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Ivo Pitanguy

EXÍLIO PARISIENSE

- Meu caro, antes de qualquer coisa, aprenda que na França o queijo é degustado com pão e vinho tinto. Saiba, além disso, que para cada queijo geralmente corresponde um vinho.

Convidado a jantar na residência do professor Marc Iselin, espero que ele, para começar, me fale sobre cirurgia. Ora, ele me dá um curso de gastronomia francesa. Estamos na sala de jantar de seu apartamento ricamente mobiliado da Rue Auguste-Vacquerie, no 16o distrito de Paris. É uma noite do fim de novembro de 1951. Faz muito frio. Tempo para nenhum brasileiro sair de casa. Marc Iselin fora buscar-me no Aeroporto de Orly, que, naquela época, se compunha de algumas edificações compridas, baixas e vetustas, às quais se chegava pela célebre RN 7, a rodovia do Midi. Tendo me levado para sua casa, meu novo mestre fala-me com ênfase sobre as diferentes regiões da França e de suas artes culinárias. Dá-me assim uma primeira lição: saber se desembaraçar das preocupações profissionais a fim de não se enclausurar em sua especialidade, e se interessar por tudo aquilo que concerne ao mundo.

- A cozinha - prossegue Marc Iselin - é uma questão de civilização, mas também de observação. Saborear um queijo com biscoitos bebendo soda ou suco de frutas é uma heresia que condena o paladar americano. Você já viu um pastor, instalado nas alturas alpinas, matar a sede com suco de laranja ou de abacaxi, após ter comido queijo de ovelha? Ele bebe a água dos regatos ou o sumo fornecido pelas uvas ácidas que crescem ao pé das montanhas. O homem, freqüentemente, é absurdo. Ele não enche seu gato com o leite de um ruminante? Como se jamais alguém tivesse visto um felino mamar numa vaca!

Ouvindo esse personagem tão veemente e cáustico, não lamento nem um pouco meu exílio parisiense. É verdade que, depois de sua oferta para juntar-me a ele em Paris, hesitei. Deixar o Rio pela segunda vez criara-me um caso de consciência. Renunciar a tudo o que havia construído, abandonar meus novos amigos, isso eram coisas que me afligiam.

Marilu teve um papel na decisão que tomei de ir para a França. No Rio, encontrava-a regularmente, telefonava-lhe com freqüência. Ela dissera-me que eu tinha um olhar negro de feiticeiro. Mas seu poder me havia enfeitiçado. Aproximava-se o dia de sua partida para a Alemanha. Se eu ficasse no Brasil, o Atlântico iria nos separar. Calculei que, vivendo em Paris, estaria mais perto dela e que seria possível nos reencontrarmos. E como meu coração e minha razão reagiram em uníssono, cortaram logo minhas delongas. Confiei minhas economias a um amigo, que ficou com a missão de me expedir o equivalente a 100 dólares por mês. Não me lembro mais se paguei minha passagem de avião ou se esta me foi oferecida pela Aliança Francesa. Em compensação, não esqueci a passageira que me fez companhia durante toda a viagem. Morena, delgada, espiritual e célebre: era Juliette Gréco. Durante a travessia, ela me falou de Saint-Germain-des-Prés, cuja fama já chegara ao Brasil. Era chamado então de le quartier. Os notívagos que o freqüentavam tinham a peculiaridade de se enfiar em caves, em casas noturnas de nomes ilustres, como o Tabou, o Méphisto, a Rose Rouge ou o Lorientais, onde se podia conviver com o que o pós-guerra parisiense tinha de mais sagrado, os Boris Vian, Jean-Paul Sartre, Sidney Bechet, Jean Genet, Jacques Laurent, Daniel Gélin, Antonine Blondin, Mouloudji e, naturalmente, a Gréco. Quando nos despedimos, em Orly, a diva do existencialismo me disse:

- Venha me ver. Eu apresentarei você aos outros.

