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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Sílvio Romero

RESPOSTA DO SR. SÍLVIO ROMERO

Sr. Dr. Euclides da Cunha,

O vosso brilhantismo discurso, cujos primores de forma não disfarçam, antes realçam, a riqueza de vossas idéias, as ousadias de vosso pensar, constituem para mim, velho lutador em quem o espírito de combatividade é uma das mais constantes marteladas com que a crítica indígena há por bem de me bater a porta para intimar-me suas sentenças, uma tríplice tentação...

Dissestes, coma fantasiosa irradiação de vossas frases, que é o encanto de vosso escrever, muito bonitas cousas de Castro Alves, de Valentim Magalhães, do Brasil social...
São assuntos que me inspiraram, de há muito, velhas idéias, defendidas em cinqüenta batalhas por trinta anos seguidos. A Academia não se pode afigurar a organização da hipocrisia para que eu haja de impor silêncio a mim mesmo, sacudindo da alma, lá fora, seletas convicções, como se espanasse o pó dos sapatos no ádito dos templos majestosos e terríveis.

Seria uma nova maneira de desertar, um proceder que assaz se pareceria com a traição a afagadas doutrinas e a memórias queridas.
A dignidade desta ilustre companhia é a primeira a me recomendar que esteja a gosto, e sem constrangimento sustente coram Academicis fundas convicções sempre julgadas dignas de ser expostas perante o povo.

A situação não foi criada por mim e é apta a proteger-me, fazendo que fique ainda hoje firme num assunto no qual, em meio às minhas tão decantadas contradições, não achei até agora jeito de me contradizer, a despeito das tentações.
Castro Alves!... Vale muito. Mas admiro a serenidade, a suficiência, a confiança, o ar de superior e competente alvitre com que a moda carioca acoroçoada pela crítica de arribação, que esvoaça sobre nós, de vários pontos do horizonte, em períodos climatéricos, fala dele, qual se fora o nosso Koerner, nosso Ruckert.

É como se as nossas genuínas canções da espada que se intitulam: – “À vista do Recife”, “Os Leões do Norte”, “Os Voluntários de Pernambuco”, “Sete de Setembro”, “Em nome de uma Pernambucana”, “Capitulação de Montevidéu”, “Os filhos do Capitão Pedro Afonso”, “Volta de Voluntários”, “Diante de um Batalhão regressado da Campanha”, não existissem e seu autor não passasse de um mito.
Entretanto, por que não dizê-lo?

Os títulos do poeta dos Dias e noites, na luta, pela glória, diante de seu venturoso rival, cuja figura aliás fui sempre dos mais solícitos em destacar e cuja significação histórica em nossas letras fui talvez o mais esforçado em descrever, são daqueles que por si sós se defendem e se impõem ao apreço das pessoas para quem os valores e títulos espirituais não são negócio de camarilha e coterie. Apurado senso crítico, percuciente tino filosófico, seguro saber das letras clássicas latinas e esse ingênuo faro de finura estética que não abandona jamais o homem genuinamente do povo, o filho autêntico das classes sertanejas, preservaram o poeta da “Lenda rústica”, de “Os tabaréus”, de “Os trovadores da selva”, de “O beija-flor”, dentro das loucuras mesmas do romantismo agonizante no Brasil, de muitas extravagâncias que andam a afear as páginas dês seu grande e justamente admirado êmulo.

Embalde procurareis em seus versos esses “Tiradentes que, como braço ousado, machucam povos com a robusta mão; esse tempo que, entre os dedos, topando um século, uma nação, encontra nomes tão grandes que não lhe cabem na mão; esse pedaço de gládio no infinito e trapo de bandeira na amplidão; essa eternidade que dialoga com a imensidade, falando o herói com Jeová; nem esse olhar que não se move, fito em Oitenta e Nove, a ler Homero, escutando Jove, Robespierre e Dantão...”

O senso da natureza, da realidade, das cousas, por maiores que pretendessem ser os desregramentos da fantasia e as petulâncias azougadas do condoreirismo hugoano, interpunha-se e revocava o sonhador à normalidade dos fatos verídicos e dos fenômenos observáveis. É por isso que na parte que se salvou de sua obra poética – o tempo tem pouco a riscar nas fronteiras da pura anarquia das metáforas.

