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José do Patrocínio

SEMANA POLÍTICA

Estamos em plena aurora.

Dentro em três dias via começar a história moderna do Brasil e fechar-se a triste história dos tempos bárbaros da nossa terra.

Não é possível imaginar de um lance de pensamento o que será todo esse iluminado futuro, não obstante o presente fornecer-nos o esboço do que ele será nos largos traços dos acontecimentos que nos surpreendem.

O que está por trás do dia 3 de maio não cabe na previsão dos políticos e não é demasiado otimismo profetizar que a nossa evolução nacional será feita com a mesma rapidez da dos Estados Unidos.

As estrelas do Sul dentro em um quarto de século não invejarão o fulgor da constelação do Norte.

Já podemos acentuar orgulhosamente um contraste. A maior revolução social da nossa terra está sendo feita entre bênçãos e flores.

Nada mais extraordinário: bastaram o atrito da imprensa e o calor da palavra para limar e fundir os grilhões de três séculos de cativeiro. A alma nacional mostrou-se preparada em todas as camadas sociais para praticar e receber a liberdade. Em nenhuma outra história do mundo se encontram páginas como as que se têm escrito ultimamente em nossa terra.

A esses fazendeiros pródigos que atiram pela janela fora a carne tarifada de seus cativos, carne que era a sua fortuna legal, porque esse gênero de valor no mercado da desumanidade antiga e da afronta à moral e à civilização, a esses fazendeiros que precedem a lei para afirmar que nunca em nossa pátria o interesse se colocará diante da justiça, a rebeldia diante da razão, correspondem os libertos que têm parecido acumular ódios de três séculos, demonstram que nunca souberam senão sofrer resignados, que não viram no seu martírio um crime de opressores, mas uma tremenda e inexplicável fatalidade; os libertos que devendo ter aprendido na escravidão a anarquia provam, ao contrário, que lá mesmo conservaram intactos o patriotismo e o amor da ordem e saem do cativeiro para cooperar na obra do bem- estar geral, tanto que se iniciam na vida cedendo em favor da produção uma parte dos direitos da sua liberdade: - o salário.

Os povos que sinceramente se arreceiam de que os primeiros fenômenos resultantes da revolução social que se está operando sejam perturbações da ordem, abandono do trabalho, desassombrem os espíritos.

Há de reproduzir-se em todo o Brasil o que se deu no Ceará. Em vez de guerra fratricida - paz patriarcal; em vez de estagnação da produção - aumento de riqueza e progresso. As epopéias de Itu e de Friburgo aí estão.

Esses negros que atravessam povoações com a cabeça baixa, depois de um combate em que haviam revelado a coragem dos companheiros de Leônidas, e apesar de famintos, maltrapilhos e sangrando feridas do tiroteio e da luta corpo a corpo conduzindo crianças extenuadas não atacam a população aterrorizada, não abusam da sua força nem para satisfazer às mais urgentes necessidades da vida; esses outros negros que respondem aos senhores no dia da liberdade: descansai quanto à organização da nossa nova existência industrial - nós não queremos salário nos primeiros tempos; esses negros falam por uma raça, dão as endossantes da letra de amor à ordem e à probidade, que eles pretendem descontar no regímen da liberdade e da igualdade nacional.

O que há de mais admirável na nova fase de nossa vida de povo civilizado é a uniformidade de pensamento, desde o governo até o último liberto.

O ministério restaura a segurança pública em todas as manifestações. O Presidente do Conselho garante a fortuna do país, esforçando-se para restituir à moeda, representação do trabalho, o seu valor exato na cotação universal. Bate-se como um duelista tão inimigo da luta, como terrível no combate e em menos de um mês de administração derrota a horda dos especuladores de câmbio.

Este glorioso trabalho de valor inestimável é feito sem estrépito, com a modéstia do dever cumprido.

 O empréstimo foi o mais solene desmentido ao escravismo, que nos dava como único título descredito europeu o sermos o último país, cuja fortuna se baseava no tráfico das almas, no roubo do trabalho.

O Ministro da Fazenda provou que o país podia comparecer perante o mercado do ouro levando como valores a hipotecar a sabedoria de seu procedimento, resolvendo sem perturbação da ordem o mais temeroso dos problemas e a certeza de que este país foi dotado pela natureza de tesouros que nem mil séculos de prodigalidade poderão dissipar.

O Ministro da Justiça garante a liberdade do cidadão com a letra cega da lei e com a lucidez humanitária do seu espírito. Quebra-lhe o punhal da vingança para dar-lhe a balança das reparações e da correção.