Apesar do torpor em que a diferença de fusos horários e a duração da viagem me haviam mergulhado, teria me precipitado para encontrá-la naquela noite mesma. Mas o professor Iselin havia traçado um outro itinerário para mim: um exíguo quarto no hospital da chefatura de polícia de Nanterre. Foi ali que passei minha primeira noite na França. Tive um sono agitado. Em sonhos, via o Deux Magots e o terraço do Flore, o bar do Montana e o balcão do Bonaparte, poetisas misteriosas e desnudas, dançarinas provocantes com seus véus, filósofos com camisas xadrezes de lenhadores canadenses. Em minha ilusão, via a Paris by night que desejara descobrir. Ao despertar, em Nanterre, a realidade era menos brilhante.

O hospital da chefatura serve de depósito para todos os vagabundos e delinqüentes que transitaram pela torre do Horloge, cujas espessas muralhas se refletem no Sena. Assim que essa multidão embriagada e em farrapos desembarca no grande pátio do hospital, resmungando e gritando, é conduzida para uma espécie de imenso saguão cujo teto é repleto de chuveiros. Recebe ordem de se molhar, ensaboar e enxaguar. Em seguida, esse bando de náufragos é desinfetado para ficar livre dos parasitas que passeiam incrustados em sua pele. Todos e todas recebem vestimentas adequadas. Finalmente, recebem catres e cobertas. No inverno, explica-me um interno, o número deles pode chegar a quatro mil. Perambulam, a maioria sem ter o que fazer, pelos corredores e sob os toldos do estabelecimento, como uma lúgubre coorte de almas vagabundas e aviltadas. Alguns deles, antes de soçobrar no alcoolismo, foram encanadores, eletricistas, cozinheiros, contadores ou marceneiros. A administração utiliza seus serviços, quando eles concordam. Desse modo, designado para trabalhar com Marc Iselin, como assistente estrangeiro, sou responsável por dois jovens corsos, Charlie e Robert, encarregados da limpeza de nosso serviço. Charlie é um parricida, e Robert, um batedor de carteiras. Este último, beneficiado pelo regime de liberdade vigiada, acompanha-me às vezes ao longo de meus passeios noturnos e exploratórios na capital. Os bairros de má fama são seus lugares prediletos. Nas ruelas sórdidas, onde o estrangeiro se arrisca a ser roubado ou estripado, Robert tem todas as suas relações "de negócios", como ele me explica. Como Nanterre é longe de Paris, os transportes coletivos são raros e os táxis custam caro; compro, então, uma pequena moto. Com Robert na garupa, descubro que a Cidade Luz é habitada somente por intelectuais.

Minha condição de residente estrangeiro no hospital garantia-me alimentação, habitação e um salário microscópico. Faço parte daqueles cirurgiões vindos dos quatro cantos do mundo para seguir os cursos que, por dez anos, Marc Iselin deu em Nanterre sobre a cirurgia da mão. Participo de todas as suas operações. Ele gosta de comentar as dificuldades, explicar as soluções. Entre seus colaboradores está o doutor Pierre Recht, alsaciano residente em Paris, que muito contribuiu para minha adaptação e iniciação na capital. Ele ensina no hospital e eu o acompanho em suas consultas particulares. Descubro, pouco a pouco, o meio médico francês. No Brasil, assim como nos Estados Unidos, quando saíamos do hospital, continuávamos encarniçadamente a falar de medicina, o que em nada se compara com os franceses. Estes, mal põem os pés fora dos hospitais, deixam a medicina e a cirurgia para trás. Instantaneamente, como que metamorfoseados, transformam-se em outras pessoas, ávidas de outros conhecimentos. Entre duas visitas para consultas, Pierre Recht me faz entrar nas igrejas parisienses para me mostrar a arte gótica, ou então, mesmo andando, fala com paixão ele, que geralmente é muito ponderado de Charles Morgan, com o qual mantém correspondência, de Saint-Exupéry, que fora seu amigo, de Aldous Huxley, de Virginia Woolf ou de Somerset Maugham. Nós tínhamos isso em comum.