Como se na esfera da arte ele se considerasse nos intérminos domínios da liberdade absoluta, segundo a doutrina kantesca, alargada por Schopenhauer, também imaginava um mundo a seu modo, filho da fantasia, mas um tal que não escapava de todo às forças eternas do Cosmos e às leis imanentes da humanidade. Dava-lhe quatro representações mais nítidas, quatro encarnações várias em que o brinco da imaginativa, essência de toda poesia, alçava o vôo, sem se perder na vacuidade e no nada, antes guardando sempre vivas reminiscências das cousas reais e equilibradas: o quadro irisado, festivo, embriagante, dos amores; o quadro encantado, hipersensível, docemente quimérico, dos artistas; o quadro pitoresco, folgazão, gracioso, das gentes campesinas; o quadro evolucionalmente progressivo, heróico, da humanidade, das nações, preponderantemente de nosso amado Brasil. Preside-os, na ronda infinita das mutações perpétuas, eternas, incalculáveis, no vórtice perene dos fenômenos sem conta, também um Deus.

Mas este é, alternadamente, artista, providente, humanitário, patriota, conforme as circunstâncias.
Se, aqui, não se furta, nos transes das mais cruciantes dores humanas, a verter essa lágrima invisível, que tem nome caindo n’alma, e se chama resignação; não se esquece, ali, de bradar aos nossos combatentes vitoriosos, sedentos ainda de vingança: “Tranqüilizai-vos, Leões!” e não se dedigna além de recomendar aos anjos inquietos o não perturbarem o sono de um par venturoso: – “São noivos ainda, deixai-os dormir...”
O que não impede, porém, o vate de o interpelar, às vezes num certo tom de verdadeira censura, como é o caso, quando o increpa pela morte de um amigo: – “Morrer tão depressa, quem foi que mandou?...”

Ah, Senhor! E mais um dia
Que mal voz fazem as rosas?
Nossas coroas mimosas
Por que mandais desmanchar?
Não tendes lá tanta estrela,
Cujos cheiros são fulgores,
Precisais das nossas flores,
Das pérolas do nosso mar?

Em cada um dos atos desse drama da vida existem gradações. Os aspectos mudam numa hierarquização das cenas, desde o mais longínquo infinito, que encerra os mais afastados sistemas planetários, até um jardim de nossas habitações, um salão de baile, ou uma casa de espetáculos.

Mas são sempre visões deliciosas, cheias de fúlgidas miragens e ternuras, de estranhas serenatas; visões meio fantásticas, perdidas, ora nos lagos em que as deidades nuas lavam, cantando, seus vestidos de ouro, ora no seio de róseas nuvens, ou em ilhas encantadas, ou em ermos graciosamente amenos, nos quais as flores se encarregam de cuidar dos pares amorosos e corças bravias param, pasmadas, contemplando a beleza das mulheres...

São visões, onde passam gênios, talentos, artistas, cantores, crianças, que são folhas de etéreos jasmins, campônias e sertanejas que descantam e dançam nos terrados forrados de luar; matutos e tabaréus recordando e memorando as folganças e lendas da noite de São João, ou batendo o baiano ao som das violas. É caleidoscópio que, com peculiar carinho, deixa ver também os “guerreiros, os esforçados batalhadores, os heróis nacionais, esses vultos gigantes para quem morrer é não combater, esses que, fitando a noite estrelada à espera de outra alvorada, dormem nos copos da espada, deixando o sangue escorrer!”

E se surgem “cascatas de vivos diamantes, borrifando um tapiz de esmeraldas, se desfilam deusas travessas, desfolhando lauréis e grinaldas, e avistam-se – virgens formosas, dormindo abraçadas em leitos cobertos de rosas, e auroras que ao longe sacodem áureas franjas de rútilo véu, e se vêem levantarem-se, cheios de pérolas, alvos braços de lindas sultanas, e querubins que apedrejam com astros esses bandos de garças celestes; não se ocultam as nossas cidades, laborando como crisóis, com os seios intumescidos do gérmen dos grandes vultos históricos, abençoadas colméias humanas, que, com a morte, bebem a vida, não se abalam nem se doem. É que em suas artérias circula a – liberdade, esse fluido eletrizador, que lhes robustece a medula dos ossos de pedra e cal...”