Põe o código à cabeceira de cada cidadão por mais humilde que ele seja; todos podem dormir tranqüilos dentro de seus limites legais.

A autoridade perdeu a carrança de Medusa com que petrificava o Direito. Ela não pode mais espalhar caprichosamente pânico e lágrimas, violências e calúnias.

E porque veio da imprensa e porque veio da desilusão popular um ministro extraordinário, compreendendo que para pregar a boa nova de regeneração governamental é preciso, como Jesus, frequentar as multidões, dar vinho às suas bodas, distribuir com as próprias mãos pão e peixe aos famintos, parar junto das sepulturas para ressuscitar os mortos; esse ministro está em todas as festas para que é convidado, distribuindo o vinho generoso, o cordial de sua palavra, que é banho de nardo no corpo do mendigo e agno do Cenáculo ao espírito das crianças.

O Ministro da Guerra faz recolher a quartéis o Exército, que se viu obrigado a vir à praça pública reclamar como cidadão o que o seu patriotismo lhe impediu que exigisse como soldado: o respeito pelo seu brio e pelo seu direito.

Certo de que está salvando a pátria e de que ela bem merece o sacrifício de conveniências efêmeras, o Ministro enche a fé de ofício dos heróis com as repetidas provas de confiança do governo; faz-se no poder o órgão da opinião que cercou com o seu prestígio os perseguidos da véspera.

O que será este país amanhã, quando o que hoje surpreende for a norma de procedimento dos governos e do povo? Quando extinta a recordação do cativeiro, cada cidadão entender que ele é tanto maior quanto mais respeitar no direto de outrem o seu direto e o direito de todos?

Temos o olhar alongado sobre esse amanhã que vem rápido, vertiginosamente e que, entretanto, afigura-se à nossa ansiedade lento como o desdobrar de um século.

Bate-nos novamente o coração, perguntando-nos no pensamento se é com efeito verdade que dentro em poucos dias uma senhora vai comparecer perante a assembléia de um povo não para impor, mas para pedir e conquistar, como a tímida Ester, piedade para os milhares de desgraçados, os filhos de uma raça que foi degradada por haver contribuído tanto como qualquer outra para a grandeza de sua pátria.

Sabemos que a promessa de homens de bem é a antecipação da realidade, e entretanto temos ainda essa incredulidade fugitiva que nos provoca o bem muito maior do que esperávamos. E por isso mesmo perdoamos aos que não acreditam de todo, aos que julgam que amanhã havemos de chorar de despeito. Não há negá-lo: a corrupção havia minado tanto o país, que é quase impossível acreditar que se conservasse intacta uma porção do caráter completamente refratário ao contágio.

Demais, é melhor não esperar muito, para morrer de alegria recebendo tudo.

(Apud Páginas escolhidas, por João Ribeiro, tomo I, pág. 483, Rio, 1906.)

 

O CONDENADO

O seu nome era Manuel da Mota Coqueiro. Fora, havia três anos, um homem abastado, influência política de um município, um dos convidados indispensáveis nas melhores reuniões; agora não era mais do que um padecente resignado mas tido por perigoso e por isso espionado e guardado solicitamente pela força pública, enquanto que, olhado como um ente repulsivo, servia de pasto à curiosidade vingativa de uma sociedade inteira.

Com o andar vagaroso, porém firme, veio colocar-se no meio da clareira. Acompanhou o sacerdote, que em uma das mãos tinha um livro e na outra um pequeno crucifixo.

Aos lados desses dois homens inermes, viam-se o carrasco e oito soldados com as baionetas caladas.

Pairava sobre este grupo a solenidade da morte.

Alto, magro, com as faces escaveiradas e ictéricas, marcadas por uma grande mancha arroxeada, as pálpebras entrecerradas, completamente brancos os compridos cabelos, as sobrancelhas extremamente salientes e espontadas, e as barbas longas de sob as quais lhe pendia de volta do pescoço até a cinta, em torno da qual se enroscava, o baraço infamante: Mota Coqueiro tinha mais a aparência de um mártir do que a de um celerado.

Cruzados sobre o peito os braços algemados, a cabeça inclinada, os olhos fitos no chão, imóvel no meio daquela multidão agitada, que se colocava nas pontas dos pés para melhor fitá-lo, o seu porte solene, a compostura evangélica do seu semblante faziam pensar ou na mais requintada hipocrisia, ou no mais inexplicável dos infortúnios.

Ao lado desse rosto, cuja expressão fora amortecida pela desventura, - contraste enorme, - aparecia o carão negro, estúpido e truculento do carrasco, surgindo de sob o gorro vermelho como um vômito fuliginoso da garganta de uma fornalha.