Contrariamente a Cincinnati, onde o trabalho me impunha uma vida de recluso, tenho tempo livre em Paris. À noite, quando não estou de plantão, vou dar umas voltas. Depois de jantar nos pequenos bistrôs da Rue du Dragon - ocupados pelos estudantes com pouco dinheiro - encontro-me com o grupo da Gréco no Deux Magots.

- Não são apenas os brasileiros que podem falar inesgotavelmente - explica-me Juliette. - Os parisienses, quando tomam a palavra, são difíceis de a largarem.

Íamos freqüentemente ouvi-la cantar no Rose Rouge, e cada vez que ela interpretava seus sucessos da época, como Je suis comme je suis, Barbara ou Je haïs les dimanches, eu sofria violentos ataques de saudade. Freqüentemente, também, passávamos toda a noite enfiados no fundo do Montana, um pequeno bar de fachada toda branca, na Rue Saint-Benoît. Infatigavelmente, refazíamos o mundo que havia sobrevivido à guerra. Jean-Paul Sartre, a quem minha ingenuidade brasileira divertia, era o mestre pensante daqueles tempos novos que aspiravam a uma nova filosofia e acreditavam candidamente nos amanhãs cantantes. Quando ficava muito tarde, eu alugava um quarto. O Montana não era apenas um bar para os aficcionados da troca de idéias, mas igualmente um hotelzinho onde, quando apontava o amanhecer, os casais se ligavam para relações efêmeras. Toda manhã, antes de montar na minha moto para voltar a Nanterre, pedia à concierge a chave do quarto de banho. Eu era o único que tomava banho diariamente. Na França, naquela época, a higiene corporal era feita uma vez por semana. Mas para mim, que vinha de um país tropical, era uma necessidade de todos os dias. Ignorando esse hábito das terras quentes, a concierge deduziu que aquilo não era um luxo tropical, mas um tratamento médico. Fui beneficiado com uma redução do preço.

Marc Iselin e a maioria dos outros médicos não aprovavam minhas escapadas noturnas junto com os "existencialistas". Segundo eles, era um universo fechado que preferia a inação das palavras à eficácia dos atos.

- É necessário que a juventude passe - repetia, indulgente, meu mestre francês quando me via, pela manhã, com a cara amarrotada. E enquanto vestia meu uniforme branco de cirurgião, ele perguntava, para me alfinetar: - Você está em estado de compreender e de operar, meu jovem amigo?

- Sim, professor.

Às vezes estava com os olhos ardendo, mas as idéias claras. Eu aprendia.

Aproveitando meu estágio na França, encontrei outros cirurgiões famosos, como Dufourmantel, o pai, e mais tarde seu filho, Morel-Fatio, com Roger Moulli e Tessier, em Suresnes, além de Tubiana, Raymond Vilain e outros de minha geração. É verdade que algumas técnicas daquele período estão ultrapassadas hoje, mas sem elas eu não teria podido ir em frente.

Aquele ano parisiense, rico em descobertas, modificou-me. Quase sem sentir, minha natureza brasileira, mais rude, poliu-se em contato com a civilização francesa, que me impregnou com as regras do saber viver europeu. Essa época me deixou lembranças que jamais esquecerei.

Em 1951, Paris comemorava seus dois mil anos. Desde minha chegada à França, correspondia-me bastante com Marilu. Nas cartas, explicava-lhe o que fazia e descrevia tudo a que assistia. Não economizava papel. Contava-lhe em detalhes minhas visitas aos museus, minhas noites em concertos ou teatros. E, enfim, lembrava-lhe com fervor a imensa paixão que ela me inspirava.

Sempre admirei e adorei as mulheres e seu mundo tão diferente. Em companhia de uma delas, não há mais homens fortes, e sim machos vulneráveis que dissimulam desajeitadamente suas fraquezas com atitudes grosseiras ou indiferentes.

(Direito à beleza: revelações de um mestre da cirurgia plástica, 1984.)