Nem são esquecidos os sepulcros dos grandes benfeitores do nosso povo, “promontórios do mar da eternidade, de cima dos quais é que bem se avista e descobre o que há de ilustre, glorioso e belo, dirigindo-se a nós, ao nosso mundo, longe no abismo do porvir imenso, branqueando, como a vela de Colombo!...
E nos arroubos do entusiasmo das glórias que lhe acenam, soergue-se o Brasil, pisando em nuvens, fitando olhos inda mais altos, lançando a voz aos ecos das alturas, aos combates, às lutas gloriosas que o futuro longínquo lhe promete. Leva consigo seu passado ilustre de robustas ações, feitos brilhantes, como os deuses de Homero mergulhavam nas batalhas com seus mantos de púrpura no braço.

E atira a voz aos ecos do infinito, no seu avançar para a conquista das estrelas que além o chamam, tendo na larga destra a tocha do progresso...
Nem nos escapam à vista os povos cativos como esse da Polônia, no qual a garra do despotismo feroz não pôde ainda sufocar todas as esperanças do renovamento e para quem o poeta tem estas palavras que valem por uma filosofia:

Pois que assim morres tão forte,
Deixa-te agora morrer;
Impaciente da morte,
Tu tornarás a viver...

E aparecem os povos que rejuvenescem, “como Portugal ressuscitado do sepulcro de Camões”. E desfilam bandos de proletários de “rir nos lábios e calos nas mãos”.
E destaca-se triunfalmente a Humanidade tomando todas as formas, interpelando “ao mar porque chora e ao céu em que pensa...”
E, no seu canto solene, acena a um que se vai azulando, estendendo a mão sobre o outro que lhe diz: passai...
Travada em lutas imensas, cansada, ofegante, nua, mas tendo sempre na fronte de seu ginete o símbolo do eterno alvorecer: a estrela da manhã...
Oh! não vos poder convidar para comigo percorrerdes, aos caminhos da musa da simpatia, as quatro estâncias de poesia de um dos nossos maiores espíritos e mais insolitamente atacado pela malevolência letrada.

Mas “o tempo, essa força que, se diz, tudo consome”, e afinal é o grande reparador, acabará por destruir a obra do despeito, e justiça se fará...
Valentim Magalhães! – Famoso homem de letras em verdade... Foi durante mais de vinte anos o porta-bandeira da oposição tenaz implacável, irredutível, contra tudo o que se pensou e se fez na Escola do Recife nas últimas décadas do século passado. Guerra foi essa cuja constância, nunca desmentida, só podia rivalizar com a sua própria sem-razão, sempre provada. – Os serviços prestados às pátrias letras e ao pensamento nacional por uma legião inteira de combatentes da idéia, os Tobias Barretos, os Vitorianos Palhares, os Castros Alves, os Franklins Távoras, os Orlandos, os Beviláquas, os Viveiros de Castro, os Franças Pereiras, os Teotônios Freires, os Paulas de Arruda, os Alfredos de Carvalho, um Celso de Magalhães, um Rocha Lima, um Siqueira Filho, um Martins Júnior, um Graça Aranha, um Sousa Pinto, um João Bandeira... não têm chegado para desarmar a odiosidade sistemática a uns, as censuras infundadas a outros, os esquecimentos calculados a estes, as meias simpatias àqueles, e até os festejos suspeitos a certos renegados que por qualquer motivo caíram nas graças de determinados críticos, que se arrogam nesta boa terra a função de distribuir os títulos e louvores espirituais.