Fuzilava-lhe nas feições o garbo bestial do crime.

Com a mão esquerda colocada à ilharga e arqueado o braço seminu, espraiava pela mó de basbaques, meio aterrorada, o olhar sanhudo, coado através de umas pupilas negras, borradas numa córnea injetada de sangue.

Pelas narinas carnudas e achatadas, a sua boçal ignorância aspirava com o ar o alento necessário aos seus instintos de fera.

Após eles vinham o juiz municipal, revestido com a toga de magistrado, e o escrivão, trajado de preto.

Uma linha de praças fechava o préstito funerário.

O silêncio, instantes quebrado, foi para logo restabelecido e dentre ele só partia o soar agoureiro da campa, tangida a badaladas espaçadas, quando o porteiro começou a apregoar em voz alta a sentença pela qual Manuel da Mota Coqueiro era condenado a sofrer a pena capital, por ser mandante dos assassinatos de Francisco Beneditino, sua mulher e seis filhos.

Ao termo da leitura, soaram os tambores e as cornetas uníssonos com o badalejar lúgubre da campa, e o préstimo desfilou.

Então, à semelhança de uma floresta que é tomada de assalto por um tufão e, ao passo que se retorce e anseia, desfaz-se em sussurros e farfalhos prolongados, o povo, movendo-se para acompanhar os personagens da medonha tragédia, enchia o espaço de um ruído confuso.

Era como ouvir-se ao longe o roncar de uma cachoeira.

Alguns mais exaltados negavam-se à súplica que lhes era dirigida pelos caridosos irmãos da Misericórdia.

Desse número era uma velha que, tendo um dos braços passado ao redor da cintura de uma rapariguinha morena, de olhos esbugalhados e boquiaberta, via passar o préstito, parada a um dos cantos da Praça Municipal.

A darmos crédito aos muxoxos que provocava aos vizinhos, a feia da velha era uma dessas beatas impertinentes que não se importam de incomodar aos mais, contanto que elas não sejam ao de leve prejudicadas nos seus com modos.

 Quando Coqueiro lhe passava por defronte, a velha, enrugando ainda mais as enregilhadas pelancas, que outrora tinham sido faces, taramelou para a companheira:

 -Olha aquele pedaço de malvado; vai ali que parece um santinho. Credo! Que mal encarado!

- Oh! Nhãnhã, coitado, vai tão triste!

 - Cala a boca, tola, resmungou a velha, ao passo que apertava um pouco mais o polegar e o indicador na cinta da pequena. - Ter dó dele, te arrenego, tinhoso; é pena que o malvado não tenha no pescoço tantas vidas quantas arrancou, para espirrarem-lhe todas nas unhas do carrasco. Deus lhe perdoe, mas está se vendo mesmo que foi ele.

 - Ui! - exclamaram noutro grupo. - Que carrasco tão feio, meu Deus!

- Oito mortes, oito, entre velhos e crianças, a vida dele só não paga. Eu, cá no meu pensar, entendo que se devia fazer o mesmo à família dele, para que ele soubesse se era bom!

- Deus te perdoe, Deus te perdoe! - escapava mais adiante ao anônimo popular.

E o préstito caminhava, parando, porém, a todas as esquinas para dar lugar à leitura da sentença.

De cada vez que o préstito parava, ouvia-se um como cicio partido dos lábios dos sacerdotes e do condenado.

Uma dessas vezes, puderam-se distinguir algumas das palavras segredadas pelo ministro de Deus:

- Confesse toda a verdade, irmão, purifique a sua consciência na hora de comparecer perante Deus.

 - Repito, meu padre, não mandei fazer tais assassinatos.

E duas lágrimas tardas e volumosas, dessas que só os hipócritas confessos ou os desgraçados sabem chorar, escorregaram pelas faces cadaverosas do padecente.

Ora envolvido no rufo rouco dos tambores, ora atravessado pelo badalejar da campa e pelo clangor das cornetas, o préstito seguia vagarosamente pelas ruas mais concorridas da cidade, até parar em frente à igreja, onde o pregoeiro, em alta voz, leu ainda uma vez a sentença irrevogável que devia manchar na cabeça de um homem o nome de toda a sua família.

Parte do préstito já estava dentro do templo: algumas das sentinelas, que custodiavam mais de perto o réu, já transpunham o limiar, quando um incidente inesperado veio pôr em alarme todos os circunstantes.

Um homem desconhecido, com as faces macilentas, o olhar esgazeado, as vestes em desordem, e entretanto, revelando pelo seu traje, pelo próprio desespero, ser um cavalheiro, rompera à força uma das alas de praças e viera colocar-se em meio do préstito.

