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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Menotti del Picchia

Acadêmico Luís Viana Filho,

Estou advinhando que duas razões – além da minha admiração velha e proclamada – fizeram com que meus pares me escalassem para recebe-lo, no pórtico da Academia: uma fatalizada afinidade – nosso gosto pela Política – e nossa fraternização revoltada e libertária nos dias frustros e épicos de 1932.

A primeira das razões, nesta Casa presidida pelos numes angélicos do amor gratuito e sem jaça pelas coisas do espírito, talvez não milite muito em nosso favor. A Política, tal qual geralmente se processa no Brasil, vem, não raro, de toga tisnada por um debrum saturnino: a passagem fatal pela zona passional dos tumultuosos emícios onde, hoje, a demagogia ombreia, não raro, com a audácia e a improvisacão. A sua “cândida”, porém, não traz nódoa. Seu amor à Política foi vocação, como o meu foi curiosidade artística e, depois, consciente aceitação de um dever. E tão genuíno era esse amor no seu temperamento, que a obra literária, transformada em aldraba de ouro com que bateu à nossa porta, é, no autor de A Sabinada, eminentemente política. Rui e Nabuco, objetos das suas pesquisas biográficas, foram do que nossa Política teve de mais santo. Pode o acadêmico Luís Viana Filho ir sentar-se calmamente numa dessas Poltronas, pois sobre ela adejarão as sombras de Rio Branco, Rui, Nabuco, Lauro Müller, João Luís Alves, Getúlio, José Bonifácio, o Moço, seu patrono, e outras criaturas excepcionais que puderam ser, sincronicamente, sem perder substância, grandes políticos e grandes escritores.

No fundo todo verdadeiro escritor é, de certa forma, um político. Não trarei à baila o caso específico de Dante – o vate supremo –, uma vez que o divino guelfo, por político, acabou exilado, tais fez ele na flor-de-lisada Florença. A política da inteligência, vestida sempre de roupagem literária, melhor socializa a idéia e sempre vem tocada de um alto ideal construtivo. Poder-se-ia até escrever um tratado sobre a poesia da política, pois, sendo ela, no seu mais alto sentido, a arte de governar os povos, sua finalidade suprema é atingir a harmonia e a paz sociais, dois ingredientes eminentemente poéticos. Tão poéticos e tão ideais que só existem, realmente, na imaginação dos estadistas- poetas, como Roosevelt, como Churchill, capazes de galvanizar as nações citando um verso no justo instante em que se decide a sorte da humanidade.

Esse conceito de Política, que é o seu, Sr. Luís Viana Filho, o absolve da preferência aqui tão corajosamente há pouco confessada. Antes da Poltrona acadêmica, almejou sua vocação uma Cadeira do Parlamento. Desejou-a com tanto ardor que, em 1934, eleito deputado federal, levou com seu diploma tal juventude para o Congresso, que foi logo proclamado o Benjamim da Câmara. Esse conceito de Política e seu ímpeto de moço propiciaram a segunda razão que justifica ser eu quem lhe fale: nosso encontro nas trincheiras de 1932, na mais lírica das arrancadas revolucionárias. Nessa hora, a Bahia culta e a mocidade impávida da terra de Castro Alves ergueram o grito tradicional pola ley e acordaram junto das suas igrejas barrocas, cheias de imagens tão pitorescas, os ecos da voz do poeta, sonoros do sentido de liberdade. O desafio bandeirante à perpetuação da ditadura encontrou o moço inconformado na ala dos que se entrincheiraram na Faculdade baiana, legítimo reduto dos que se batiam pela ordem constitucional na hora em que se apagavam as luzes da lei. Da intensa vibração espiritual desses instantes épicos, em que São Paulo de Rui via a seu flanco a Bahia de Pedro de Toledo – S. Paulo do “civilismo” e a Bahia “constitucionalista” – Alcântara Machado, o que tinha sua mesa de trabalho “como o leito de Ulisses”, presa por seculares raízes à terra-berço, deu, nesta sala, em memorável discurso, o clima heróico e a indomada bravura. Nossa vitória, obtendo a Constituinte, foi precária. Em S.Paulo formou-se a “Frente Única”. Na Bahia, ao lado de Prado Valadares, Nestor Duarte, Aloísio de Carvalho, Eugênio Gomes, Inocêncio Calmon, Gilberto Valente, Lafaiete Pondé, José Silveira, Miguel Calmon e João Mendes, o novo acadêmico perfilhava o “Manifesto da Liga da Ação Social e Política” e, dentro de uma programática orgânica mas idealista, pisava o tablado dos comícios de toga cândida, porque limpos eram seus processos e alvíssimos seus ideais.