Entretanto, a cousa não é assim tão simples, nem é daquelas que se riscam do livro da vida com um traço de lápis.
Existem obras que fazem hoje parte do tesouro intelectual da nação, que lhe germinaram n’alma, abrindo-lhe novas e mais rasgadas perspectivas, que se não podem desfolhar ao vento ao gosto das folhas mirradas, imprestáveis... Os Dias e noites, as Espumas flutuantes, Mocidade e tristeza, Visões de hoje, O matuto, O Lourenço, os Estudos alemães, os Menores e loucos, os Estudos de Direito, a Propedêutica jurídica, Ensaios de crítica, o Pan-americanismo, o Direito da Família, o Das Sucessões, Princípios de Direito Internacional Privado, A nova Escola Penal, e cem outros não se deixam sufocar pelo negativismo gamenho dos conferencistas da última hora. Não são da alçada dos que se prezam de saber “colocar pronomes” mas não sabem “colocar idéias”... Não entram na tarefa dos que pensam que tudo está feito, todos os brilhos de estilo conseguidos, todos os meandros da ciência desvendados, todos os degraus da glória vencidos, quando se teve a ventura de, tratando de cousas do entendimento, achar que se deve dizer despercebido em vez de desapercebido, formas ambas corretas, merece contestado em lugar de merece ser contestado, duas frases tão certas uma quanto outra. Com espíritos cujo horizonte mental apraz em apertar-se tão singularmente, em cujo céu do pensamento fulgem apenas esses vaga-lumes em vez dos grandes astros aclaradores dos magnos problemas, não admira a cegueira com que negam os títulos, por exemplo, a um dos mais conspícuos chefes intelectuais da nação, o autor das Questões vigentes de Filosofia e Direito.

Proliferam impertinências, insinuadas nas cabeças de homens como José Maria Mérou, para que os esconjuros negativistas passem a fronteira e se espalhem pelo continente. Percorre-se toda a história de quatrocentos anos das lides espirituais brasileiras e não se encontra, em tempo algum, uma tal e tão prolongada sanha de desprestígio e denegrimento numa gente, que tem, aliás, tão fácil o entusiasmo e sabe como tanto jeito baloiçar os turíbulos diante de uma série quase infindável de manipansos de toda a casta.

Escusado é relembrar as várias formas revestidas pelo demônio da demolição e as capas diversas que tem sido forçado a deixar no meio da rua.
O bioco faz hoje uma confissão e julga-se com ela exonerado de culpa e quite com a justiça e a verdade.

O homem não valia nada; mas, oh! singular antinomia mais embrulhada do que as de Kant!... teve a vantagem de formar grandes discípulos e preclaros admiradores...
Como se um medíocre pudesse fecundar almas, suscitar talentos, mover e pôr a postos os contendores da idéia!...
É uma crítica que evidentemente desnorteia e vai, de queda em queda, de concessão em concessão, até negar-se a si mesma.

O grande brado final é agora: a originalidade... Mostrai-nos as novas doutrinas, as originais descobertas do proclamando Mestre.
Pode-se responder com ele mesmo, defendendo um companheiro, a quem, num passo semelhante, pedia a mesma fanfarronice crítica que indicasse a originalidade produzida em certo livro:

“Não conheço maior extravagância no gênero, não conheço cousa mais deslocada, nem mais extemporânea, do que o gesto magistral e autoritário do censor, afirmando que o autor não é capaz de dizer qual foi a originalidade que disse em seu livro, nem de mostrar onde descreveu alguma experiência própria. E prometera ele ser original, no sentido comum da palavra, para fazer-se-lhe tal exigência?
E que vem a ser, em obras de história e crítica literária, jurídica ou filosófica, a necessidade de descrever experiências próprias?
Pergunta qual é a originalidade que se encontra no livro questionado e não pressente que se lhe possa responder: o livro mesmo, seu método, sua tendência. Já isto vale alguma cousa no ponto de vista elevado da crítica atual do mundo culto; no que, porém, particularmente nos toca, nos estreitos limites de nosso horizonte, vale muito, vale tudo. Não é trabalho de pouca monta, que demande mais o talento da paciência, do que a paciência do talento, escavar e revolver um terreno estéril, tido geralmente na conta de aurífero, para dizer-nos enfim: não existe ouro; é apenas uma camada de greda...
Originalidade!... É pedir demasiado. O censor, por certo, não entrou bem no fundo deste conceito. Original em uma criação do pensamento, afirma Hemann Cohen, limita-se a um curto passo que muitas vezes somente pela sua preponderância no andar das idéias, ou pela inesperada direção que toma, atinge a força de reformar, ao largo tempo e ao longo, o domínio do saber. Mas, mesmo assim, quantos são capazes de sair fora de casa, e aventurar esse curto passo além do terreno conhecido? Ainda hoje é verdadeiro o que disse o grande Borne: “assim como entre um milhão de homens existem, ao muito, mil pensadores, também entre mil pensadores existe apenas um original.” Não é, portanto, no sentir dos homens competentes, tão importante como parece aos olhos mal educados de  levianos e impertinentes aristarcos, para tomar as dimensões de um autor, principalmente de crítica filosófica, ou outra qualquer, a medida retórica da curésis ou da inventio, a medida da originalidade...”