Agarrado pelos soldados, debatia-se nas suas mãos, exclamando:

 - Deixem-me falar; deixem-me falar!

Os pulsos vigorosos dos agentes puseram-no fora; mas ele, sem conter-se, prosseguia, dizendo:

 - Deixem-me falar ao sr. Juiz. Deixem-me! Eu sei...

É fácil imaginar a confusão que nesse instante reinou no interior do templo. Os espectadores redemoinhavam, gesticulavam, apertavam-se em estreito círculo em torno do desconhecido. Este, vencendo a onda popular, pôde de novo aproximar-se da ala e caminhava em direção ao magistrado, quando parou repentinamente.

O sentenciado, os cabelos eriçados, a pele pergaminhada do rosto e os lábios contraídos, meio erguidos os braços algemados, fitava no desconhecido um olhar profundo, em que se misturava a súplica e a repreensão.

 Todos pasmavam. O desconhecido, como se fosse instantaneamente petrificado, não deu mais um passo; a cabeça pendeu-lhe como que humilhada, ao passo que as lágrimas lhe corriam em fios.

O juiz ia talvez ouvir o desconhecido mas, ao passar pelo sentenciado, este, dirigindo-se ao sacerdote, murmurou:

 - Peça que o deixem ir. É um homem de bem; estima-me; queria talvez dizer-me na hora da desgraça algumas palavras de consolo.

O préstito continuou a entrar no templo. Ninguém buscou interrogar aquele homem que soluçava, encostado à porta principal da igreja. Respeitou-se-lhe a dor, porque ela mostrava ser bem profunda e filha de um sentimento generoso.

A tropa descansou as espingardas, enchendo o recinto sagrado do barulho produzido pelo choque das coronhas no assoalho.

O setenciador ajoelhou-se e os seus lábios começaram a ciciar uma prece, e o sacerdote, que desde o incidente empalidecera ainda mais e tomara um ar ainda mais contrito, ajoelhou-se também.

Ao mesmo tempo o povo que enchia o recinto começou a separar-se, abrindo fileiras. Era o desconhecido, que, trôpego e banhado em lágrimas, deixara a porta e caminhava em direção à capela-mor.

Chegado junto do altar, curvou os joelhos e deixou pender a cabeça sobre os seus frios degraus.

Comovido por esta cena, o sacerdote, inclinando-se para o padecente, disse-lhe, como se desejasse não ser ouvido por mais ninguém:

- Há entre vós ambos um segredo sagrado; eu não o quero perscrutar. Resta-me apenas absolver-vos, meu irmão, em nome de Deus.

- Oh! obrigado, exclamou o sentenciado, que não pôde mais conter as lágrimas e fitou os olhos amortecidos na imagem silenciosa do Cristo.

As seis luzes da banqueta do altar-mor, meio ofuscadas pela claridade do templo, cobriam de tons sangrentos a lividez do Homem do Calvário. Dir-se-ia que se trocava um misterioso olhar de inteligência entre os dois sentenciados e que os seus corações conversavam na lutuosa intimidade de um inaudito sacrifício: tamanha era a expressão do semblante do réu e tão animadora a atitude do divino mártir. Entre eles estava baqueada a coragem do desconhecido, completando a desolada trindade de um martírio inenarrável.

Coisa singular! desses sofrimentos, o que parecia mais sereno era o do moribundo, que de vez em quando levantava os braços algemados para embeber o pano da alva nas lágrimas perenes.

 A impressão produzida por este quadro sombrio parecia ter apiedado a multidão, que se mantinha em sincero recolhimento.

Algumas pessoas, visivelmente comovidas, diziam já:

- Há uma voz que me diz que o Coqueiro não foi o autor dos assassinatos.

A isto objetavam outros; mas a maneira pela qual o faziam, as palavras de que se serviam, eram muito mais comedidas.

Para o desventurado estava, porém, marcado o destino, e apesar das inocentações de uns e das acusações de outros, dentro em pouco ele devia desaparecer do número dos vivos.

[...]

O sentenciado chegara junto ao patíbulo.

Para ajuntar a ironia à malvadeza, uma bandeja com alguns pratos cheios de confeituras, um cálice e uma garrafa de vinho generoso foram apresentados ao preso como símbolo da solicitude social e da máxima e indizível piedade que vem cevar a vítima antes de imolá-la.

O réu voltou nobremente o rosto à injúria açucarada dos seus matadores e, ou fosse pela dor que essa afronta lhe causasse, ou fosse pelo terror inspirado pela vizinhança do patíbulo, os joelhos vergaram-lhe e teria baqueado se não fosse arrimado pelo sacerdote.