Pôde, Sr. Luís Viana Filho, neste nobre exercício de sinceridade que é um discurso acadêmico, orgulhar-se do seu pendor para a Política porque, como o exerce, tem ela a grandeza aristotélica de ser um nobre pensamento em ação, todo voltado para o bem da comunidade. Todo escritor é, por destino, um político: o romancista, que faz pesquisa humana na estrutura social; o ensaísta, que analisa e debate os problemas; o crítico, que passa pelo crivo da sua cultura o esforço da criação alheia no intuito de identificar os valores, ensejando sua catalogada disponibilidade para melhor ilustração e orientação da comunidade, e o poeta – l’homme qui refait le monde –, supremo político, porque surpreende o pensamento no seu núcleo germinal, puro e incontaminado, como assinala Novalis, sem vê-lo enquadrado nas categorias dos filósofos, nem transformado em material específico para a formação de uma ciência. O poeta – vede Dante, Hölderlin, Goethe – é um político que descobre até as normas que regem o céu e o inferno... Sua intuição adivinha e revela a conduta dos homens oferecendo, assim, toda a essência de que carecem os legisladores. É Homero iluminando Péricles.

Hoje, ilustre acadêmico, mais do que nunca precisa a Política dos pensadores e escritores para renutri-la de essência e de beleza. Essa palavra vai-se descolorindo de tal forma no estorricado “deserto de idéias” que alguns dos seus profissionais rasgaram numa área da vida nacional, que os dicionários honestos a registrarão, talvez, apenas como um jogo astuto de rasteiras ou como uma estratégia meramente eleitoral, na qual a audácia precisa ser fartamente acolitada pelo dinheiro.

Precisamos, na Política e na Administração, mais do que da inflação de leis com que se trava a expansão do país, de um largo pensamento capaz de dar sentido nacional e lógico à própria estrutura do Estado. Precisamos, mais do que de homens carismáticos, ou demagogos, de espíritos orgânicos semeando idéias, idéias como as semeavam Tavares Bastos, Alberto Torres, Nabuco, Rui, Euclides, Calógeras, Oliveira Viana, Roberto Simonsen. É que uma revolução se processa no mundo e, entre nós, um corpo emaranhado de leis, como fios de um casulo onde jaz larva morta, defende um pensamento arcaico e traça a arquitetura estatal de um edifício constitucional superado, senão em parte obsoleto. Resumimos os problemas nacionais ao parto dramático e periódico do homem destinado ao supremo comando, do qual, dada nossa absurda e absorvente centralização, emanarão todas as graças e todos os benesses. Raciocina-se, pois, em função antropomórfica: que jeito terá o homem? E estes oito milhões e meio de quilômetros quadrados, ricos de todas as riquezas, povoados por um povo que, pelas suas origens titânicas e pela mescla poligenética plasmou a maravilha da “raça cósmica”, jazem dormentes e quase ilegislados, como se um Caapora telúrico trancasse as suas riquezas e seu absurdo emaranhado de leis, que não funcionam, arrochasse o corpo hercúleo da Nação como os múltiplos cordéis dos liliputianos amarravam o corpo do gigante Gulliver.

Se a Política nos assusta, sr. acadêmico, ela é, ainda, para o nosso desespero, uma suprema esperança. A nação ainda tudo espera dela. É que a concebemos como a conceberam nossos pares: arte de governar os povos para sempre atualizar-lhes os processos de vida e promover a felicidade das comunidades humanas. Ouvi alguns dos seus discursos na tribuna da Câmara, Sr. Luís Viana Filho. Louvei o sr. por te-lo fatalizado à Política. Falava o doutrinador expondo, com arte, um pensamento orgânico. Preocupava-o o problema dos nossos partidos. E, quando aqui declarou que o demônio da Política o tentou primeiro, resolvi, desde logo, pleitear junto dos meus pares indulgência e perdão para tão temerário neófito. Era, ao lado de um brilhante pugilo de seus companheiros, um “político de idéias”. E como as expunha com arte, fácil era identificar no político o escritor. E é a este que recebemos.