 

A BELEZA DE CADA UM

O ser humano é seu corpo. Seu corpo é sua forma de estar no mundo. A expressão corporal indica, tanto ao cientista quanto ao artista, os movimentos da anima. A energia, envolvida em todos os processos vitais, segue seu trajeto natural, através do labirinto hermético do corpo, até encontrar um obstáculo. A quantidade de energia que um indivíduo usa, e como ele a usa, denunciam-no e se refletem na sua personalidade. Também é assim nos processos sociais e psicossociais. Captar os bloqueios energéticos - soluções de continuidade em seu necessário fluir - e resolvê-los, é tarefa por vezes difícil, mas sempre necessária.

Na sua longa caminhada desde os tempos mais remotos até os dias de hoje, o homem sempre procurou a identidade com seu par, com sua tribo, com seu grupo social. Ele jamais desejou ser diferente, na medida em que tal diferença implicasse distanciamento de seu grupo. Sua conceituação de beleza esteve sempre mais ligada à semelhança com seus pares; nas caraterísticas pertinentes ao seu núcleo, encontrou maior harmonia.

A experiência adquirida, lidando com pacientes de vários núcleos, latitudes diversas, grupos sociais distintos, me ensinou que o sofrimento é o mesmo - o ser humano é um só. Seu bem-estar, na sua intimidade, não é apenas conseqüência do sentido de saúde orgânica. É muito o sentido de conviver em paz e tranqüilidade com a sua imagem.

Na antiguidade - e ainda hoje em certos povos árabes africanos e hindus - o crime era punido através de mutilações físicas estigmatizantes. Onde quer que o indivíduo fosse, estaria para sempre evidente seu delito. Como Caim, um homem assim marcado está destinado a se afastar de seus pares. O defeito físico influi de tal sorte sobre o ser humano que estudos antropológicos realizados com criminosos encarcerados mostram mudanças de comportamento significativas nos que tiveram corrigidos traços indesejáveis de diferenciação com seus semelhantes.

Durante o tempo em que trabalhei no Pronto Socorro do Rio de Janeiro, observei o pouco conhecimento existente para o tratamento dos males fora da esfera puramente orgânica. A maior parte dos pacientes era constituída pelos habitantes das redondezas, oriundos das classes menos favorecidas da população não raro, marginais. Os atendimentos mais rotineiros eram às vítimas de navalhadas, facadas ou tiros. Enquanto os cuidados essenciais à sobrevivência eram ministrados com toda a diligência, o mesmo não ocorria na hora de restaurar a integridade física do indivíduo.

Na época havia certo desconhecimento, por parte da classe médica, em relação à cirurgia plástica - considerada especialidade menos importante. O essencial, pensavam, era cuidar da saúde orgânica do indivíduo. O interesse em propiciar o bem-estar através da integridade física nem sempre era compreendido.

O preconceito então existente era inaceitável para mim. Extemporâneo mesmo, se lembrarmos que Pascal, já no século XVII, conjeturava: "Se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto, toda a face da Terra teria mudado". Apesar de considerada a mais bela dentre as mulheres do antigo Egito, é de se supor que não lhe agradasse o tamanho de seu proverbial apêndice nasal. Essa adequação talvez explique em parte a pouca atenção que dedicava ao próprio reino e aos seus súditos, não hesitando em abandonar seus domínios para seguir César até a distante Roma sem esquecer que por ela Marco Antônio deixou para trás seu reino, mulher e filhos, para ser abandonado pouco depois e levado ao suicídio pela bela e irrequieta rainha. O fascinante em tudo isso é que Augusto César não gostava do nariz de Cleópatra, enquanto Marco Antônio apaixonou-se por ela.

Proverbial de fato, Cleópatra foi ainda citada por Pedro Calmon - reitor da Universidade do Brasil quando o Rio de Janeiro ainda era a capital federal - em relação a mim e à minha especialidade. Convidado por Hugo Pinheiro Guimarães e Carlos Chagas - queridos mestres e amigos, e então diretores da Universidade do Brasil -, ministrei um curso de atualização em cirurgia plástica na minha própria clínica, que já contava com um pequeno anfiteatro. Evento histórico, por ter sido o primeiro que a Universidade do Brasil deu fora de seus domínios. Usei a clínica, numa tentativa de demonstrar a possibilidade de uma entidade particular contribuir para a difusão do ensino e suprir as carências inevitáveis das universidades - tentava criar uma universidade sem fronteiras, desejo que perdura até hoje.

