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Levi Carneiro

 

O PROBLEMA DO LIVRO NACIONAL

(No Instituto de Estudos Brasileiros, em 1o de agosto de 1938)

O problema do livro é hoje mundial. Não se trata mais do livro neste momento, como em outros tempos. Todos se lembram, todos nos lembramos das festas colegiais, em que se recitavam os versos de Castro Alves:

                  O livro, caindo n’alma,

                  É gérmen que faz a palma,

                  É chuva que faz o mar.

Depois disso, começou-se falar mal do livro, veio a reação contra a educação livresca.

Sacha Guitry não é autoridade adequada a este assunto solene; mas, é homem de tão fina inteligência, que não quero calar o autor da observação. Sacha Guitry disse que o que está nos livros não se aprende, não se estuda, precisamente porque está nos livros. O horário das estradas de ferro, o catálogo dos telefones, ninguém os estuda; na hora em que precisa, consulta. O que está no livro, não se precisa estudar.

De sorte que o livro começou a ficar desprestigiado. Na reação contra o bacharelismo entrava alguma coisa de reação antilivresca. Apareceu a escola ativa. Afastaram-se os livros; os livros foram se desprestigiando cada vez mais.

No entanto, creio, como Jorge Duhamel, que, nas condições atuais da humanidade, o destino da nossa civilização está ligado ao destino do livro, instrumento essencial da cultura verdadeira.

Jorge Duhamel tem-se ocupado, muitas vezes, do assunto, não só no Mercure de France, que há até pouco tempo dirigia, como num livro primoroso - Défense des Lettres - e demonstrou muito bem: todo o homem, mesmo o mais atento, tem necessidade de voltar, de refletir de novo sobre aquilo que acabou de ler ou que acabou de fazer. É isto que se chama reflexão; isto é que é refletir, voltar atrás. E isto só é possível com o livro.

Os instrumentos modernos de cultura, os meios técnicos e mecânicos do cinema e do rádio, têm o grande e fundamental defeito de que vão seguindo para diante. Não há meio de parar, de voltar, de refletir, de repetir, de poder demorar a atenção ainda sobre o ponto que passou. Esse ponto passou, já se seguiu outro e, portanto, quase não é possível refletir.

Duhamel mesmo conta a história de uma pobre velha, que se consolava, ouvindo rádio. Não podendo ler, idosa, doente, escutava o rádio e, então, quando chegava a um trecho mais interessante, dizia: - para, espera, repete o trecho, repete! Mas, o rádio já tinha seguido adiante.

Não. O livro é que é o amigo da solidão, o companheiro sempre pronto, que espera pelo leitor mais demorado, mais refletido, de penetração mais lenta, mais difícil, mais meticulosa. Ele é que é, por consequência, o grande instrumento de cultura.

Mesmo o ensino oral é também, inegavelmente, um grande instrumento de cultura. Mas, o que faz de melhor o professor - disse Duhamel - é ensinar o aluno a amar os livros, conhecer os livros em que se estuda, saber os livros em que pode aprender. O que mais convém, afinal, no ensino, embora tão malsinado, e, em certos pontos de vista, perigoso e até inconveniente, é o ensino livresco.

No momento atual, múltiplos elementos conspiram contra o livro.

Em primeiro lugar, inegavelmente, o ambiente político. O ambiente político do mundo não é propício à leitura, não é favorável ao livro. Depois (ai de nós! sabemos alguma coisa neste particular), os desportos, a era de Leônidas, do Leônidas contemporâneo, não o das Termópilas - não ama o livro.

Não estamos na idade do livro. Evidentemente, as preferências são outras, muito diversas.

Esses dois grandes instrumentos, esses preciosos instrumentos de cultura, inegavelmente - o cinema e o rádio, conforme a observação de Duhamel, correspondem a outro método de cultura, inteiramente diverso do livro. Duhamel, ainda Duhamel, disse bem: “Lire c'est élire”.

Quem lê, escolhe primeiro o que ler. No rádio e no cinema não escolhe: é o que estão transmitindo, é o que vê, o que o programa comporta. A escolha é muito restrita e limitada. No entanto, para satisfazer as suas obrigações intelectuais e aos seus deveres intelectuais, o homem contemporâneo julga que lhe basta o cinema e o rádio e, no máximo, um jornal - um jornal que não tenha coisas muito pesadas. E o próprio jornal cada vez vai limitando a sua matéria de leitura, deixa-se invadir pela ilustração, adota as manchetes, que reduzem a três linhas o artigo. O próprio artigo é espalhado, dividido em mil pedaços, pelas várias páginas do mesmo jornal. Duhamel faz a observação de que hoje há leitores que leem os artigos seguidamente, sem procurar a continuação de cada um; vão lendo por páginas e, depois, aquilo se recompõe.