Que escritor? Um biógrafo! Aqui começam meus temores. Causam-me certa apreensão os biógrafos... Basta dizer que, em vida, já meus canhestros biógrafos atribuem a dois Estados e a três cidades a vulgaridade de ter sido meu berço: São Paulo,Pouso Alegre e Itapira... Sinto ter nascido apenas na primeira delas, em S.Paulo, a maravilhosa megalópolis quadricentenária, porque o mundo não assistiu ainda ao milagre de alguém ter nascido, simultaneamente, em três localidades... Vê, Sr. Luís Viana Filho, o que pode acontecer à gente? Há mais: há uns tempos, meu cunhado Sr. João Queirós Assunção Filho – que é meu biógrafo doméstico – na minha presença, com uma convicção que me comovia e me obrigava a não contrariá-lo, contou a uma roda de jornalistas como eu escrevera as Máscaras. “Em Santos, no antigo Miramar, num carnaval orgiástico, inebriado de champanha e de éter, na presença carnal de uma fascinante Colombina...” Pois foi em São Paulo, num hotel da Rua Líbero Badaró, sozinho no quarto, sem beber uma gota de álcool, meses depois da Semana Santa!

Estas duas experiências me inquietaram com relação aos Plutarcos, Suetônios, Boswells, Stracheys, Vasaris, Mejerowskys, Ludwigs, até meu admirado Pedro Calmon, que me ofertou o mais vivo e bizarro perfil de Pedro I.

Um biógrafo pode ser um indivíduo mágico. Com uns fragmentos de lápide do templo de Al-Ubaid, umas tradições quase míticas da gente sumeriana e algumas hipóteses, é capaz de retratar o chefe da primeira dinastia de Ur, como Cuvier, de um osso fossilizado, reconstruía a estrutura de um brontossáurio. Há uma anedota em que um filho com muita ternura e pouco miolo pediu a um pintor que lhe fizesse um retrato do pai falecido. “Tem fotografia dele?” “Não”. “Algum desenho?” “Não”. E deu ao pintor notícias somáticas do progenitor morto: bigode grande e preto, testa curta, nariz rombudo. Feita a pintura com tais ingredientes, o filho, ao ver a obra, quase desfaleceu decepcionado: “Ah! o meu pobre pai como está mudado!”

Não se assuste, acadêmico Luís Viana Filho: eu já deparei com vários Napoleões “muito mudados!” Uns épicos, de perfil de águia em vôo desferido, como no quadro de David, todos resplandecentes de sonho e de glória. Outros, vulpinos e calculistas, esgueirando-se pela política entre Tayllerand serviçal e escorregadio e Fouché tratante e policial, a arrastar uma desaçaimada fome de poder, tendo aos calcanhares a matilha da família esfomeada. Qual, dentro dessas centenas de corsos fatídicos vivendo na carne biográfica das palavras, é o pálido cadete de Brienne, o conspirador vitorioso do 18 Brumário e o estrategista genial de Marengo? Quer mais? O meu Lincoln era o lenhador longo, magro e atlético, estranho morcego funéreo flabelando as abas da sobrecasaca desalinhada, limpo e reto de alma, soturno e introvertido de espírito. O amor o tornara romântico e pusera lágrimas que estriavam as chanfras da máscara talhada em ângulos como estalactites pingando em anfractuosidades de rochas. Estóico na dor, hábil no governo, assistia, impávido, o drama do seu povo, integrado no ideal de lavar na terra a mancha das discriminações raciais. Pois sabe como manipulou, com ingredientes prosaicos, esse mesmo Lincoln um seu recente colega, o popularíssimo Dale Carnegie? Um cidadão pouco asseado e displicente, infelicitado por uma esposa ciumenta, neurótica e negocista, renteando pela inépcia no governo, vencendo pela surpresa de um acaso a parada política e ganhando a guerra mais pela testarudez que pela genialidade.

