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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Raimundo Magalhães Júnior

Contaram-me que uma velha mãe-de-santo, com a gaforinha já branquejando, tendo aprendido, além dos pontos de Umbanda algumas artes de ciganos, leu um dia a vossa mão, num terreiro da  Cidade de Salvador, e vos disse com a solenidade cabível no ritual de grandes revelações:

Meu filho, esta linha aqui diz que você vai andar fardado que nem um general, com uma espada dependurada na cintura... General? Não é não... O peito está cheio de dourados e além disso o chapéu é de almirante! um negócio meio esquisito, lá isso é. Mas é bonito como quê. Meu filho vai ficar um princês!

Contaram-me também, Sr. Jorge Amado, que a vossa primeira reação foi um sorriso e um dar de ombros, duas expressões de um mesmo ceticismo. Que farda estranha seria aquela? Sendo Pacifista, não poderia ser, é claro, uma farda de almirante por mais que ameis o mar e os  seus mistérios. Uma farda de embaixador? Uma farda de acadêmico? Ou as duas? Talvez tenhais esquecido as interrogações que vós mesmo fizestes, depois do primeiro impulso de incredulidade. Mas hoje vedes que a profecia está se cumprindo muito naturalmente e que nada tinha de assombroso!

Na verdade ela começara a cumprir-se desde os vossos dez anos, na hoje célebre cidade de São Jorge de Ilhéus, então um burgo modesto e quase esquecido, por ainda não ter sido escrita a sua saga tumultuosa e apaixonante. Foi naquela tenra idade que revelou o vosso amor às Letras, com o jornalzinho A Luneta, de circulação limitada à própria família e aos vizinhos. A Luneta, ao mesmo tempo noticiosa, crítica e literária, teria em breve a circulação, quando o seu redator-calígrafo, no ano de 1923, se viu colhido nas malhas de uma irrevogável decisão paterna: o velho João Amado de Faria decretara a vossa ida para Salvador e o compulsório internamento no Colégio Antônio Vieira, dos Padres Jesuítas. Nesta, que foi a vossa primeira prisão, chegastes com todo o ardor de um bom católico e foi isso, talvez, o que vos credenciou a particular estima do Padre Luís de Gonzaga Cabral, grande orador sacro, fugido do “jardim da Europa à beira-mar plantado”, quando aí se instaurou a República, não só leiga, mas até mesmo, a princípio, anticlerical. Foi este jesuíta de talento, mestre da língua, muito versado em Letras profanas, quem descobriu logo a vossa vocação literária e a estimulou por todos os meios e modos. A decoberta se deu quando, numa aula de redação, vós e os vossos pequenos colegas recebestes como tema “O mar”. Enquanto outros meninos se limitavam a algumas linhas toscas e laboriosas, repetindo compêndios geográficos e vendo o mar como uma simples massa de água salgada, ou um pedaço de oceano aprisionado, vós o descrevestes como um poeta descreveria o grande mar sonoro e caprichoso, o imenso mar, o mar fascinante, que seria futuramente alguma coisa de essencial – cenário e personagem – em quase toda a vossa obra. Com a vossa descrição, conquistastes naquele padre português, tão diferente do Padre Amaro e do Padre Soeiro de Eça de Queirós, o vosso primeiro entusiasta. Ele foi, para vós, o que o padre mestre Silveira Sarmento foi para Machado de Assis, ou mais até. Suas aulas de português não se limitavam à gramatiquice caturra, às regras decoradas de Gonçalves Vieira ou Cândido e Figueiredo. Iam a leituras constantes dos clássicos portugueses. Adquiristes intimidades com Frei Luís de Sousa e viestes, por fim, até ao dramatizador de sua vida, esse delicioso Almeida Garrett. Dono de uma biblioteca eclética, o bom padre luso vos emprestou livros e mais livros. Graças a ele devorastes os romances épicos de Walter Scott, escocês admirável que se orgulhava de ter sido a glória que foi sendo neto de um simples ladrão de gado. Passastes depois a Jonathan Swift, gênio da sátira, irmão espiritual de Rabelais. E por fim chegastes a Charles Dickens, o pintor das misérias londrinas, que fez a Rainha Vitória chorar copiosamente quando, no isolamento dourado de seus palácios reais, por traz da cortina de ferro do aulicismo aristocrático, ficou sabendo que na sua orgulhosa Inglaterra dos milhões de teares, poderosamente industrializada, havia gente que gemia de fome e pessoas que desde a infância eram escravizadas pelos proprietários das grandes fábricas, num regime de doze horas de trabalho por dia. Seria esta, a Dickens, pai de David Cooperfield de Oliver Twist, de Barnaby Rudge, uma das influências que ficariam no vosso espírito e nas vossas Letras.

A princípio fostes um excelente colegial. Mas quando as leituras incendiaram a vossa imaginação passastes a ser péssimo estudante. Entrastes abertamente em conflito com o vosso colégio e um dia, em 1925, dele fugistes, com apenas 100$000 no bolso, e atravessastes todo o sertão do norte da Bahia, até alcançardes a casa do vosso avô, em Sergipe. Quando voltastes foi para recomeçardes os vossos estudos no Colégio Ipiranga, do Professor Isaías Alves de Almeida, onde tivestes como colegas o hoje romancista Adonias Filho e os irmãos Vieira de Melo. Em 1927, aluno externo, fizestes a vossa iniciação no jornalismo profissional, primeiro no Diário da Bahia, depois no O Imparcial. Experimentastes um grande entusiasmo pela vida de imprensa e juntastes, à mesada paterna os vossos primeiros dinheiros ganhos com a pena. Aqueles 90$000 de ordenado vos davam uma viva sensação de independência e uma extrema confiança em vós mesmo.