Estamos na era da confusão; estamos em plena confusão. É assim que se lê mal, e atrapalhadamente; não se lê, praticamente. O livro está francamente em decadência. Toda a gente faz uma observação fácil; não há quem leia; não se vê quem leia.

Sou do tempo do bonde em que se lia. Hoje, ninguém lê no bonde, no ônibus e no automóvel. Lembro-me de que a meu pai, o presente que lhe fazíamos, no dia de aniversário, eu e meu irmão, era um livro. O presente que meu irmão sempre me fazia, no dia de meus anos, era um livro. O presente que fazia eu a meu irmãos, cada dia de seus anos, era um livro. Hoje, isso desapareceu completamente. A bola de futebol ainda haverá quem aceite: mas um livro, não!

No entanto, para nós, principalmente, com a nossa atenção trepidante, desatenta - se se pode dizer assim - o livro é o instrumento ainda mais precioso de cultura, exatamente pela possibilidade de reter essa atenção, de fazê-la continuada e prolongada.

Depois, somos todos mais ou menos autodidatas. Não há - perdoem-me os professores aqui presentes - professores em número suficiente para todos nós, ignorantes, para todos nós, que precisamos aprender de fato. De sorte que o livro é que pode suprir essa deficiência. Todos esses grandes professores, que aí estão, se fizeram, em grande parte, somente com esses mestres, que são os livros. De modo que, para nós, mais que para ninguém, o livro é o melhor instrumento de cultura.

Aprendi com Emílio Faguet que a arte de ler se resume em dois preceitos: ler devagar e ler duas vezes. E aprendi, com a minha amarga experiência, que há outro preceito: é ler oportunamente.

Eu não li a Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, quanto tinha 16 anos. Tentei lê-la, quando tinha 25. Não consegui. A Cité antique de Fustel de Coulanges, eu a li quando estava bacharel recém-formado. E, quando a li, pensei: - aqui está um livro que eu devia ter lido no meu primeiro ano de Direito e ninguém se lembrou de me dizer que o lesse naquela ocasião. De sorte que hoje, quando encontro um primeiroanista de Direito, a primeira coisa que faço é perguntar-lhe: já leu a Cité antique de Fustel de Coulanges?

Mas tive a fortuna de ler, no momento oportuno, L’Avenir de la science, de Renan. É um livro escrito aos vinte anos, e para essa idade; por acaso feliz, eu o li também aos vinte anos e pude sentir, assim, todo o encanto da bela obra.

Esses três exemplos convenceram-me de que há necessidade de ler, em certa época, numa certa idade, e que há livros que só se podem ler em certa fase da vida.

Quando tive a honra de presidir, em seus primeiros dias, a hoje prestigiosíssima Associação Brasileira de Educação, sugeri que organizássemos um indicador de leituras para os brasileiros. Há alguma coisa desse gênero no estrangeiro, até um programa de Augusto Comte. Eu pensava na necessidade de poder dar aos brasileiros a indicação de alguns livros, que cada um deva ler em certa época da vida. Naturalmente, seria um indicador com bastante amplitude; não seria um programa uniforme, para todos. Não quereria que todos lessem os mesmíssimos livros. Naturalmente, haveria a possibilidade de escolher, dentro de indicações bastante numerosas, os que mais agradassem ou conviessem a cada um, conforme suas condições pessoais. Enfim, traçar-se-ia largo roteiro de leituras, através do qual se pudesse colher o máximo proveito que podem proporcionar certos livros, lidos em ocasião adequada, e todos os benefícios que resultam, para a formação mental de cada um, percorrendo, oportunamente, as páginas de certas grandes obras, que cada homem de cultura tem necessidade de conhecer.

De tudo isto, ressalta a importância da biblioteca. Nós estamos a falar na importância do livro, na necessidade da leitura, na necessidade desse indicador de leituras; nada disso se faz sem a biblioteca.

Duhamel havia figurado a hipótese - e admirava-se de que não houvesse um Wells que tivesse feito com ela um romance - de uma praga que atacasse todos os livros do mundo; seria a irrupção de uma doença, que atacasse as bibliotecas, de sorte que todas as bibliotecas e todos os livros do mundo fossem destruídos.