Que me dirá de tais contrastes o autor de A Vida de Joaquim Nabuco? Já sei. Na sua magnífica A Verdade na Biografia responde, com cauta antecipação, a esta fatal objurgatória que aguarda todos os biógrafos, senhores da arte quase divina de recriar as criaturas, fazer das cinzas das suas memórias carne e nervos, ação e espírito, para nos dar, como nos deu, por exemplo, Maurois, o fidalgo judeu ítalo-britânico, Disraeli, vivo e gracioso, deseperando Gladstone com sua malícia política e encantando a grande Rainha com um madrigal ou uma rosa. Que linda coisa: um criador de império arrulhando versos... Seria isso ou seria, num disfarce de poeta, um voraz imperialista falando em cifras e arquitetando, à sombra da esquadra inglesa, expedições predatórias? Na vossa mão, ó biógrafos, está o poder de fazer-nos ridículos ou grandes! A nossa ressurreição espectral está na força da vossa simpatia e na esperança da vossa integridade ou na autenticidade dos testemunhos e dos documentos, porque biografia é apenas História. E o que é História, essa memória congelada no tempo, senão um admitir que “sim” de alguma coisa que pode ser substancialmente “não?” Lembra-se daquela fina sátira de Daudet – o enciumado inimigo das Academias – ao ironizar o infeliz “imortal” Astier-Réhu, fazendo-o  revolucionar a história da França baseado, candidamente, em textos e pergaminhos gatafunhados por um refinado falsário? História pode ser “história”, no pessimismo bem-humorado do povo. O zelo da sua autenticidade depende de mil circunstâncias. Homero funde o humano com o divino e a realidade às vezes se esfuma em mito, na fuga surrealista de uma transferência de planos. Nesses mitos – nódulos de complexos sociais ou, como quer Mircea Eliade, “modo de ser no mundo” – vai, não raro, o biógrafo destacar o herói, compor-lhe a vida, como as desses reis fabulosos, Menelau, Édipo, Numa Pompílio, cuja essência é um hibridismo paradoxal de humano e social porque, como mitos, são criaturas que incorporaram, na sua essência, seu drama pessoal e o espírito do seu tempo transformado em alegoria.

Estou dizendo isto, Acadêmico Luís Viana Filho, para lembrar que a sua arte específica, a biografia, pede o que sua cultura e honestidade lhe têm dado: prudência na escolha do material e imparcialidade no expor. Nunca me esqueço, quando penso na História – pois biografia não é mais que a História de uma vida e a História, no conceito carlyliano, uma seqüência de biografias – do cético e indulgente Anatole France nas páginas maliciosas de Île des Pinguins, nas quais uma hetaira se transforma em santa e se sagra, nos altares, como Santa Orberose, somente porque as partes mais ondulantes do seu corpo eram famosas por terem a graça móvel das ondas e a cor cálida das rosas.

Entre nós, que se tem feito no nosso Tiradentes? E Calabar, Judas cívico ou herói frustrado, manipulado ao gosto das preferências passionais ou políticas, ora acusado da sórdida felonia de quem trai o próprio berço, ora redimido na sua defecção por se lhe atribuir o sonho de um futuro diferente para seu País, isento das humilhações da servidão reinol? Como pode o biógrafo fixar “a verdade” do biografado, problema tão árduo e complexo que lhe custou um livro? Somente “Deus todo poderoso”, no dizer de Whitman, produz, com sua divina criação, a verdade de uma criatura, porque a verdade é uma essência e a visão humana dessa verdade, uma vidência, portanto, um espelhismo.

Como vimos, cinemático nas suas transformações corporais e psíquicas é o modelo do biógrafo; cinemática a evolução mental e temperamental do indivíduo exposto ao meio social, também este cinemático. Conclusão: o biógrafo é um caçador que desfere seu tiro em ave em pleno vôo, fundido seu vulto na bruma, tão instável, tão múltipla e, por isso mesmo, tão infixa a personalidade à qual procura dar a constante de um retrato. Pode atirar numa pomba e acertar num marreco. Na realidade uma alma é um ponto de vista. Rui, o seu Rui, Sr. Luís Viana Filho –, é um constante problema no tempo. Do ângulo de um clima social em que se coloque o biógrafo depende ser ele o arquiteto liberal de nossa Democracia, ou, pela prematuridade dos seus esquemas, um desfigurador perigoso, porque sedutor, das nossas agrestes realidades.