ENCONTRO COM O MODERNISMO

No ano seguinte, em 1928, dá-se o vosso encontro com o Modernismo literário brasileiro. É quando começais a ler Osvald de Andrade, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e outros cujos nomes e obras só então começavam a repercutir na vossa Bahia. Dois grupos literários se haviam formado na capital da velha província: o dos anti-retóricos, numa reação ao verbalismo torrencial que a opulência da linguagem de Rui Barbosa exacerbava, grupo esse liderado por Carlos Chiacchio, com Eugênio Gomes, Herman Lima, Pinto de Aguiar, Godofredo Filho, Carvalho Filho, Hélio Simões e outros, e o grupo do velho poeta Pinheiro Viegas, epigramista destabocado, epicurista e cético que fizera de Rimbaud o seu deus, zombava das religiões e das Academias. Companheiro, outrora, de Coelho Cavalcanti, Lima Barreto, Agripino Grieco, Raimundo Magalhães e outros matamouros da imprensa panfletária, feroz com os medalhões mas benévolo com os rapazes que se iniciavam nas Letras, gozava ele, na Bahia, a aposentadoria de modesta função na administração do Cais do Porto do Rio, ao mesmo tempo que crivava de farpas e sarcasmos os figurões da vida pública e das Letras baianas. Na sua pobreza orgulhosa e na sua altiva independência, esse homem de muitas e boas leituras fascinava um grupo de jovens, a que pertencíeis vós, Édison Carneiro, Sosígenes Costa, Dias da Costa, Clóvis Amorim, João Cordeiro, Alves Ribeiro e outros, quase todos com alguma coisa de importante a dizer em dias futuros. O mundo que este pobre e quase esquecido Pinheiro Viegas influi sobre a vossa formação vós mesmo o reconhecestes tomando-lhe por empréstimo uma epígrafe e inscrevendo-lhe o nome na dedicatória de um dos mais belos dos vossos livros.

Não sei que opinião teria ele formulado a respeito de um romance, que em 1929 escrevestes, com vossos amigos Edison Carneiro e Dias da Costa, para publicação seriada em O Jornal, órgão da Aliança Liberal da Bahia. Romance que se chamava Lenita de que foi, depois, tirado um voluminho, de capa colorida, assim no estilo atualizado de Elzira, a morta virgem. Mas, conhecendo-lhe o espírito irreverente, imagino que é bem capaz de ter dito:

“Nunca se juntaram tantos para fazer tão pouco e tão ruim.” Aquele pecado da mocidade foi repudiado pelos três autores, envergonhados e arrependidos. Nada liga tanto os homens como um crime praticado em comum, mas há de ser outra a razão da amizade que vos liga àqueles dois colaboradores, já cercados do vosso sincero e profundo afeto, quando sobrebreveio a pequena catástrofe.

O PRIMEIRO ROMANCE

Em 1930, com o curso de humanidade incompleto, estais no Rio de Janeiro, um pouco deslumbrado. De junho a dezembro todo o vosso empenho é adquirir os conhecimentos necessários para conquistar os certificados de Física e Química e de História Natural. Em outubro sobrevêm a revolução de Vargas. No meio daquele imenso regozijo cívico, exames. Basta requerer os certificados, de acordo com as inscrições processadas antes do decreto salvador. É com alívio que vos atirais à feitura de um novo romance, terminado rapidamente em poucos meses. Já sois então um dos mais jovens acadêmicos da velha Faculdade de Direito, e entre os vossos colegas estão Eddy Dias da Cruz, hoje o grande contista e romancista Marques Rebelo; Alvaro Cotrim, o Alvarus, que neste momento nos fala de D. Pedro I e do caricaturista Daumier; um mocinho que militava no Partido Comunista e em quem se refletiam a eloqüência e a passionalidade de Maurício de Lacerda; e um grupo de jovens escritores da direita – Almir de Andrade, Otávio de Faria, Hélio Viana e outros, que se encaminharam, quase todos, para o Integralismo. Nessa época, era ainda indeciso o vosso espírito. Estáveis numa encruzilhada, sem terdes escolhido a vossa direção. E o vosso primeiro romance, O País do Carnaval, reflete esse estado de perplexidade. Foi Otávio de Faria, a quem o deste a ler, que levou os originais a Augusto Frederico Schmidt, editor pobre e esforçado, acreditando então em livros com o mesmo fervor com que hoje acredita no desenvolvimento industrial do Brasil. Tivésseis escrito o vosso primeiro romance nos dias de hoje e, com todo o vosso talento, estaríeis condenado a ficar inédito, como hão de ficar, de Norte a Sul, dezenas de jovens escritores, se o governo atual não debelar de imediato a brutal crise do livro, mais atingido pela virulência das instruções cambiais do que o contrabando e quaisquer formas de especulação. A ocasião vos era favorável. Publicado o romance em 1931, grande foi a surpresa dos críticos: tivestes logo os aplausos até mesmo dos mais severos, a começar por Tristão de Athayde, hoje um dos vossos companheiros nesta Casa. E os de Medeiros de Albuquerque, que observou terem tanto o autor quanto o editor feito todo o possível para que o livro não fosse lido: o editor, dizendo tratar-se de um “romance filosófico” e o autor por ter perpetrado antes com mais dois cúmplices, uma Lenita que era uma pura abominação...

O romance do Nordeste não havia surgido, mas sim resurgido, vigoroso, em 1928. Com A Bagaceira José Américo de Almeida retomara a tradição interrompida com o desaparecimento de Franklin Távora e Domingos Olímpio. Em 1930, saíra O Quinze, revelação de uma nova e extraordinária escritora, Rachel de Queiroz. Lembro com especial emoção o seu nome, já honrado, nesta Casa, com a mais alta láurea, por ter sido em torno dela que, ao chegar ao Rio, já com as glórias do Prêmio Graça Aranha, se aglutinaram a certa altura, vários rapazes que então consideravam terrivelmente tímida e até ridiculamente tolhida nos seus objetivos a revolução de 1930. Foi então que vos conheci numa casa da Rua Redentor, muito acolhedora e burguesa, de uns tios de Rachel, onde nos reuníamos aos domingos para longas e inflamadas discussões, que não tardaram a provocar, como revide, a proibição ali da nossa entrada, logo depois de um comício esquerdista, dissolvido a bala e a borrachadas, e em que Rachel e as primas, de menor idade, foram truculentamente encanadas pela Polícia Política.