Eis aí: nada mais adequado ao caso, nada que melhor caracterize a hilariante atitude dos que articulam censuras, irmãs gêmeas da vacuidade. Do nosso compatrício pode-se afirmar exatamente o mesmo: sua originalidade está em sua obra tomada em conjunto, na ação, nas tendências que despertou, no influxo por ela produzido.

Só pelo mais irracional capricho ou pela mais inexplicável ausência de senso histórico, é possível negar valor e eficácia no Brasil a esses movimentos dele partidos, do integralismo social em poesia, do germanismo em literatura, do monismo evolucionista em Filosofia e Direito.
Uma consideração que não tem sido assaz ponderada, por si só suficiente para aclarar o ponto, destacando a figura do genial agitador, é que os grupos que constituíram as três fases da Escola do Recife, de seu início a seu fim, de 62 a 89, a fase poética, a crítico-filosófica, a jurídica, não foram os mesmos; sucederam-se, havendo, entretanto, um fator permanente, que presidiu os três períodos e esse era exatamente o autor dos Dias e noites, dos Estudos alemães, dos Estudos de Direito.

Quantos no Brasil se poderão gabar, com verdade e razão, de um tão harmonioso e orgânico desdobrar de sua ação intelectual?
É preciso ter vivido no Rio de Janeiro, espreitando, mesmo de longe, o círculo dos estudantes, dos professores, dos jornalistas, dos literatos e políticos de toda ordem, para se haver sentido a temperatura espiritual do tempo, nos anos de 1862 a 68, exatamente o período em que se agitava a Escola do Recife, no seu Sturm und Drang, e preparava o início da fase crítica.

A poesia movia-se estafada, mofina, pálida e tísica a tossir umas cansadas mágoas de monótono realejar. A minh’alma é triste como a rola aflita, e o se eu morresse amanhã – andavam nos lábios de todas belas, e o qual quebra as vagas no mar – ressoava dos peitos dos namorados, sonhadores e lamartinescos.

O burguês retrucava como – Waterloo, Waterloo!... lição sublime... e o rapazio patrioteiro com a – minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá... O nativista atento, a fantasiar caboclismos de opereta, desfiava como palavras de uma ladainha o – ó guerreiros da taba sagrada, / ó guerreiros da tribo tupi...
Alguns cismadores de tristezas indefinidas, enevoadas, dessas que cingem os Hamlets de chapéus descaídos e olhares chumbados nos luares místicos, divisando monjas em cada canto dos seus, seguiam monologando – o quem passou pela vida em branca nuvem e em plácido regaço adormeceu... Como diversão, meio brejeira, cheia dos eflúvios das confidências romantizadas de um mundo feérico, na qual a banalidade sabe falar em rimas doces, modulavam mocinhas pálidas, num devanear de descuidosas íncolas de sonhos e miragens o – lembras-te, Iná? Belo e mago / da névoa por entre o manto / erguia-se ao longe o canto / dos pescadores do lago... numa terra que não tem névoas nem pescadores de lagos... Ao que a caixeirada sensata, fazendo frases à moda geral, retrucava com a – simpatia, meu anjinho, é o canto do passarinho...

E os pianos roufenhavam por todos os lados o recitativo que acabava de ser introduzido por Furtado Coelho: Era no outono quando a imagem tua...
Asfixiava!...
O romance e o drama moviam-se entre a erótica carioca, meio burguesa, meio fantástica, engalanada de lantejoulas baratas e penas de pavão dos heróis e heroínas de Macedo, de um lado, e, de outro, os caboclos hiper-idealistas, mestres em platonismo alexandrino, e a avultada galeria de belas raparigas histéricas, nevropatas, de Alencar.