Qual é a personagem que sai autêntica e imutável de uma biografia? Sornente as criaturas ideais. Na verdade – e Pirandello tinha razão –, realidade integral é apenas a “personagem” no puro sentido da criação literária. Aliás tais personagens, quando vivas da vida que o consenso unânime lhes dá, são as únicas definitivamente reais, porque infungíveis no seu atrito com o tempo. A personagem literária é o “ente de razão” kantiano, vivendo sua inamolgável existência de arquétipo, ubíqua e universalmente – presente, íntegra na carne da sua estrutura somática imaginada, carregada eternamente da mesma carga anímica. Não flutua como homem ao vento das opiniões e das necessidades, o qual será fatalmente inúmero e irrepresável para seus biógrafos, portanto parcela ou instante de si mesmo, mas não seu todo vibrátil. A personagem porém não muda. Não oferece ângulos na sua estática de criação intemporal, não atingida pelo fluxo e refluxo das opiniões, não violada na sua imortal contextura pelo desgaste implacável do tempo. Essa biografia, a da “personagem”, é a única que pode oferecer, com segurança, o selo da autenticidade. Exemplo: D. Quixote de la Mancha...

Lá vai o cavaleiro andante pelos caminhos do mundo oferecendo resgate à honra ultrajada, punindo vilões, abatendo gigantes. Lá vai no seu magro corcel de guerra, comovido e errante espetro do universal anseio de beleza e de justiça. Traz por celada um pedaço de papelão no morrião cor de azinhavre. As pernas balouçam ao longo das costelas do rocim lastimável. Todo ele é integridade e sonho. Os homens de todos os tempos se fixarão no seu vulto mais vivo e presente que o de César, que o de Zenóbia, que o de Gengis Khan, porque ele pertence a todas as pátrias, ou melhor, porque ele não é herói nacional, mas apenas o herói humano. Nenhum documento modificará uma só vírgula da sua verdade. Nenhuma polêmica porá em dúvida seu berço, sua filiação, sua formação, suas andanças. Essa biografia, que Cervantes traçou, não sofrerá contestações, nem encontrará um crítico para retificá-la...

Aí está, Sr. Luís Viana Filho, onde quis chegar. Isso para sua defesa e não para libelo da sua profissão literária. Quis registar quão difícil é ser exato e fiel no sofrido esforço de reconstruir uma vida. Aliás, isso ficou bem claro na sua esplêndida A Verdade na Biografia. Esse livro – entre nós o mais completo ensaio no gênero – também serve para colaborar na sua biografia. Livro polêmico, réplica vibrante aos reparos de Homero Pires à sua Vida de Rui Barbosa, mostra como sua aparência pacífica e doce eriça-se de vibrante combatividade quando provocada ou ferida. Estou a crer que os instantes desagrada cólera que lampejaram nesse livro lhe ofertaram – e ofertaram às Letras nacionais – a oportunidade melhor para resplandecer seu espírito na plenitude da sua cultura e na vibração do seu estilo. Todo o problema da biografia ali é exposto. Dele ressalta a honestidade com que sua arte procura reconstruir a vida das personalidades que escolhe, “buscando transmitir, com a máxima exatidão possível, a descrição de uma vida e a fisionomia de alguém”. Os seus “alguéns” foram Rui e Nabuco.

Rui e Nabuco. Era fatal que fossem os tipos da sua predileção. Políticos, escritores. O baiano “cabeça de mapa-múndi contendo a erudição de cinco continentes”, na humorada alegoria de um poema, e o fino fidalgo senhor de engenho, que somava à graça do corpo os requisitos do espírito. O proletário aristocratizado pela genialidade e o fidalgo proletarizado pelo coração. Este, o reformador; aquele, o revolucionário. A Abolição e o federalismo. O inglês e o americano. O “ontem” tão nobre e exato na sua história lógica imperial e o “amanhã” tumultuário, à procura de novas e cambiantes surpresas de uma chucra liberdade ora licença, ora ditadura, dentro do temporão enigma da República.

Nessas suas obras fundamentais, em que um estilo mais próximo de Tácito que de Suetônio vai recortando, em páginas sóbrias, mas ricas de informação e de observação, os perfis dos dois grandes brasileiros, realiza-se a plenitude da sua vocação literária para a biografia. Tais livros sagram-no mestre no gênero.