Pouco depois de vossa estréia, revelavam-se três outros gigantes da nossa prosa de ficção: José Lins do Rego, já poderoso e amadurecido com O Menino de Engenho; Érico Veríssimo, com Fantoches, apenas uma leve indicação do muito que poderia fazer no futuro; e Graciliano Ramos, com Caetés, não mais que um exercício para a depuração do estilo que se apresentaria sóbrio, denso e preciso em São Bernardo e em Angústia. O momento era de grande ebulição intelectual. Ecoavam em nosso meio o internacionalismo pacifista de Henri Barbusse e a adesão de Raomain Rolland à Terceira Internacional. Os nomes de Léon Trotzky, de Lenine e de Bukharin se tornavam familiares aos moços da vossa geração, como as de Karl Marx, Engels, Kroptkine, Jean Jaurès e Georges Sorel aos da geração anterior. Mas assim como havia quem outrora se empolgasse com as idéias de Nietszche, outros dos jovens de então se deixavam fascinar por Léon Daudet e Charles Maurras. As divergências ideológicas se prolongavam no campo literário. Em edições espanholas, chegavam às nossas livrarias obras que os nossos editores não teriam pensado em traduzir: Petróleo, do socialista norte-americano Upton Sinclair: O Don corre para o mar, do russo Mikhail Sholokov; Paralelo 42 e 1919, de John dos Passos; A Derrota e A Inundação, do russo Alexandre Fadayev, sem falar nas obras-primas desse extraordinário gênio literário que foi Máximo Gorki, já correntes, no Brasil, em edições portuguesas do período pré-salazaresco.

Essas múltiplas influências contribuíram para dar aos nossos jovens escritores uma visão nova da vida e uma nova dimensão do Romance, atuando sobre eles tão poderosamente quanto o Naturalismo francês, levado por Émile Zola às últimas conseqüências, atuara sobre o talento sensível e maleável de Aluísio Azevedo, o primeiro a tentar, no Brasil, o romance social, com a notável experiência de O Cortiço.

Mas é mister que eu cite, ainda, dois escritores que, nessa época, também fascinavam a mocidade: o norueguês Knut Hamsum, laureado com o Prêmio Nobel, autor de Fome e Um Vagabundo Toca em Surdina, o norteamericano Michel Gold com um pequeno e impressionante livrinho, Judeus sem Dinheiro. Este viria juntar-se a Dickens, entre as vossas mais fortes influências, e elas transparecem desde logo em Suor, o vosso terceiro romance da Bahia.

PROIBIÇÃO DE CACAU

Antes deste escrevestes Cacau, publicado pela Ariel Editora em 1933. Foi o primeiro dos vossos livros a merecer as atenções da Polícia que intimou as livrarias a sustar-lhe a venda. Iam já mandar buscá-lo no depósito da pequena empresa de Gastão Cruls, Agripino Grieco e Mânlio Giudice, quando Cláudio Ganns, espírito liberal e amigo de Osvaldo Aranha, levou o autor e um dos editores à presença do poderoso Ministro. Com um telefonema enérgico ao Chefe de Polícia e outro ao delegado de Ordem Política e Social, Osvaldo Aranha conjurou a apreensão, contra a qual, com grande veemência protesta em nome da liberdade de criação literária o vespertino O Globo. Nada de melhor poderia ter acontecido ao jovem autor, pois a primeira edição, de dois mil exemplares, se esgotou em apenas quarenta dias, saindo logo a segunda, de três mil, depressa também consumida. Era o romance que vos daria passaporte internacional, sendo imediatamente traduzido e editado na língua russa, em Moscou. Vieram depois dois dos vossos maiores romances, Jubiabá e Mar Morto. Em 1937, quando o Integralismo alçava o colo, a prudência vos aconselhou a deixar o Brasil. Partistes para a Argentina, com uma parte do manuscrito de Capitães de Areia na mala e fostes escrevendo, depois, à medida que subíeis a costa do Pacífico a bordo do Rakuyo Maru. Escrito de maio a junho, lançou-o José Olímpio naquele mesmo ano, a tempo exato de ser colocado na grande fogueira em que, na capital da vossa província foram queimados como malsãos os vossos livros juntamente com os de José Lins do Rego, Gilberto Freyre e outros.