Em filosofia ainda Victor Cousin era esse Deus que, na frase declamatória do retórico Montealverne, tinha trazido a ordem ao caos dos sistemas.
Como supremo esforço do gênio nacional nesse gênero de assuntos recordavam alguns a doutrina de Magalhães na possibilidade de não ter o universo existência real, não passando de um sonho em nós suscitado pela inteligência divina, na qual o vemos, pela mesma forma que o magnetizado vê as idéias na mente do magnetizador...
Era o tempo em que o Dr. Dias da Cruz e o padre Patrício Muniz discutiam com toda a seriedade a teoria da afirmação pura.
Um pavor...

A inteligência nacional andava encurralada num círculo de romantismo caduco e de metafisicismo banal, envoltos ambos num retoricismo sovado, balofo, inane, em que velhas frases eram glorificadas e erigidas à altura de teses científicas, de pilastras eternas do verdadeiro. Em política o Visconde de Uruguai e o Conselheiro Zacarias de Góis esbofavam-se por estabelecer a exata doutrina acerca da natureza de limites do poder moderador.
Nunca o bizantinismo tinha alcançado mais nítido renascimento depois do século XV. Era o justo pendant da disputa da teoria da afirmação pura.

Em crítica literária o cônego Dr. Fernandes Pinheiro ensinava com todo o sério: “Preferiu Barros a tuba épica ao buril da história, e assim como precedera Heródoto a Homero, publicou ele a sua primeira década no mesmo ano m que Camões partia para a Índia.” E interpretava – tinherabos, non tinherabos – por tinhe-rabos, non tinhe-rabos...
Que tal! – Cousas professadas no Colégio de Pedro II e repetidas diante do Imperador...
Em crítica de religião e de Direito... nem é bom falar.
Taparelli, Ventura de Ráulica e o Padre Gaume eram a última palavra.

Foi nestas condições que um ar fresco de reforma e renovamento, que coincidia, em Paris, com a decadência crescente do despotismo napoleônico e a ação inovadora dos mais fecundos escritos de Vacherot, Schérer, Taine, Renan, passou os mares e tocou em Pernambuco, primeiro porto nacional, destacado para o Oriente, esperando, anelante, as novas do Velho Mundo. Tudo começava a revestir-se de novos rebentos e novas folhagens.
Até os velhos românticos, os Hugos, os Quinets, os Michelets, sempre sequiosos de liberdade e cheios de ardor pelo progresso, modificando as tardas liras, meteram-lhes cordas novas em que deviam, soar as aspirações do povo, as dores sociais, as mágoas da multidão.
A Polônia estorcia-se sob a pata do cossaco, o México sob as carabinas de Bazaine, os Estados Unidos, com os Grants e os Lincolns, feriam tremendas batalhas para libertar alguns milhões de escravos.

A Alemanha preparava em Sadowa a sua transformação. Até o Brasil se começava a mover e embarcava na aventura das lutas com o Uruguai e o Paraguai.
Enquanto no Rio de Janeiro os espíritos se diluíam nas divagações das Cartas de Erasmo, a mocidade do Recife fremia sob o impulso das tentações republicanas, democráticas, abolicionista, patrióticas. A expressão desse aspirar tumultuário e intenso era natural que em almas juvenis se manifestasse pela poesia e mais natural ainda era que ela tomasse o tom e a coloração dos grandes mestres que no tempo falavam mais alto aos instintos generosos do coração francês, Victor Hugo e Edgar Quinet.

Eis a razão do que se veio a chamar o condoreirismo, o qual deve ser apreciado no sentido íntimo das idéias que espalhou, dos sentimentos a que deu expressão, do ardente lirismo que pôs em voga. Castro Alves foi o apóstolo andante das novas intuições.
Na Bahia, Rio e São Paulo apareceu sucessivamente como alguma cousa de inédito.
A poesia mudou logo de tom em toda a linha.

Deixados os primeiros exageros de forma, dali tinham de partir as escolas naturalistas, a científica, a parnasiana, que se sucederam nos últimos tempos. Mas, como sói quase sempre acontecer, os bem-aventurados das margens de Guanabara esqueceram facilmente o ponto de partida, o centro provinciano, onde as primeiras idéias tiveram a ousadia de brotar.
E agora exigem-nos títulos de originalidade! É curioso. – O que se fez em crítica e história literária, em Filosofia geral e do Direito, em folklore e história nacional, em crítica religiosa e política, em questões sociais, de 1868 em diante, época em que Castro Alves deixou o Recife, lides, portanto, em que não tomou parte e nem poderia tomar, porque não estava preparado para elas, sobreleva de muito a ação no mero terreno da poesia, em que ele teve parte conspícua.