A experiência correu muito bem, contando com a presença dos diretores da universidade, e também de Pedro Calmon, que encerrou o curso parafraseando o Pascal: "Se Ivo fosse nascido na época de Ptolomeu, teria sido cirurgião. Sendo cirurgião, teria dado a Cleópatra um instrumento de sedução a César" - e toda essa nossa civilização, que resplandeceu do Tibre até nós, estaria mergulhada nas profundas águas do Nilo.

Se não podemos medir com precisão a influência do tamanho do nariz sobre as atitudes de Cleópatra, é certo que uma simples cicatriz, uma orelha de abano, um sinal externo qualquer; pode vir a perturbar a harmonia do ser humano. E, se a ciência permite, não pode haver justificativa plausível para que a deformidade, seja de origem genética ou traumática - época do trauma em que vivemos - não possa ser corrigida, a fim de levar ao indivíduo a sensação de bem-estar consigo mesmo, indispensável a sua integração com seus pares de forma mais harmoniosa e produtiva.

A imagem que cada um tem de si mesmo nem sempre corresponde à realidade. "Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?" Para desespero da Rainha Má, a pergunta recorrente recebia sempre resposta afirmativa. Corroída pela inveja, não hesitou em condenar a preferida do espelho, sua enteada Branca de Neve, ao exílio e à pobreza. Não lhe bastava ser bela. Era preciso ser a mais perfeita em todo o seu reino. Nada menos do que isso lhe seria satisfatório.

Inveja, narcisismo, insatisfação com a própria imagem misturam-se no conto de Branca de Neve, assim como em inúmeras outras narrativas do universo literário. O belo e eternamente jovem Dorian Gray teve suas feições reproduzidas em tela durante o esplendor de sua juventude. Mantido longe de seus olhos, o quadro registrava a passagem do tempo, enquanto seu próprio rosto observava os laços inalterados. Quando, inadvertidamente, a tela lhe foi mostrada, descobriu-se velho, enrugado, decadente, cada traço exibindo um comportamento que lhe desagradava. Por meio de sua decomposição, o retrato mostrava o que o rosto guardava - uma alma, e essa alma está pintada naquele retrato.

Pintada de tal forma que o poeta não se esqueceu. Lembrando esse triste momento de amor, Oscar Wilde reverencia seu amor pela vida, pelo ser, e lamenta, nos versos finais da "Balada de Reading Gaol":

Yet each man kills the thing he loves
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Others with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword
(Todo homem destrói aquilo que mais ama
Que todos, portanto, ouçam bem,
Alguns o fazem com o olhar,
Outros com elogios enganosos,
Os covardes, com um beijo,
Os bravos, com uma espada)

Vivendo bem, em paz com seu espírito, em tranqüilidade com a vida de forma criativa e amiga, sem procurar a destruição, as rugas vão surgindo, refletindo os momentos de paz, bem como alguns sofrimentos necessários para revigorar a alma. Mas, sobretudo, uma constante dignidade, devida aos valores humanos que devemos exaltar. O envelhecimento não é um estigma em si mesmo. Ele representa uma vivência e uma recordação em que cada braço nos traz à memória momentos dignos de glória, de sofrimento, de luta. Esse processo natural é iluminado pelas palavras de eterna beleza legadas pela pena de Shakespeare em seu Soneto 22, quando sente que viver é sobretudo amar e vê refletido no outro a imagem de juventude do coração que lhe foi legado.

My glass shall not persuade rne I am old,
So long as youth and thou are of one date;
But when in thee tirne's furrows I behold,

Then look I death my days should expiate.
For all that beauty that doth cover thee
Is but the seemly raiment of my heart

(O espelho não me convencerá que estou velho,
Enquanto você permanecer jovem;
Observo as marcas do tempo no rosto

E vejo que a morte há de expiar meus dias.
Toda a beleza que te cobre
Nada mais é do que o ornamento do meu coração.)