VIAGENS E LIVROS

Percorrestes todas as Américas, inclusive os Estados Unidos, então de fronteiras abertas, sem medo e sem restrições, terra ainda Franklim Delano Roosevelt, não terra de Mac Carthy. Ao voltardes, fostes preso em Manaus. Prisão breve, porque não sabiam bem o que haveriam de imputar-vos, a não ser o crime absurdo de ter talento. Nada podendo editar no Brasil, depois daquele auto-da-fé, deixastes, pela segunda vez o país, em 1941, já então decidido a um protesto que tomou a forma de uma biografia do homem cujo nome não podia ser sequer mencionado perante o Estado Novo. A publicação em espanhol da vida de Luís Carlos Prestes sob o título de O cavaleiro da Esperança era algo de intolerável, tratando-se de um inimigo do regime atirado ao fundo de um cárcere pelo famoso Tribunal de Segurança Nacional. Um processo contra vós foi iniciado em vossa ausência e isso então equivalia a um decreto de desterro. Ficastes impedido de voltar ao Brasil, mas ao entrar o país na guerra, cruzastes a fronteira do Rio Grande do Sul, no mês de agosto de 1942. Preso em Porto A1egre fostes solto no fim do mesmo ano, mas ficando obrigado a residir na Bahia. Vossos livros só recomeçaram a sair no ano de 1943, com o lançamento de Terras do Sem Fim. É verdade que pouco antes, em 1941, saíra a primeira edição do ABC de Castro Alves, mas quase clandestinamente, comprometendo-se o editor Martins a não expô-la nas livrarias. Na Bahia, voltastes a trabalhar em O Imparcial enquanto escrevíeis vossos novos romances. De lá só saístes em 1945, para aquele memorável 1.º Congresso Brasileiro de Escritores, na qualidade de presidente da delegação baiana. Eleito vice-presidente do Congresso, lá ficastes e, com a queda da Ditadura, concorrestes à eleição para a Assembléia Nacional Constituinte, sendo eleito deputado federal por esmagadora votação. Durante os anos de 1946 e em 1947, exercestes o vosso mandato, cassado em janeiro de 1948. Embarcastes então para a França, onde desde 1937 tinham começado a circular vossos livros. Em 1946, aliás, tinha o romance Seara Vermelha saído no folhetim Lettres Françaises. Convosco iam Zélia, companheira e musa, um filho pequenino, os desenganos políticos e as saudades da Bahia. Em Paris não tardais a vos ligar a algumas personalidades ilustres: Jean-Paul Sartre, Louis Aragon, Paul Éluard, Pablo Picasso, Fernando Léger, Roger Vailland e um jovem intelectual negro Léopold Senghor, que é hoje Presidente da República do Senegal. Viajastes muito pela Europa e, por fim, vos fixastes em Praga, espécie de Recife brumosa, e aí às margens do Moldávia, celebrado nas imortais canções de Smetana, nasceu a vossa filha, a adorável poetisa Paloma. Aí escrevestes O Mundo da Paz, que teve o prêmio Stálin, e vivestes os anos de 1950, 1951, 1952.

A curiosidade e espírito errante vos levaram a novas viagens, não só pela Europa, como pelo norte da África e por uma parte de Ásia. Enquanto isso escrevíeis Os Subterrâneos da Liberdade, que terminastes em 1954. Vosso retorno ao Brasil foi retardado por instauração de um processo, este baseado na publicação de O Mundo da Paz. Dois advogados deviam nele atuar, Alfredo Tranjan, na fase preparatória, e João Mangabeira na defesa oral. Mas não foi preciso concurso deste eminente jurisconsulto, porque um juiz inteligente determinou o arquivamento do processo ao sentenciar: “O livro não é subversivo, é apenas sectário.”

O ESCRITOR E O POLÍTICO

Vossa carreira literária é marcada por duas fases distintas: uma, aquela de militante político, em que ao lado das obras de ficção, ladeadas de intenções ideológicas, mas animadas por um largo sopro poético, figuram também as obras de circunstância, quase com um caráter de tarefas de partido, já excluídas de vossas obras completas. Outra, a que iniciastes há três anos ao escreverdes uma das vossas obras máximas, Gabriela, Cravo e Canela, e continuastes, agora, em Os Velhos Marinheiros. Aí já não aparecem as marcas ostensivas da pregação doutrinária, não se acusa a forte intenção de fazer proselitismo. O político cede lugar ao poeta. O admirável contador de histórias, que vós sois, chega aos mais altos cimos da virtuosidade literária, paira nas regiões a que só ascendem os grandes espíritos.

Entre as muitas ilusões da vossa vida, tivestes uma vez a de pensar que, de O País do Carnaval a Capitães de Areia, havíeis esgotado os mananciais da vossa inspiração regional e que nada mais tínheis a acrescentar sobre a vossa Bahia. Mas em vão destes por encerrado, com os seis primeiros romances, “o ciclo da Bahia”. Depois desse encerramento é que vieram Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus etc. O veio de ouro era persistente como o da mina de Catas Altas: quando parecia esgotado aí então é que, ao menor esforço, afloraram novas e rutilantes pepitas de um fantástico tesouro. Tivestes a fortuna de nascer num Estado de amavios e seduções irresistíveis, em que se depuraram os sentimentos de cordialidade humana no convívio fraternal das raças e no próprio sincretismo religioso, aí não medrando nem preconceitos de sangue, nem preconceitos de fé, nem racismos, nem ortodoxias. Tivestes ainda a fortuna, Sr. Jorge Amado, de ser fiel intérprete desse mundo colorido e pitoresco, dessa geografia física e humana sem igual no Brasil ou no mundo. A vossa pura baianidade, Sr. Jorge Amado, é o segredo da vossa universalidade.

Quando publicastes os vossos primeiros romances, havia quem falasse na vossa fluência de estilo para qualificá-la de torrencialidade. Não éreis, propriamente, um artista, mas uma “força de Natureza”, admirável, sem dúvida, mas indisciplinada e turbilhonante. Convocai-os, agora, aos que falavam em “caudal impetuosa”, para que apontem os vossos excessos. A vossa prosa de hoje não poderia ser mais artística. Sabeis represá-la, dominá-la, submetê-la à disciplina, mantê-la no nível exato, através de eclusas que ligam o fantástico com o real, o poético com o prosaico, do mesmo modo que ao rigor da técnica as sucessivas comportas do Canal de Panamá ligam o Atlântico ao Pacífico. Vêde aqueles diálogos de Vanda com o pai defunto na obra-prima que é a primeira história de Os Velhos Marinheiros. Só há um exemplo de fusão do real e do irreal, tão bem realizado em nossa Literatura: a conversa de Evaristo com o retrato da antiga namorada, no conto “Mariana”, de Machado de Assis.

