mais para o noticiário: para indicar em livro, com uma euforia de adolescente, “os grandes transatlânticos”, de várias bandeiras, “nos quais viajara numerosíssimas vezes” nas travessias entre a América e a Europa.

Eis a indicação de tema para um estudo parcial, ainda a ser feito, da personalidade numerosa de Gilberto Amado: Gilberto Amado e as águas. Limpas ou barrentas, paradas ou correntes, mansas ou convulsas, coloridas ou neutras, máximas ou mínimas, navegadas ou sozinhas, as águas comparecem em todas as fases da existência dele. Água da goteira no telhado da noite, do banho na chuva ou no poço, da fonte de azulejos do quintal dos Azevedos, jorrando da Bica de Estância para o gargarejo do pote. Águas do Xinduba, do Piauitinga, do Vaza-Barris, águas disfarçando a agressão das cheias, pois o caudal, “espraiando-se, ria nas mil bocas de espuma como um jardim que corresse”.

Águas de uma geografia fluvial reveladora da vocação também fluvial de Gilberto Amado, verificado o dinamismo do rio, que, embora tendo um leito, não dorme nele, mas, ao contrário, anda, agita-se, corre, salta nas cachoeiras, um salto que não é de suicida, mas de coragem e difusão de vida, de energia vital. Geografia fluvial, e também sentimental, que permite a Gilberto Amado fazer de tantos rios do mundo afluentes do Capibaribe.

Os que viu “agarrados nos pilares das pontes no medo de seguir para o mar”; rios da França, “colares da famosa cortesã”; rios da Itália, “pesados de limo da história humana, carregando para o Mediterrâneo palácios e palácios”; dos “Estados-Unidos, estirados no continente, murados de chaminés, de derriks, cobertos de fumaça”, os que viu “cachoeirarem no verão, entre os pinheirais solenes das paisagens alpestres, as neves do Tirol e da Engadine”. Mas nenhum como o Capibaribe, seu amigo, seu companheiro das manhãs e das madrugadas da Rua da Aurora.

Águas do mar. Dos mares por ele navegados em tantas direções e latitudes. Mares escuros e mares de verde e azul flutuantes. Mares amados de Gilberto Amado, que o levaram longe do seu país e de si mesmo:

“Minha vocação”, revela,

[...] de fato é de navegante. Se nascesse de novo, seria embarcadiço, e não só do mar, de rio também. [...] O espírito recorda-se dentro de si de navegação. O mar é o meu elemento. [...] Não conheço prazer superior ao de encontrar-me ou reencontrar-me no meio de onde provém a minha essência animal, no convívio do mar, viagem de mar, banho de mar, vista de mar. De rio também porque rio vai para o mar.

Não seriam estas palavras e o sonho com águas e viagens, no caso transferido a uma área de realidades, contributivos para o conhecimento mais íntimo do menino de Itaporanga, diante das relações maternais estabelecidas pela Psicanálise entre o sonhador e as águas e da simbolização onírica morte-viagem, mulher-navio? Não seria ele, apesar da saúde e da extroversão, cismado com a morte, o profundo mar azul da imagem de Eliot? O que teria levado o próprio Gilberto Amado a escrever estes versos:

Rolemos com as águas na dança das ondas,
Façamos da nossa sorte uma ondulação azul.

TERMOS AQUÁTICOS E NAVAIS

A estatística do vocabulário aplicada à sua prosa faria a coleta de um quase dicionário reincidente de termos aquáticos e navais: oceano, mar, marinha, marítimo, marinheiro, marinhagem, marujo, continental, mar jurisdicional, abissal, pelágico, mar interior, mar fechado, mar aberto, submarino, gajeiro, vazante, preamar, baixa-mar, marear, iemanjá, sereia, maresia, mareagem, maré, marulho, ondas, mergulho, vagas, ressaca, golfo, enseada, boia, praia, litoral, costa, sargaço, porto, ancoradouro, cais, algas, búzios, conchas, espumas, mariscos, pluvial, chuvisco, chuva, bruma, neblina, orvalho, névoa, lago, lagoa, alagado, lacustre, poça, poço, fluvial, rio, riacho, córrego, leito, limo, lodo, navio, barco, barcaça, canoa, jangada, nau, galeras, velas, âncora, transatlânticos, bueiro, chaminé, peixe, pescador, tombadilho, convés, leme, proa, popa.