Em 1941 publicava A Vida de Rui Barbosa. A boa lógica determinaria que, antes, escrevesse a vida de Nabuco, mas esta nasceu do seu ensaio Rui e Nabuco, história de uma recíproca admiração que se sedimentou em nobre amizade. Reivindico a ordem cronológica por sentir que esses dois homens excepcionais encarnaram duas épocas e foram os divisores de dois ciclos históricos. O gênio e o patriotismo de ambos elidiram o choque, nuançando a transferência dos valores imperiais para as inovações da República. Na essência, por um paradoxo, era esta a reação contra a generosa concepção libertária do Império, que morria ao dar à luz um dos nossos mais belos instantes históricos: a Abolição, portanto, a inauguração, no Brasil, da plenitude da liberdade. Aliás, Nabuco, mais do que ninguém, sentia sua fatalização de propiciador dos novos tempos, afirmando que o político perfeito é o que foi conservador e foi liberal, porque assim se formam a moderação e o progresso das idéias... Não se alcança a verdadeira posição senão vendo os dois lados das coisas.

De um lado estava ele, fiel ao seu mundo em ocaso, sem melancolia porque, no fundo do coração, partilhava da alvorada das liberdades em que o novo regime alvorecia. Sua aristocrática figura vive nas páginas com que lhe retraça o roteiro da nobre vida, Sr. Luís Viana Filho. Lá está o diplomata apolíneo, mais artista que político, traçando o retrato do seu ideal nesse largo painel sentimental, histórico e político, que é a obra-prima que nos legou, Um Estadista do Império, Nabuco é uma inteligência ocidental embebida na alta cultura inglesa, vivendo a civilizada concepção artificial do Império nessa ilha cultural litorânea do seu mundo doméstico e político, tão distante da realidade telúrica, das fórmulas ainda silvestres e larvares da cultura do hinterland. Estas esfervilhavam nos confusos ideais democráticos, que se exprimiam por convulsivos paradoxos, ora cristalizando-se na República como forma punitiva à revolução econômica produzida pela Abolição, ora levantando, em Canudos, a sombra vingadora e absurdamente monarquista de Antônio Conselheiro, libelo das populações largadas ao seu triste fadário por esse mesmo Império do qual a ignorância fanática era saudosista, Império que vivia extrovertido, fiel à sua matriz mental que era a arquitetura burocrática e o espírito legal das condições reinóis.

Era natural sua referência por Rui. Rui é o menino prodígio da Democracia, o cidadão avançado, uma espécie de Júlio Verne que virasse estadista. Fascinavam-no os novos inventos criados pelos políticos de outras pátrias e sonhava faze-los funcionar num povo ainda infante que ensaiava pelos vastos 8.500.000 quilômetros quadrados de um chão ainda selvagem, em nódulos demográficos rarefeitos, um tipo inédito de vida em comunidade. Seu frusto federalismo é um vislumbre intuitivo do que o País está a exigir: a adequação racional das leis e da administração aos vários agrupamentos patrícios já tipificados por força da Economia, da História, da Cultura, pelas condições ecológicas das várias regiões. O erudito evade-se da realidade na sua iluminada fuga rumo do seu alto saber ou sonha amoldar o homem agreste às perfeições jurídicas que civilizações avançadas de séculos criaram para si. A estrutura do estado americano torna-se modelo falho do seu presidencialismo absorvente e ditatorial esquecido da lógica e orgânica descentralização administativa e jurídica da terra de Tio Sam. Seja, porém, como for, o genial baiano, pena e boca de ouro, sonha liberdades e progresso humano, leva sua ânsia igualitária à Sociedade das Nações, onde os Golias imperialistas são feridos na sua arrogância pela fulminante eloqüência desse intrépido David.

Essa vida nervosa e combativa, Acadêmico Luís Viana Filho, soube fixá-la palpitante no seu livro. Nele se vislumbra a ancestralidade biliosa do magro adolescente, tímido, que resiste aos impulsos da sua vocação beneditina, que quer confiná-lo num convento, para largá-lo a dialogar com Hamlet na sua devoção por Shakespeare, superando, porém, o pessimismo funéreo do príncipe com o luminoso idealismo de Dom Quixote, o outro livro amado, fundindo-se, assim, no seu espírito, um racionalismo perquiridor e mordente e uma iluminada ânsia de justiça e de ideal.