A ACADEMIA SEM PRECONCEITOS

Sr. Jorge Amado! Não deveis a vossa eleição para esta Cadeira apenas aos membros desta Academia. É certo que a deveis a vós mesmo e à vossa obra realizada ao longo de trinta anos de intensa atividade literária. Mas não a deveis menos aos vossos confrades que não fazem parte do vosso cenáculo. Nenhum dentre eles ousou concorrer convosco e deles recebestes também a consagração unânime, inclusive daqueles que, por motivos de ordem política, de oposição ideológica, de convicção doutrinária, pudessem ter contra vós reservas de natureza pessoal. Por sua vez, a Academia Brasileira de Letras honrando-vos com o seu voto unânime, honrou a si mesma pela atitude e exemplaridade de sua conduta. Homens de formações e tendências as mais diversas usaram o mesmo critério imparcial e isento para a aferição do vosso valor. Mas não surpreende que assim seja a nossa Academia. Desde o seu início, aqui repercutiam vozes sábias que nos aconselhavam a buscar a unidade literária na diversidade dos pensamentos. Joaquim Nabuco, em seu primeiro discurso de secretário geral, disse estas palavras que é muito oportuno lembrar neste momento:

Já tivemos a Academia dos Felizes; não seremos a dos incompatíveis, mas na maior parte das coisas não nos entendemos. Eu confio que sentiremos todo o prazer de concordar em discordar; essa desinteligência essencial é condição da nossa utilidade, o que nos preservará da uniformidade acadêmica.

Esta Casa provou, com a vossa eleição, que é limpa de preconceitos políticos e que nela cabem homens de todas as crenças e opiniões. Assim, é fiel às suas próprias origens. No momento exato em que ela foi constituída, mal haviam cessado as terríveis lutas que, a partir de 1893, se estenderam do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul, e no vosso glorioso Estado, Sr. Jorge Amado, troavam os canhões da legalidade na luta de Canudos, “loucura e crime da nacionalidade”. Naquela hora trágica em que eram empastelados os jornais suspeitos de sebastianismo e em que eram caçados a bala, em plena rua, supostos agentes monarquistas, formou-se a Academia Brasileira de Letras, como um modelo de equilíbrio e boa convivência entre os escritores das mais diversas tendências.

Dela faziam parte republicanos extremados como Lúcio de Mendonça, Medeiros e Albuquerque, Graça Aranha e o ex-ministro do Governo Provisório, Rui Barbosa, ao lado de monarquistas como Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, Carlos de Laet, Afonso Celso, Visconde de Taunay, o Barão de Loreto e o Velho Conselheiro Pereira da Silva. Ao lado de florianistas recentes, como Artur Azevedo, Coelho Neto, Medeiros e Urbano Duarte, formavam antiflorianistas como Rui, Olavo Bilac, Luís Murat, Guimarães Passos e José do Patrocínio. José Veríssimo explicou a união de homens de opinião tão diversificadas como tendo sido ditada por imperioso e necessário sentimento de solidariedade de nossa vida intelectual. E quem mais do que vós tem esse sentimento de solidariedade, sempre pronto a manifestar-se, nos congressos literários, na ação da União Brasileira dos Escritores, nas Feiras de Livros, em tudo quanto representa a negação dos egoísmos estéreis e das atitudes isoladas?

É, ainda, Veríssimo quem declara: “Uma Academia não é, não deve ser doutrinária; veda-lho a sua própria composição de homens de caracteres, opiniões, sentimentos, crenças diversas.” E acrescenta que, com o convívio, em certa altitude moral intelectual, essas diferenças tendem a diminuir, daí resultando um critério geral mais apurado. Antes de vos eleger, alguns membros desta Academia já haviam feito profissão de fé socialista: Lúcio Mendonça, Euclides da Cunha, Roquette-Pinto, Manuel Bandeira, Barbosa Lima Sobrinho, Álvaro Moreyra e alguém mais, que me escuso de nomear, mas a quem podeis ver sem que eu o veja. Mas nem antes, nem agora, fez a Academia um pronunciamento de ordem política. Não foi com intenção de vos converter que ela vos escolheu, senão para vos ter aqui tal como sois. Pesou na avaliação dos vossos méritos de candidato o exclusivo valor das vossas obras literárias, tão numerosas quão excelentes. Mas, para honra desta Academia, seja dito, não vos exigiu ela fosse repudiada uma só linha do que escrevestes, mesmo quando nelas se refletia mais o ardor do militante político do que mesmo o gênio do escritor.

CADEIRA 23

Sr. Jorge Amado,

A Cadeira em que agora vos sentais é a que melhor vos convinha; colocada sob o alto patrocínio de José de Alencar, o patriarca do nosso romance, ela teve como primeiro ocupante o incomparável autor de Dom Casmurro e das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Por ela passaram sucessivamente Lafaiete Rodrigues Pereira, Alfredo Pujol e Otávio Mangabeira, cujo elogio acabais de fazer, em palavras tão justas e tão eloqüentes. Destes três últimos, nenhum foi, como vós, romancistas. Com a vossa presença nesta Casa, a Cadeira 23 se reintegra no que parecia ser o seu destino inicial, mas de que, desde 1909, se desviara, por um conjunto de circunstâncias de fácil explicação e entendimento. Se é ao lado de José de Alencar e de Machado de Assis que estais situado pelo vosso talento de ficcionista e pela vossa capacidade criadora, não menos rica, forte e original que a dos gloriosos mestres de O Guarani e de Quincas Borba, nem por isso vos deixais de aproximar em alguma coisa dos vossos três outros antecessores. Quando as identidades não ressaltam propriamente da obra literária é porque se manifestam nas circunstâncias da vossa vida intensa e movimentada, de homem que nunca foi um acomodado, um passivo, um indiferente aos problemas, às crises e aos dramas do seu tempo.