(Aprendendo com a vida, 1993.)

 

UM JEITO DE VER O RIO

Quem chega a uma cidade trazendo de longe o seu nascer, vive a alegria de descobertas e o encantamento dos primeiros encontros.

Quando cheguei ao Rio tive vontade de ficar. Parece que foi ontem, mas lá se vão mais de 30 anos. Permaneci, prolongando aquele mágico momento de amor.

A amplitude da paisagem oceânica que me assombrou ao descer das montanhas de Minas Gerais provoca a cada dia a mesma emoção de outrora. Hoje sinto-me parte dessa paisagem - tão íntima dentro de mim, tão íntima dentro desta cidade, minha segunda e definitiva morada.

Na Gávea, o acordar de um novo dia é suave, é alegre: o cheiro da floresta, o brilho do orvalho, o fremir de asas coloridas e o canto dos pássaros a povoar o longo silêncio da noite que se foi. Essa mensagem, em sua simplicidade, encerra uma grandeza de universos: como o botão da rosa, que embora não sendo ainda rosa, tem a força da natureza que se anuncia em toda sua plenitude.

Desço a colina verde, já percebendo no azul cortado pelo vôo branco das aves a aproximação do mar. Sigo a brisa, vencendo o desejo de parar por ali mesmo, onde a areia e as ondas me esperam. Sinto na brisa a sedução do mar, de onde tiro o meu peixe, o meu navegar e esta força iodada que dá à cidade uma leveza lúdica, sua beleza jovem.

A costa sinuosa e sensual se lança em curvas generosas, inventando baías, sedimentando restingas, enquanto do mar afloram ilhas pontilhando o horizonte verde e azul. Em contraponto, atrás dos paredões de concreto, a trama urbana se adensa. A cidade avança, impiedosamente, invadindo os morros, denunciando em construções precárias, a problemática social não resolvida.

Difícil é a equação do equilíbrio entre o respeito ecológico, o desenvolvimento sócio-econômico e a indispensável preservação da memória cultural.

Embora em constante mutação, a beleza do Rio de Janeiro, feita de contrastes e de paradoxos, resiste ainda hoje às contínuas interferências humanas em seu quadro natural e em seu tecido urbano.

Rio Antigo, esconde vielas, becos e ruas perdidas que ecoam histórias. Rio Novo, revela avenidas largas por onde flui a sua modernidade. Cidade jovem, que em seus quatrocentos e poucos anos, guarda ainda a força de alguns marcos de seu passado e mantém vivo o seu agudo senso de humor.

O carioca transforma em crítica mordaz e estimulante a observação do cotidiano. Seu otimismo ainda é capaz de tecer com os fios da alegria de viver a ilusão coletiva - força transformadora - de que o dia de amanhã será melhor.

Rio - cidade aberta - celeiro de tantas culturas, estimula a dança, os cantos e os cultos. A cada ano novo, o carioca ilumina a sua noite e leva flores para Iemanjá, rainha do mar.

O ano desponta prenunciando o carnaval, espetáculo fantástico, de cor, de luz e de som. Milhares de pessoas, unidas pela força da mesma emoção, cantam e dançam, ao ritmo marcante das baterias das escolas de samba.

Quem sentiu o Rio, quem se impregnou de tantos aromas e formas, quem se envolveu em sua realidade densa, tornou-o parte definitiva de si próprio - de seu equilíbrio anímico e morfológico. Amou seu território - lugar referencial deste estado de espírito.

Na amplitude de seus cenários emoldurados pelo desenho barroco das montanhas e lagoas, vejo o Rio, abençoado e protegido pelo Cristo Redentor, exaltando nesta confluência de raças e culturas a fraternidade e o amor à vida.

Este é o meu jeito de ver o Rio - gesto de amor a esta cidade-mulher.

(Um jeito de ver o Rio, 1991.)