Lá está o filho afetuoso e o irmão dedicado. Depois, vemo-lo aos pés de Maria Augusta, escolhendo a graça das suas toaletes – estranho Dior sábio e amoroso – a provar, com seu amor ininterrupto e casto, que “desde o início encontrou na esposa o princípio e o fim da sua existência”. Assim vai surgindo seu Rui, enleado nas transações erradas de O Papa e o Concílio, no legado das dívidas paternas, nas aperturas medíocres do gênio lutando contra a necessidade. E aquele predestinado palpitar de asas – seu amor ao estudo, sua admiração pelos estadistas britânicos Peal, Gladstone, Palmerston, Pitt... – todo um preparar de vôo... Agora o temos Librado no zênite, procelária e águia, em meio às tempestades e aos triunfos, integrando-se na nossa companhia para não dar descontinuidade à glória de Machado de Assis, de quem foi substituto, a justificar seu destino de ser padrão já lendário do mais alto cânone da inteligência brasileira. Tão subido e tão luminoso o seu vôo, que pairou num mundo jurídico de perfeições celestes, alheado, nos seus êxtases eruditos, à manipulação calibânica da vida brasileira, com magos e feiticeiros tecendo, cá embaixo, as mandingas eleitorais com os ingredientes realistas da ignorância nacional, da nossa imaturidade política, da ambição dos sobas, da astúcia dos cabos. Nessa altura, dois mundos traçaram a dicotomia social da nossa gente, com dois líderes a identificar cada metade: Pinheiro Machado e Rui. A terra e o céu. O pragmatismo orgânico e a fuga rumo das estrelas...

A biografia, porém, é sua, não é minha, Acadêmico Luís Viana Filho. Eu, ao narrá-la, a vou desnaturando com impressões pessoais, o que prova o que provei antes, ou melhor, o que ambos provamos, eu no início desta oração e o novel acadêmico na sua A Verdade na Biografia: toda biografia é um ponto de vista... Seus pontos de vista procuram honestamente rentear a verdade e nos dar as personagens o mais perto das suas próprias vidas.

Não são, porém, somente o biógrafo e o político, que integram sua personalidade, sr. acadêmico. O jurista in-herba, de 1925, pisando os umbrais da Faculdade de Direito da Bahia, seria o advogado militante a partir de 1929, depois, em 1934, o professor de Direito Internacional Público, para, afinal, em 1940, tornar-se o mestre na cátedra de Direito Internacional Privado da Faculdade que o diplomou. Jornalista, iniciando a carreira ao lado de Aloísiode Carvalho Filho, Hermes Lima, Clemente Mariani, Sodré Viana, no “Diário da Bahia”, passa para “A Tarde” levado por Aliomar Baleeiro, onde o político soma-se ao polemista. Polígrafo, nos dá, no setor da História, A Sabinada, depois A Língua no Brasil e O Negro na Bahia, obra que Gilberto Freyre, com entusiasmo, prefacia e consagra. Este trabalho, fundamental para os que estudam a formação social brasileira, rasga uma clareira na picada aberta por Nina Rodrigues e perlustrada por Oliveira Viana, Roquette-Pinto, Artur Ramos, Gilberto Freyre e outros. A influência do negro na formação nacional decorre da verdade que ali proclama: “Todos nós, mesmo os que não têm nenhuma ascendência negra, trazemos na alma um pouco de preto.” Proclama em prosa o que há tempo eu disse em verso: “Trago na alma os fetiches de um macumbeiro mongongo...” Essa gota de noite trouxe à alma do branco um debrum de céu noturno povoado de pesadelos e de estrelas... O enriquecimento de uma vasta zona de nossa alma feita de inconformismo, superstição, inquietude, ingredientes que excitam a imaginação e os ritmos típicos e motivos selvagens e originais da nossa música, tão evidentes em Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Lourenço Fernandez, no alto nível das grandes sinfonias, trazem a marca do negro escravo, da sua música ritual, da sua angústia e do seu júbilo bárbaro, da sua sexualidade e do seu banzo. Neste ensaio, a obra do sociólogo e de investigador é cheia de amor. Luís Viana Filho presta com ela justiça ao negro e se aprofunda no estudo de um dos mais fascinantes problemas humanos do Brasil.