Qual seria a situação da humanidade? Ele imaginou que seria de verdadeiro descalabro. É preciso, todavia, não esquecer que, com nossos dias, se têm destruído, sistematicamente, milhões de livros, com a preocupação de exterminar certas culturas, de combater certas orientações doutrinarias ou políticas.

Duhamel, aliás, se referiu ao Brasil, nesse livro, louvando as bibliotecas de aço, perfeitamente fechadas, com que aqui se defendem os livros do ataque das traças e de outros animais destruidores. Ao mesmo tempo, reconhece que, pior do que o perigo desses animais, é a indiferença do público, que deve ler, e que abandona os livros. Contra esse perigo nada valem as nossas estantes de aço. Ao contrário... No Brasil, a verificação aterradora é esta: não temos bibliotecas. Não há bibliotecas.

[...]

Mas, quanto aos livreiros propriamente ditos, creio que não temos progredido.

Na França, com o empenho de tornar atraentes as livrarias, tem-se cogitado dos mais variados alvitres - sessões musicais, gabinetes de leitura, mil coisas que possam tornar frequentadas as livrarias.

O que os livreiros devem ser, a sua capacidade, é outro assunto largamente debatido. Lembro-me de ter lido, numa grande revista americana - The American Bar Association Journal - um artigo de professor da Universidade de Yale sobre os requisitos dos livreiros jurídicos, sobre o que se deve saber para ser bom livreiro jurídico. Eu mesmo tenho um livreiro de Oxford, com quem me correspondo, há longos anos - Blackwell. Em seu papel de correspondência ele reproduz a frase de um escritor notável, que dizia ser Oxford um grande centro de estudos, não apenas pela sua grande tradição, pela sua universidade, pelo seu ambiente de espiritualidade, mas, também, por ter um livreiro como Blackwell. E é realmente admirável.

Lembro-me de certa vez em que lhe mandei pedir um livro sobre o júri, na Inglaterra. Respondeu-me numa carta, que era uma maravilha de informação. Apresentava-me vários livros ingleses e, de cada um, dizia-me: - Não é este o que lhe convém; este livro é demasiado teórico; aquele demasiado prático; este outro, apenas histórico. O livro que lhe convém, por isto e por aquilo, é o que lhe vou mandar. E era realmente o que me remetia.

Este é que é o bom livreiro; orienta, estimula, provoca o cliente, encarrega-se de alargar-lhe os horizontes intelectuais, conhece todo o material com que lida. Esta espécie de livreiros, de que já tivemos alguns, está desaparecendo entre nós. Acredito que outros surgirão, que ainda haja alguns. A verdade é que são muito mais raros.

Recordo-me, ainda, de outro episódio que comigo mesmo ocorreu. Frequentava muito a Biblioteca Nacional, quando estudante, porque lá encontrava os livros que me faltavam. José de Alencar escreveu uma obra sobre a propriedade, obra jurídica, porque era bom jurista, e na qual expunha várias ideias muito interessantes. Pretendia eu consultar a obra. Quando o funcionário olhou para o pedido - A propriedade, de José de Alencar - disse-me: - O Senhor está enganado. Temos O Guarani, Iracema, Minas de Prata, mas, A propriedade, não; ele nunca escreveu nada com esse título.

Retruquei que era um livro de Direito. A resposta foi a mesma: - Não, Senhor; está enganado. Insisti por que fosse ao catálogo. Tive um trabalho enorme para convencê-lo de que deveria fazer a consulta. Afinal, consegui que consultasse e lá havia, realmente, a obra de José de Alencar.

O que os leitores precisam encontrar, numa biblioteca ou numa livraria, é o homem que sabe o que tem, sugere e orienta, encaminha, abre novos horizontes aos seus leitores. Entre nós, isso está acabando. Vemos desaparecer o alfarrabista. No Rio de Janeiro, não se pode bouquiner, senão muito restritamente e com pouco êxito. Edições antigas não se encontram mais.

Outro problema é o dos direitos autorais. Neste ponto de vista, adotamos atitude muito adiantada, muito civilizada, mas que eu não sei se é a que convém mais aos interesses da nossa gente. Porque, quando chegamos à situação de ser proibida a reprodução de um artigo de qualquer jornal estrangeiro, inegavelmente estamos adotando uma formula jurídica adiantadíssima, tudo que há de mais avançado em matéria de respeito a direitos autorais. Verdadeiramente, será o que mais convém à difusão de nossa cultura?

Tenho algumas dúvidas sobre este ponto.