As palavras desta amostragem, disseminadas nos capítulos na acepção direta ou na subjetiva, aparecem mostrando o amor do navegante pelas águas e por tudo quanto se relacione com elas. Também dos seus versos alguns exemplos podem ser isolados de composições diferentes:

Correm as naus do sonho abrindo as grandes velas.
Brancas vagas azuis ao frescor das aragens.
Formas feitas de luz surgem da água, serenas.
E o mar que as leva em mim é todo azul-turquesa
Mistério submarino
do vasto abismo em cujo seio ondulo.
Pois quem contempla o mar nessas horas serenas
Vê mais seu coração que as próprias vagas.
Uma névoa enorme se estendeu no mar.
A beleza do mar esparsa longamente
na doçura do céu, no silêncio do mar...
Não sei por que, no enlevo que me banha,
Eu lembro o mar, viagens, caravelas...
E a aldeia me parece uma nave estranha
Que segue a navegar para o arrebol,
Dentro da noite abrindo as fluidas velas,
Tendo o disco da lua por farol.
O velho rio adormecido, só
na vastidão da várzea descampada
Parecia sonhar como Jacó...
Dia de chuva. Fico na varanda.
Enquanto a água monótona acachoa,
Vendo, sob o aguaceiro que não cessa,
O rio.
Visão de uma paisagem submarina
Em que andas a flutuar.
Como no meio de algas e de espumas
Uma ninfa, sereia ou estrela do mar.
Garça, vela no mar.
Quando tu, claro mar, amplo onduleias
Essas ondas...
A alma dos velhos mares irrequietos.
Subiu das va
gas trêmulas, agora.
Vou saindo da tua brancura
Como o sol sai do rio
Emerges dos lençóis como de um banho no rio.
Vem comigo para a festa do mar.
Está pronto o meu barco de possantes motores
Eu sinto o coração crescer como o oceano
As aves do crepúsculo balançam-se nas ondas.
Canta o universo inteiro na solidão da praia.
No silêncio do mar, a música de espera
Na plenitude dos estuários místicos
A nau da inquietude aqui descansa.

Há um poema especificamente intitulado “À Beira-Mar”, outro, “Os Nautas”, um terceiro “Canção das Águas Claras”.

O amor pelo mar leva-o a escrever um dos seus melhores ensaios, Meditações no Mar Sobre o Brasil. O amor pelo mar alcança-lhe a ação de jurista. Quando se especializa em Direito, é em Direito Internacional Marítimo. Quando quer fazer uma boutade é aquela da praia chilena, com um ministro latino-americano, que lhe é apresentado.

– Até que afinal dois colossos se encontram.
– Ora, Embaixador Gilberto Amado, sou um diplomata simples.
– O Sr. não me compreende. Falo de mim e do Oceano Pacífico.
Esse amor pelo mar já tinha sido, se não o tema, a inspiração do primeiro capítulo do seu livro de estreia: a manhã do dia em que fora convidado a escrevê-lo (trata-se de uma conferência fora da “ameaça” sentida por Ezra Pound: o conferencista é o homem obrigado a falar uma hora) tinha passado “à beira-mar, no alto de uma pedra heroica, que se prolonga nas águas, numa audácia de promontório”. [...] Um instante, era “o possuidor dos tesouros maravilhosos do oceano, enriquecido do sol matinal”. [...] Esses momentos em que o homem é o super-homem de si mesmo, “os encontra sobretudo diante do mar”. [...] “Todas as coisas do mundo são fragmentos. Mas o mar é uno, imagem da unidade que a natureza, diversa e ondeante, criou”. Até quando se faz homeopático, é para fazer o elogio da gota de água. E dar-lhe cores, movimentos, dimensões e profundidade.