Homem de tão inúmera ação e tão múltiplo saber vem continuar, nesta Casa, a tradição de um político, de um jornalista e de um cientista, também grandes oradores, escritores e poetas. Perfeita afinidade. José Bonifácio, o Moço, deslumbrou Medeiros e Albuquerque como tribuno combatente. Miguel Osório de Almeida, homem de ciência, encantava-se com o onimodismo de Medeiros e Albuquerque, jornalista, conferencista, poeta, amador da Ciência, sobretudo, vulgarizador informado e curioso das coisas do mundo. Miguel Osório de Almeida ainda vive em nossa memória como se aqui estivesse na irradiação da sua fascinante simpatia.

O Acadêmico Luís Viana Filho participa das faculdades do seu glorioso patrono e dos anteriores ocupantes da sua cadeira. Como José Bonifácio, o Moço, é político e tribuno parlamentar. Como Medeiros e Albuquerque, é jornalista e ensaísta e, como Miguel Osório, cientista, embora não sejam as ciências experimentais o seu domínio, mas as sociais e jurídicas.

Preenchendo a vaga de Miguel Osório de Almeida, traz para ela, o historiador e o biógrafo, uma grande obra realizada e uma nobre vida até agora vivida dentro de uma discrição avessa à extroversão. O fisiologista que ocupava essa Cadeira era, porém, loquaz. Parece-me ouvir ainda o jorro vivo de sabedoria e de graça que fluía daquela eloqüência fácil, sápida pelo humorismo da anedota, facetada pela múltipla cultura e policolorida pela alegre arte de bem conversar. Eu o vejo sorridente, com seu perfil de sofista grego, no qual a ironia era argúcia e a eloqüência pura alegria interior, discreteando sobre qualquer assunto ao qual dava sedução de artista a substância do mestre. A Ciência hoje, de fronteiras fluidas como observou o príncipe De Broglie, ora é uma sistematização de conhecimentos, ora um enigma que se esfuma em hipóteses. Do jogo das escamoteações mentais a que se presta a arrogância da Ciência – onde está a matéria? como se esvaiu em energia? – gostava Miguel Osório de Almeida, quando se integrava no puro artista que era – literato, músico, no fundo, poeta no intuito de mostrar-lhe as limitações, levando-o a indagar até onde “a ciência era um romance” e quando um “romance constituía uma Ciência”. A entrada de qualquer espírito para esta Academia o imerge, automaticamente, nesse clima. Clima redutor das petulâncias axiomáticas, clima de humildade de espírito, compreensão sábia de que a verdade suprema é apenas um convite para uma honesta e constante revisão do que se apresenta, neste pobre mundo, como concepções fundamentais possivelmente estáveis. Os grandes juristas, sociólogos, médicos, afinal, cientistas – Rui, Clóvis, Pedro Lessa, Afrânio, Francisco de Castro, Miguel Couto, Roquette-Pinto, Santos Dumont, Miguel Osório afinal, os luminares das várias ciências no País, nesta Casa se fundiram no artista, posição neutra e suprema, mercê da qual compreenderam que uma coisa é realmente imortal: a pura e gratuita ânsia do homem pela Beleza. Uma sentença dos Vedas, um versículo do Gênesis, um fragmento da Ilíada perpetuam a sua verdade e, nas cambiantes do tempo, fixam o que é estável em meio do perecível. Esse sonho de beleza é o que nutre nossa imortalidade. Esta não sofre síncopes com a morte: continua no que toma a tocha do que tomba. O que é eterno nas Academias é a luminosa substância do seu sonho. Aqui está, Acadêmico Luís Viana Filho, o ponto alto deste rito de iniciação: a senha sábia da precaridade. Aqui todos penetram na compreensão exata do fungível e adivinham que somente a continuidade é, realmente, imortalidade. A herança espiritual de Miguel Osório de Almeida passa para as suas mãos. Não é seu patrimônio científico que lhe oferece em guarda, mas aquela quota de imortalidade que ele trazia na alma, legado de outras criaturas que ele amou e admirou e que conceberam a vida como a perpetuidade das coisas gratuitas e belas. Essa gratuidade espiritual e esse perpétuo anseio de Beleza são o clima da Academia.

Agora, Acadêmico Luís Viana Filho, pode integrar-se na sua imortalidade.

15/4/1955