Não longe deste grupo, uma face negra de mulher banhava-se em pranto copioso. Era o protesto de uma raça contra o procedimento de um de seus membros, porque ao passo que a boa da preta chorava, o carrasco esvaziava um cálice do vinho rejeitado pelo condenado, e apreciava-lhe o sabor, dando estalinhos com a língua.

Despertado da prostração, revivido do desânimo pelos soluços da comiseração espontânea daquela mulher, o réu cobrou de novo forças e voltou-se para a lacrimosa, dizendo:

 - Chora, minha filha, porque eu morro inocente.

Para abafar a voz do condenado, as caixas marciais rufaram prolongadamente e fez-se sinal ao carrasco para começar a sua missão.

O monstro apertou ainda mais o braço do lívido padecente; puxou-o para si em direção à escada e, colocando-se depois por detrás dele, fê-lo subir os degraus da forca.

Em baixo, os irmãos da Misericórdia e os sacerdotes reunidos em torno da cruz, puseram o seu estandarte em posição de cobrir o sentenciado, caso rebentasse a corda.

Era uma vã esperança: a corda fora especialmente mandada por uma autoridade elevada da província, e os abusos da própria confraria inutilizavam a sua intervenção a favor dos infelizes votados à morte infamante.

O carrasco e o réu tinham chegado ao tablado. O pregoeiro lei pela última vez a íntegra da sentença que condenava à morte e às multas da lei o réu Mota Coqueiro, mandante dos assassinatos de Francisco Benedito da Silva, sua mulher e um filho de dezoito para dezenove anos, duas filhas maiores de quatorze, duas maiores de sete e uma de dois para três anos e, finda a leitura, o magistrado ordenou ao carrasco o cumprimento do seu dever.

O negro instrumento da morte, depois de conchegar à cabeça encarapinhada o gorro vermelho e experimentar com violentos puxões a segurança das algemas do preso, tomou-lhe o capuz, que lhe pendia nas costas, e com ele cobriu-lhe o rosto. Passou a desenroscar a corda da cintura do padecente e ajustar-lhe o baraço ao pescoço. Feito isso, conduziu o desventurado para uma pequena escada posta entre o tablado e a trave; assentou-o em um dos degraus, e foi prender a corda em dois ganchos de ferro pregados no alto do patíbulo.

Escarranchando-se na trave, ágil, inclinou-se e, segurando-se nela com um braço, com o outro empurrou violentamente o padecente, tirando de improviso a escada de sob ele.

 O sentenciado ficou suspenso pela corda, esperneando, agitando os braços amarrados e balouçando como enorme pêndula.

Em um dos vaivéns dados pelo corpo do sentenciado, os pés do carrasco alcançaram os ombros daquele.

Colado um pé sobre cada ombro, o monstro carregava sobre o moribundo e impelia-o em largos balanços.

Durante toda esta cena que aterroava os mais exaltados, o negro executor ria a sua fereza através de uns lábios grossos e roxos.

Talvez sentisse nesse momento a satisfação de Quasímodo quando se bamboleava no espaço, agarrado às orelhas do sino grande da Notre Dame.

Esta cena durou o tempo imenso que duram sempre as cenas horrorosas, minutos que parecem horas.

A um golpe dado na corda, o corpo do sentenciado bateu em cheio no tablado e o carrasco veio, de um salto, colocar-se sobre ele, carregando-lhe com a mão sobre a boca.

Estava desafrontada a sociedade. Rufaram os tambores, cangloraram as cornetas e o carrasco desceu para recolher-se de novo à fermentação silenciosa dos seus ruins instintos. A confraria desfilou precedida pela sua bandeira e fechada pela cruz, onde a cabeça descorada do Cristo parecia ter-se inclinado ainda mais. É que, desfeiando-a, na história da humanidade redimida negrejava mais uma iniquidade.

Uma hora depois, a praça do Rocio e as ruas principais de Macaé estavam completamente vazias e a cidade recaía no seu silêncio habitual.

 No tablado do patíbulo viam-se, porém, quatro homens vestidos de luto e, com um sincero recolhimento, colocavam dentro de um caixão mortuário o cadáver do justiçado.

Eram os amigos de Mota Coqueiro que tinham obtido da justiça, para dar a uma cova, os restos que ela daria à vala comum.

O desconhecido, que era um dos quatro que seguravam nas argolas do caixão, ao pousá-lo na beira da cova, disse para Seberg, que chorava:

- Foi um homem de bem às direitas; e se alguns erros cometeu, o último ato de sua vida paga-os de sobra.

(Mota Coqueiro ou A pena de morte, 1877.)