Lafaiete Rodrigues Pereira geralmente nos aparece hoje sob a carapaça de grave conselheiro, do erudito jurisconsulto, do tratadista do Direito das Coisas e do Direito Internacional Público. A imagem barbilonga e austera que nos ficou do eminente estadista mineiro nos faz esquecer o terrível panfletário da Atualidade e de A Opinião Liberal e, mais ainda, o audacioso denunciador da insustentável ordem política e social do tempo do Império. Aos 36 anos de idade, já tendo presidido províncias ele se adiantava ao seu tempo e punha a assinatura no “Manifesto Republicano”, que proclamava a falência da Monarquia e pedia uma Constituinte para a aprovação de um novo regime. O gesto de 1870 marca-lhe significativamente a biografia sem embargo de ter sido ele posteriormente reconquistado pelo regime imperial, com as mais altas honras e proveitos; as funções de Ministro, Presidente do Conselho, Senador vitalício e Embaixador especial em Washington. Aos 36 anos de idade, que éreis vós, Sr. Jorge Amado? Se não me engano, o vosso nome figurava também em manifestos que ousadamente denunciavam a ordem social e política então vigente, cujas muitas iniqüidades, tão bem conhecidas, acrescenta-se em nosso tempo a ausência de tolerância. Mas é sem terdes retratado as vossas opiniões de ontem que entrais agora, para o nosso convívio na mesma Cadeira que pertenceu a Lafaiete. Com Alfredo Pujol, o primeiro a tentar fazer o levantamento da vida de Machado de Assis, tendes a afinidade de biógrafo. O escritor fluminense, que São Paulo adotou, fez louvação do patrono desta Casa, em sete conferências, do mesmo modo que fizestes, letra por letra a do mais amado poeta da Bahia no vosso ABC de Castro Alves. A diferença que vos separa, a ambos, no campo da biografia é, no entanto, enorme. Pujol, operário paciente e esforçado, limitou-se a lançar as fundações de monumento, trabalhando com pedra e argamassa. E, no caso de Castro Alves, encontrastes já preparadas as fundações e sobre elas modelastes, ao vosso modo, a efígie do grande cantor dos escravos, transmitindo-lhe com a vossa Arte literária um grande calor humano e uma poderosa sensação de vida. Como se tivésseis usado um telescópio mágico captastes o passado e transportastes, para perto de nós, como a sugestão da vossa prosa, por vezes tão ou mais poética do que própria Poesia do bardo condoreiro.

Não sei de quem, como vós, tenha infringido tão inteira e livremente as regras britânicas da biografia, ditadas por James Boswell e reeditadas contemporâneamente por Lytton Strachey, ressuscitador das notabilidades da época vitoriana. Em linguagem enternecida, sob a forma de narrativo a uma amiga misteriosa, Sulamita, cuja identidade constituirá problema para os que futuramente tentarão reconstituir a vossa vida, escrevestes algo de verdadeiramente novo em nossas Letras – um Cântico dos Cânticos de Castro Alves, uma biografia- balada, ou uma balada-biografia. É assim, com uma Arte consumada, que conseguis criar no leitor a empatia, o clima psicológico para aceitação da figura ao mesmo tempo lírica e heróica, romântica e revolucionária, do jovem poeta baiano. Nenhuma passagem dá melhor a idéia da técnica por vós tão eficientemente utilizada do que a introdução do capítulo correspondente à sexta letra do ABC:

Quem sabe, amiga, se aquele navio iluminado de mil lâmpadas elétricas, luzes que cortam a noite do mar, não parte para Recite, no país de Pernambuco? Tu estendes a tua mão e lanças um amplo adeus ao navio que parte. Respondem, são inúmeras mãos que acenam adeuses na noite do cais quase deserto. Boa viagem, desejamos nós ao barco que parte para a aventura sempre renovada da conquista dos caminhos do mar. Um dia partiremos nós também, daremos adeus para um casal que se ama nas areias do cais, à luz amarela da Lua. Iremos também, talvez, para esta cidade de Recife, de pontes e de holandeses. Têm uma linda cor os telhados de Recife, amiga, são amáveis e belas as pontes sobre os rios. Seu povo valente, de faca à cintura, anda em ruas que foram pisadas pelos pés dos maiores do nosso passado, Nabuco e Castro Alves, Rui Barbosa, Pompéia, tantos outros, sonharam nessa cidade os maiores sonhos do Brasil. Essa cidade viu Nassau, sua grandeza, sua fome de progresso. Abrigou judeus essa cidade que lhe rasgaram o comércio. Cresceu agitada e inconformista, heróica e com certo ar aventureiro e rebelde como não o possui nenhuma das nossas outras cidades. Recife tem uma legenda, seu clima é um clima de luta e de futuro. Antes que qualquer outra cidade do país, recebe, pelo mar que ela penetra, as idéias novas, os sonhos que logo depois serão realidade. E os acalenta no seu seio imenso de pedra. Dá-lhe o leito da inteligência dos seus poetas e sábios, dá-lhes o sangue dos seus heróis. Recife, a heróica, Recife, a das mil revoluções.

É assim que preparais o espírito do leitor para a chegada de Castro Alves, rapazinho de 15 anos, à cidade literária. Mas exagerais, exagerais muito, exagerais poeticamente em vossas contas. As revoluções de Recife não se contam por mil, nem mesmo por cem. Mas tendes razões quando dizeis que ali irromperam alguns dos mais nobres e generosos movimentos do Brasil. O sangue de mártires adubou, em solo pernambucano, a semente da Independência e a semente da República. E foi ali que irrompeu em 1848 a Revolução Praieira, fruto de desespero de um povo acuado entre o mar e os grandes latifúndios. Revolução memorável, que foi a primeira a colocar entre as tímidas reivindicações de um superficial liberalismo político o grave problema da reforma agrária. Problema que infelizmente, mais de um século depois, permanece o mesmo, sem se ter chegado, por via legislativa, a uma solução nacional, continuando o País habitado por milhões e milhões de joãos-sem-terra, com o mesmo irremediável e antigo desespero a gerar a nova Praia sob a forma das Ligas Camponesas, com este ardente Francisco Julião como um novo Nunes Machado, e com os latifúndios a reagir marcando homens a fogo, com a prestimosa colaboração da Polícia.