A MOITA E O GORJEIO

Estreia? Seria adequado assim considerar A Chave de Salomão?
O livro já representava a súmula de um tirocínio na imprensa, de tons de certo modo inaugurais pela dição viril e dialógica, pelas intervenções renovadoras no processo literário vigente, pelo arremesso contra as fórmulas apáticas de alguns contemporâneos repetidores da reza do rio-grandense-do-norte Juvenal Antunes:

Bendita sejas tu, Preguiça amada,
Que não consentes que eu me ocupe em nada!

Gilberto Amado reage a essa placidez lesmenta e lemática, Gilberto Amado é um tumulto literário e humano. Prossegue em Grão de AreiaAparência e RealidadeA Dança sobre o Abismo, Dias e Horas de Vibração. Prossegue nos romances, Inocentes e Culpados e Os Interesses da Companhia, e nos cinco livros de memórias, sobre os quais lhe disse Alceu Amoroso Lima: “Volte quantas vezes quiser à infância e à juventude e nos dê, continue a dar-nos aqueles retratos humanos inconfundíveis, que nos ressuscitam o mundo de outrora.”

Realmente. Que talento singular o de Gilberto Amado para recompor as paisagens, com as criaturas que as povoaram! Para surpreender os homens nas altitudes e nas baixezas, para engradá-los em duas ou três frases, às vezes em uma, de onde jamais conseguem sair! Toda uma galeria. Quem viu, por exemplo, pintura mais viva e audível do que a do barbudo orador Irineu Machado, com “a voz claríssima de tenor, quase de tenorino, saindo-lhe da barba como um gorjeio de uma moita?” Ou aquela – feita apenas com a citação do episódio – do padre de origem italiana, Mascelo, que, ao ver Dantas Barreto governador de Pernambuco, escreveu no Jornal do Recife, uma série de artigos intitulada “Dante e Dantas”.

O MAR PROFUNDAMENTE AZUL

Gilberto Amado parecia mágico, na absorção de gêneros – o histórico (da história social), o sociológico, o biográfico, o ficcionista, o poético, sem fazê-los heterogêneos, antes fazendo-os confluir para a harmonia literária da sua estética e de sua expressão. “É uma obra de ficção, a sua, semelhante num ponto à de Balzac: por ser também sociológica.” História de Minha Infância leva a infância brasileira a um território de eternidade na história literária.

Gilberto Amado participou do desenvolvimento cultural do Brasil durante meio século. E como participou? Acelerando-lhe o ritmo, dando-lhe uma contribuição imortal, marcando-o com a sua presença de modo a estabelecer uma fronteira histórica: no tempo de Gilberto Amado.

Como quer Bergson, o mundo em que nossos sentidos e nossas consciências nos introduzem habitualmente não passa de uma sombra: é frio como a morte. Tudo está arranjado para nossa comodidade, somos organizados de acordo com a imagem do universo artificial, falamos do passado como se falássemos do extinto, vemos na lembrança uma coisa estranha. Mas, ao contrário, devemos reaperceber-nos de nós mesmos como somos realmente, num presente denso e elástico, podendo dilatar indefinidamente a tela que de nós mesmos nos separa. Devemos recapturar o mundo exterior tal qual ele é, no momento atual, mas em profundidade, com o passado imediato que lhe imprime o seu élan. Habituemo-nos a ver tudo em duração, continuidade e fluxo criativo. Porque só assim o adormecido desperta e o morto ressuscita.