Por outro lado, sabemos que a nossa lei, como todas as leis avançadas na matéria, estabelece que cai no domínio público a obra, depois de certo período decorrido após a morte do autor. Esta determinação legal, vigente em toda a parte, é uma determinação inspirada por motivos de interesse coletivo, pelo interesse da cultura, da sua generalização. No entanto, está sendo aqui, em certo sentido, contraproducente.

Não é sem algum terror que estou vendo multiplicarem-se as traduções de clássicos, de certos autores como Aristóteles, Platão, e até Montaigne.

Não sei, não vi, não quero fazer injustiças, mas, sinceramente, não deixarei de confessar o receio com que vejo Montaigne traduzido e editado em português - traduzido e editado não sei por quem. Há aí alguma coisa que pode ser altamente prejudicial aos verdadeiros interesses da nossa cultura. Quer dizer: aquela determinação legal que suprime os direitos autorais, depois de decorrido certo número de anos da morte do autor, no interesse da cultura geral, pode estar sendo aproveitada agora em detrimento dessa mesma cultura.

Há o que se chama direito moral do autor. Está presente o eminente colega que versou essa matéria brilhantemente - o Sr. Filadelfo Azevedo. Com a preocupação do direito moral do autor, já a nossa lei de 1898 considerava contrafação a tradução em que se fizessem alterações, acréscimos ou supressões. Não cogitou das deturpações. No entanto, a deturpação, na tradução, é mais grave que toda supressão, ou alteração, que o tradutor possa fazer.

De sorte que, aí, chegamos a outro aspecto do problema do livro. Estamos traduzindo - eu direi - estamos traduzindo demais. O livro francês está, realmente, atravessando uma crise, que, em França, se procura combater. O livro francês está se vendendo caro demais no estrangeiro; o livro francês não suporta a concorrência dos outros livros estrangeiros, de que cada nação está empenhada em facilitar a difusão. Aqui, estamos, porém, traduzindo todos os autores franceses, sabe Deus como!

Eliminando a leitura, na língua original, desses livros, está desaparecendo o apreço dessa leitura e eu receio que, dentro em pouco tempo, pouca gente leia os autores franceses em original. Estamos passando a ler todos os autores franceses em traduções. É uma grande obra, um grande sintoma da atividade admirável de nossos editores, compreendendo a necessidade de vencer o problema da carestia do livro francês; mas parece indubitável que isso redunda em detrimento da nossa cultura.

O problema da tradução - acredito - reclama solução urgente, para que o livro produza todos os benefícios que deve causar. Não tenho dúvida em considerar grave violação do direito moral do autor, a tradução, mesmo de obra caída em domínio público, que deturpe o seu valor literário, como facilmente deve ocorrer, como inevitavelmente ocorrera, em se tratando de uma obra dificilmente traduzível, como, por exemplo, a de Montaigne.

Resolver-se-ia o problema, editando o livro francês no Brasil, como os droguistas fazem ao produzir drogas estrangeiras no Brasil. Os editores fariam no Brasil o livro francês, evitando o encarecimento das publicações estrangeiras, e, ao mesmo tempo, o barateamento das traduções, que, muitas vezes, sacrificam todo o valor literário da obra.

Outro problema - e estou chegando ao fim - é o de levar o nosso livro ao estrangeiro. Já os temos que merecem ser lidos no estrangeiro. Já há estrangeiros que querem ler livros nossos. Ainda agora esteve aqui uma caravana da Universidade de Córdoba, professores e estudantes, que chegaram ao Rio de Janeiro ansiosos por ver os nossos novos livros jurídicos, e por ler, por exemplo, a Medicina legal de Afrânio Peixoto, que não encontram em seus países.

O Brasil tem, no estrangeiro, mostruários de café, de algodão, de flechas de índios, de babaçu; e não tem mostruários de livros. Na exposição de Paris havia livros em todos os pavilhões estrangeiros, mesmo no da Espanha em guerra. Ali vi obras espanholas que nunca tinha conseguido encontrar, como certas de Ortega y Gasset. No pavilhão do Brasil, não havia livros. Não mostramos o que temos feito nessa matéria.

Vamos proximamente à Exposição de Nova York. Levemos o livro brasileiro, facilitemos a aquisição de livros brasileiros. Já há quem por isso se interesse, quem pretenda obtê-los.

[...]

O que desejo é a biblioteca, é o indicador de leituras, é restringir o perigo das traduções, é difundir e fomentar o hábito da leitura, facilitar a leitura, prestigiar o livro, levar o nosso livro ao estrangeiro que o queira ler e compreender. Creio que, assim, teremos feito alguma coisa útil pela cultura do Brasil.

                                                             (Discursos e conferências, 1954.)