Tenhamos, porém, esperanças. Numa das suas Cartas da Inglaterra, a propósito de Carlyle, lembrou Rui Barbosa uma frase do Times, de Londres, sobre a rapidez com que os povos assimilam as mais ousadas reivindicações sociais e políticas: “As novidades e os paradoxos de 1846 constituíram, em larga escala, o bom senso de 1881.” Quer dizer, menor do que o período de duas gerações bastara para fazer frutificar na Inglaterra, aparentemente tradicionalista, muito do que antes parecera sonho vão, loucura de idealistas ou exigência de carbonários. Somos bastante mais tardos, no nosso processo de incorporação de certa ordem de conquistas, razão do nosso atraso cultural, da imensa vastidão territorial do Brasil e da nossa própria falta de coesão social, bem maior no passado que agora. E também da nossa precária educação política, responsável por certos equívocos que seriam divertidos se não fossem, antes, verdadeiramente trágicos. É ainda difícil, por exemplo, fazer penetrar na mentalidade refratária e eriçada de alguns brasileiros a idéia de que deve prevalecer, sob um regime democrático, a maior variedade de doutrinas e pensamentos políticos, estruturados organicamente em partidos. Há mesmo falsos doutores da Ciência política que em nome da perfeição democrática, ou do bom funcionamento do Legislativo, pensam até em eliminar de plano, os pequenos partidos, como já foi eliminado o que vos elegeu, para que reste, apenas, o oligopólio dos grandes, senão iguais, muito aproximados. Não haveria melhor caminho para a criação, no País, de um clima revolucionário, que só desaparece com o livre diálogo entre toda a espécie de facções. É bem verdade que os pequenos partidos de esquerda, minoritários, como são, poucos ou nada realizam, por si mesmos, sobretudo não tendo suas bancadas a possibilidade de participar da alta administração, num regime em que tudo depende da exclusiva confiança de um presidente com a prerrogativa de governar com as suas próprias idéias, ao sabor de tendências pessoais. Mas esses desdenhados partidinhos realizam muito através dos outros. E são, na verdade, um grande elemento de dinamização da vida parlamentar e política, colocando teses e problemas a que fogem os grandes partidos, ou que só relutantemente, sob pressão, acabam sendo por estes aceitas. No regime imperial, queixavam-se os liberais de que os conservadores lhes arrebatavam a bandeira de todas as generosas reformas, para realizá-las e assim se enfeitarem com penas de pavão para a corte ao eleitorado. O que foi verdade no tempo do Império se repete nos dias presentes, quando os partidos de centro, para não ficarem estigmatizados como retrógrados, adotam ou proclamam idéias que antes execravam. É bem verdade que o fazem às vezes por mero expediente, dando aos seus entusiasmos recentes um caráter alentador e protelatório, ou para atenuar, moderar ou mesmo inverter o sentido de certas teses. Mas, mesmo caminhando entre contradições, ao fim de algum tempo é evidente que se liberalizaram ou fizeram concessões não raro muito além do que se poderia honestamente esperar.

Ninguém tem feito mais, no sentido de tornar o Brasil consciente, solidário, coeso e progressista do que os seus escritores verdadeiramente nacionais, os que se identificam com as causas do povo, os que traduzem os anseios desse povo, ou a ele estão sólida e solidariamente ligados, os que lhe têm verdadeiro amor e dele se aproximam com mensagens de fraternidade, liberdade, esperança e paz. Cem, mil, dez mil ensaios críticos poderão sustentar a superioridade da poesia de Gonçalves Dias sobre a de Castro Alves, mas nunca será este destronado do coração do povo, a quem falou tão fortemente da liberdade e das lutas heróicas pela Independência.

Baiano como ele, sois hoje um seu continuador. Um continuador em prosa, pois que o pudor vos leva a esconder quase inteiramente os vossos versos, só uma vez anunciados ao público, em tiragem limitada e fora do comércio. Ninguém saberia hoje da vossa veia poética, se não fossem as recentes baladas celebrando certos encantos calipígios que, um pouco à moda de Bernardim Ribeiro, na Menina e Moça, liricamente entremeiam a boa prosa de Gabriela, Cravo e Canela. Os vossos livros nunca são inteiramente gratuitos. Mesmo quando pareceis escrever apenas um grande romance de amor, desse amor que move o sol e outras estrelas, traz ele no meio um problema. E duzentos mil exemplares de vosso livro gritam a todo o Brasil que os nossos portos estão abandonados e que o da zona do cacau é uma ruína e uma vergonha, encoberta por quarenta anos de promessas e de mentiras governamentais! Em São Jorge de Ilhéus está o problema da terra e da ausência de financiamento agrícola, apresentado de forma precisa, como motivo central de obscuras tragédias. Noutro romance há o problema das crianças abandonadas, sementeira de criminosos, a quem, depois, a heróica força volante de uma polícia qualquer poderá cortar as cabeças, para expô-las num museu estadual. Sem o saberdes as vossas idéias vão fecundando cérebros e corações. E até um padre, em Copacabana, vos citava num sermão, há bem pouco tempo, ao falar sobre a necessidade social de evitar-se a multiplicação dos pequenos capitães-da-areia.

Não escondestes as razões da vossa preferência, ao elegerdes Castro Alves para tema de uma biografia. Ao contrário, fizestes praça disto, ao proclamardes: “Como escritor uma coisa me liga poderosamente a ele: tenhosempre encarado a vida de frente e, como ele, escrevo para o povo e em função do povo.” Esta Academia, que escolheu Castro Alves para patrono da Cadeira 7, acolhe agora mais um dos seus biógrafos. Não é esse o vosso único encontro com Alfredo Pujol no terreno biográfico, pois escrevestes, também como lembrei, a história do guerreiro e do líder popular da Coluna Prestes.