Difícil, por tudo isso, aceitar, na realidade aparente, a data de hoje, a do primeiro ano da morte de Gilberto Amado. O primeiro aniversário é o da sobrevivência dele à morte. Gilberto Amado não submerge. Navega no seu mar. No mar profundamente azul.

A CADEIRA 26

Sr. Presidente, senhores acadêmicos,

Nem sei como agradecer um ato que tanto emociona e distingue: o da vossa benevolência em acolher-me em vossa companhia; o de terdes designado para receber-me um romancista e crítico da raça de Adonias Filho, querido amigo de tantos anos, e para fazer a entrega do colar acadêmico, um escritor da altitude intelectual e moral de Barbosa Lima Sobrinho, tão representativo dos valores de Pernambuco. Poderia recorrer à fórmula evasiva do “nem há palavras para agradecer”. Mas as palavras existem. O que não existe é a minha aptidão para coordená-las no plano de atendimento à magnitude desta hora.

Digo-vos, entretanto, que esta hora, sendo suficiente do princípio, já representa, para mim, uma continuidade no convívio com os valores desta Casa. Quem não o teve, neste século e neste País, sendo, de qualquer modo, interessado na Literatura ou mesmo pelas solicitações do aprendizado? Lendo os vossos romancistas, poetas, críticos, cronistas, historiadores, todos quantos, aqui chegando por esses títulos, com eles passaram a ser dos vossos, faz-se o relacionamento imediato com a Academia Brasileira de Letras e com a sua influência na evolução da Cultura brasileira.

Foi o que comecei a sentir muito cedo, ainda ginasial. Durante uma aula de português – e eu estava, nessa aula, junto de um companheiro de turma, que seria meu companheiro e amigo fraternal de toda a vida e uma das mais importantes figuras literárias e humanas desta Casa e da Cultura brasileira. Álvaro Lins, a quem devo os estímulos decisivos para candidatar-me à Cadeira 26 – o professor mandou ler um trecho da Antologia Escolar e o trecho – faz-se agora de impressionante coincidência! – era o “Adeus ao Mundo”, de Laurindo Rabelo:

Já do batel da vida
Sinto tomar-me o leme a mão da morte:
E perto avisto o porto
Imenso, nebuloso e sempre noite,
Chamado Eternidade!

O professor, então ainda estudante de Direito, mas já o letrado, que viria a ser o crítico Oscar Mendes, ultrapassou, para o encanto da aula e mais dos alunos receosos de nota, a biografia sumária, de oito ou dez linhas, que antecedia a composição. E levou a classe ao interesse pelo destino desse poeta da terceira fase romântica, uma vida de 38 anos, contudo longa pelas desventuras familiares e mutações profissionais –eclesiástico, tocador de violão, repentista, professor, médico militar, num tempo em que – a observação é de Constâncio Alves – “no exercício da Medicina, corria mais sangue do que na carreira das armas porque nem sempre havia guerra e na guerra nem todos são feridos; mas sempre havia doentes e todos eram sangrados”.

Bem fez Guimarães Passos em querê-lo patrono da Cadeira 26, forma coadjuvante de preservar-lhe o nome e o espólio literário. Creio que para isso concorreram algumas afinidades a despeito das dessemelhanças de época e dição poética, de um haver nascido quando o outro já tinha morrido, na década de 1960 do século passado. Em ambos, havia o espírito de aventura e pausas para exercício de paciência: um, escrevendo uma gramática; outro, um dicionário de rimas. Havia o que José Veríssimo, mencionando Rabelo, chama de poeta que teve a alma perto do povo.

Tal conceito subsiste, contudo, em relação a Guimarães Passos. Pelo menos os seus sonetos (“Teu lenço”: “Este teu lenço que possuo e aperto...” e “Guarda e Passa”: “Figuremos: tu vais. É curta a viagem...”) continuam citados e recitados pelo público de tardio gosto romântico-parnasiano, preso a uma tradição oral e escrita de álbuns e tertúlias.

Falha a memória popular na lembrança dos dois sucessores seguintes. Escasseiam as referências a Paulo Barreto. A omissão alcança o período que ele tanto marcou com a presença na vida literária e principalmente na Literatura. Talvez o silêncio provenha de tal simultaneidade, aceita sem exame ou fronteira. Ora, na circunstância, uma presença não elimina a outra, é o seu transbordamento. Uma foi transitória, e como transitória deve ser tomada; a outra afirmou-se em condições de permanência. Em que interessam, hoje, o dandismo de Paulo Barreto, os trajes extensivos, o monóculo, as polainas, as inimizades gratuitas que o atingiram e das quais não somou herdeiros? Interessa o trabalho dele, exercido em extremos de fazer do jornal a base de comunicação pessoal, o que vale dizer de uma comunicação jornalística inovadora nas duas primeiras décadas deste século no Rio de Janeiro.

Quase tudo quanto publicou Paulo Barreto publicou originariamente em jornal, sem que isso implicasse qualquer restrição à mudança do curso desse quase tudo. Reunidos os capítulos das “reportagens”, como ele gostava de chamá-los, vê-se a unidade e a consistência que adquiriram em livros do nível de Alma Encantadora das Ruas e As Religiões no Rio, situados até mesmo entre as primeiras pesquisas brasileiras no campo da Psicologia Urbana e da Antropologia Cultural.

Também lá fora, ninguém fala em Constâncio Alves. Entretanto, que limpidez nos seus artigos e discursos, que graça no seu versejar!

– Ama teu próximo! Entendo
Esta ordem que Deus nos deu;
Ora, teu vizinho  sendo,
Quem mais próximo que eu?

LONGE E PERTO

O penúltimo, e também durante mais tempo, ocupante da Cadeira 26 foi Ribeiro Couto. Pela contemporaneidade não adstrita ao nosso tempo, exatamente por ser e confessar-se “toda mansa”, com o “pudor de falar alto”, sem a “voz sonora”, que “inflama as multidões contentes”, a mensagem de Ribeiro Couto transitará no futuro.
Carlos Drummond de Andrade definiu-a de modo inigualável: “eternidades do minuto”, de quem “ocupou [...] um território privativo em nossa poesia”.

Isso pela insubmissão, sem orgulho, por índole, dessa poesia, a modas ou influências de grupo. Estudando-a nas origens, quase não se passa da própria fonte ribeiro-coutiana. Uma fonte de ternura e melancolia, presente no título de um dos livros e no texto de todos, forma o apoio da comunicabilidade.

Em Ribeiro Couto – no poeta e no prosador dos contos – quase tudo era pessoal. Quero dizer: procedente de experiências e sentimentos conduzidos à transubstanciação feita pela sua arte literária. Poucos autores de obra geral autobiográfica como a dele. Mas de uma autobiografia liberta do cronológico, tão poética e humana, que, em algumas de suas páginas, de vez em quando, o leitor surpreende-se.

O seu último livro, que recebi, de Belgrado, era o Longe, bela coleção de poemas. Dizia do pressentimento da morte em Paris, no soneto “O Estrangeiro”:

Andando eu por Paris num vago dia
De violetas e cinzas pelo ar,
Senti que a vaga dor que me doía
Vinha mais do esquecer que do lembrar.

O Sena, sob a chuva, como eu via,
Levando barcos lentos para o mar,
Era uma imagem de melancolia,
O adeus da capital crepuscular.

A ninguém que passava eu poderia
Estender minha mão, querer falar
Pedir fraternidade e companhia.

Era só, na paisagem milenar,
Paris de Santa Genoveva – e a fria
Sombra da noite sobre o boulevard.

“Longe e perto”, escrevia Ribeiro Couto na dedicatória, em 1962. Longe e perto como nos encontramos, nesta noite, todos os da Cadeira 26. Mais perto que longe.

27/8/1970