Com o vosso antecessor imedito, o eminente Sr. Otávio Mangabeira, as afinidades também existem, extravasando, porém, do campo literário. A rigor, o nosso eminente confrade, há pouco desaparecido, não era um homem de letras. Prevaleceu, em seu favor, o critério dos expoentes. Embora figura altamente representativa da cultura brasileira, tinha escassa obra literária ao ser eleito para a Academia. Mais valiosos do que os cinco trabalhos por ele publicados antes do seu ingresso nesta Casa eram sem dúvida os seus notáveis discursos políticos. Não os de deputado situacionista ou de convencional incumbido de fazer a saudação a candidatos do oficialismo à Presidência da Nação, consoante as práticas eleitorais da República Velha, mas os que proferiu no ostracismo e nos seus momentos de descrença no atual regime e nos homens que o representavam. Lembro-me ainda de algumas dessas orações apocalípticas, cheias de um denso e magoado pessimismo, em que cada período lembrava as entonações sinistras de Cassandra, profetizando as desgraças da Tróia brasileira.

Sua índole conservadora, seu espírito formado na matriz de um liberalismo à Rui Barbosa, sua crença numa democracia mais de aparência que de conteúdo, mais de superfície que de profundidade, mais formalista que real, entrara em conflito com a rápida evolução política das massas, guiadas talvez mais pelo instinto que pela consciência, mas geralmente impelidas para o rumo certo. Daí aqueles longos discursos, modelares na forma, mas um tanto inatuais na substância. Discurso que muitas vezes morriam sem eco, ou cuja ressonância nem sempre correspondia ao seu extremo esforço de grande figura do nosso Parlamento. Esse o seu drama: o drama do desencontro de uma grande vocação política com o meio e a época em que se desenrolou a sua ação. Apesar disso, havia nele uma incontestável grandeza humana, uma admirável enfibratura moral.

Ninguém mais zeloso da legalidade e ninguém mais digno no trato da coisa pública do que esse homem que morreu pobre depois de ter sido deputado em muitas legislaturas, senador da República, Ministro das Relações Exteriores e Governador do seu Estado. Não aspirou, nunca, à popularidade fácil, nem se incucou jamais como vanguardeiro de revoluções que trouxessem como programa algo mais que a simples restauração do que lhe parecia ser o império da lei. Por isso mesmo quando, capitalizando as impaciências e as inquietações das massas, a solércia dos políticos aluía os alicerces constitucionais do país, era certo estar ele na galharda, intransigente e teimosa sustentação da ordem legal. Duas vezes vencido e duas vezes exilado, desapareceu sem capitular.

Como ele, fostes uma vez membro de uma Assembléia Nacional Constituinte, como ele tivestes um mandato popular interrompido, como ele comestes também o amargo pão do exílio.

Em certo momento, quando tudo lhe fora tirado, restou a Otávio Mangabeira ao menos a segurança de encontrar nesta Casa, a sua espera, uma Cadeira que ninguém lhe tiraria. Tal certeza também podereis ter, Sr. Jorge Amado, quaisquer que sejam as surpresas dos dias futuros, nos quais só podemos profetizar o acréscimo da vossa glória universal, a que falta apenas coroamento do Prêmio Nobel, para o qual tantas vezes tem sido o vosso nome tão espontânea, oportuna e justiceiramente lembrado. Sois hoje o candidato natural do Brasil e essa láurea consagradora, da qual nem mais necessitais para a projeção internacional da vossa obra, traduzida nos mais numerosos e estranhos idiomas. Mas necessitam o Brasil, para a maior projeção de sua cultura, e a língua portuguesa, para a sua maior difusão e prestígio do mundo. Ela é hoje o patrimônio de apenas duas nações. Amanhã talvez o seja de quatro ou cinco, ao completar-se a inevitável emancipação dos povos africanos, já cansados de tantos séculos de menoridade tutelada.

Somos os vossos assim como sois o nosso companheiro pelo resto da vida. Ganhais 39 amigos que eram 39 dos vossos admiradores. Porém mais, muito mais ganhamos nós, porque não vindes sozinho. Trazeis convosco pelo menos uma centena de pessoas tão vivas, tão palpitantes, tão reais quanto vós mesmo. Trazeis, digo mal. Porque, na verdade, elas vos anteciparam. Como muito bem lembrastes, ainda há pouco, foram elas que vos trouxeram. E aqui entraram sem fazer cerimônia ou pedir licença, tão furtivamente que ninguém se deu conta.

Olhai em torno. Não as vedes? É que talvez, por causa dos trajos, se dissimulem, modestamente, pelos corredores, ou mesmo pelos desvãos secretos do nosso subterrâneo.

Vinde, senhoras! Vinde, senhores, onde quer que estejais! Padre José Pedro! Sinhô Badaró! Pedro Bala! Antônio Balduíno! Lindinalva Pereira! Zé Camarão! Boa-Vida! João-Grande! Pé-de-Vento! Negro Pastinha! Cabo Martim! Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso! Joaquim Soares da Cunha, ou, se preferis, Quincas Berro d’Água, conhecido em terras de França como Quinquin la Flotte!

Mestres de saveiros, capitães-da-areia, pais-de-santo, moradores do Tabuão, da Baixa do Sapateiro e do Pelourinho, habitantes suarentos dos encardidos sobradões da Salvador das velhas ladeiras e dos quitutes gostosos, vinde todos!

Mas, cuidado: nada de atropelos! Primeiro, deixai passar a Sra. D. Gabriela, com cheiro de cravo e cor de canela. Vinde, já que estais aqui! Vinde, já que não podeis faltar, pois que por toda parte andais à frente do vosso criador iluminando-lhe o caminho.

Vinde e cercai-o! O instante maior de sua glória é um reflexo da vossa maravilhosa eternidade!

17/7/1961