Indicar, mesmo em resumo, o punhado de idéias e doutrinas lançadas então na leiva fértil das almas entusiastas, e que nelas floresceram e vieram espalhar dourados frutos por todo o país, não caberia, sem impertinência, nesta ocasião e lugar.
Em ensejo proximamente oportuno será ponto debatido em toda a extensão, com todos os ardores da refrega.

Baste, por hoje, avançar que me não contenta a afirmativa, já feita, da originalidade, por assim dizer, genérica, da obra e da ação do crítico das Questões vigentes, tomada em seu conjunto.
Releva resolutamente responder àqueles que o acusam e amesquinham, sem o haver jamais evidentemente lido, a esses que nunca se lembraram de exigir o brevet d’invention das originalidades de outros escritores, vivos ou mortos, que desassisada é a teima de pretender transformar um crítico em o que os franceses chamam, com evidente espírito de mofa, un théoriste, un faiseur de système... E, todavia, tantas são as idéias novas, os pontos de vista originais que se nos deparam nos escritos do grande ensaísta brasileiro, que ouso chamar raríssimo o trabalho seu em que não surjam a ponto de facilmente serem notados pelos olhares competentes.

Destarte, novidades escreveu em todas os ramos de crítica de que se ocupou: de literatura, de direito, de filosofia, de política, de religião, de arte musical.
Bastante seria, para destacar esse espírito inovador, notar as análises que fez dos mais variados escritores, S. Tomás, Kant, Jouf¬froy, Leveque, Francisco Huet, Vacherot, Strauss, Jellinek, Jules Simon, Auerbach, Guiau, G. Le Bon, Carrara, Hartmann, Gneist, Ihering; Alexandre Herculano, Zacarias de Góis, Tavares Bastos, Magalhães, Soriano de Sousa, Oliveira Martins... Ou apreciar o humour com que se insurgiu contra as parêmias consagradas, tidas geralmente por verdades inconcussas, moedas de ouro de lei do mais elevado quilate que não passavam, a seus olhos perspícuos, de solenes tolices: liberdade, igualdade, fraternidade; idéia perseguida – idéia propa¬gada; benigna amplianda – odiosa restringenda; o estilo é o homem; o Direito não deve ser casuístico...

Ou meditar nos vivos quadros que traçou do Brasil literário, municipal, cortesão, político, religioso e social.
Podem e devem, entretanto, ser desafiados os aristarcos a percorrer os domínios prediletos do criticar do malfadado escritor.
Na crítica literária, se lhe deparará o conceito mesmo de literatura, corrigindo e alargando a definição do dinamarquês George Brandes; as notações que faz da índole e natureza do estilo da poesia, da confusão desta com o senso religioso em determinados casos; a pintura que traça de Shakespeare, do pensador em V. Hugo, de Herculano estilista e crítico, de alguns vultos da literatura clássica alemã; o paralelo entre Feuerbach e Strauss, e a determinação do que chama o momento trágico na vida deste último...

Em crítica jurídica, várias idéias acerca de tentativa, mandato criminal, co-delinqüência, direito autoral; o conceito mesmo que formava do Direito, ampliando a definição de Ihering, ou como a disciplina das forças sociais, o processo de adaptação das ações humanas à ordem pública, ao bem-estar da comunhão política, ao desenvolvimento geral da sociedade.
Por igual a análise da teoria da imputação no antigo Código Criminal Brasileiro. Releva sobretudo salientar o conceito do criminoso como um especial tipo disteleológico, que sai fora da finalidade social, verdadeiro caso de teratologia, que, entretanto, não se deixa explicar pelos fatores apregoados pelas escolas já então em luta, ainda que sejam todos reunidos, os naturais (escola antropológica), os sociais (escola socialista) os do livre arbítrio (escola clássica), fatores estes que, multiplicados entre si, segundo a frase do autor, não chegam para esgotar a série porque entre eles há termos mé¬dios, cujo valor não tem força de determinar.

Doutrina esta expendida logo que apareceram os primeiros escritos de Lombroso e de seu opositor, Tarde, atirando a barra adiante deles.
Claro é que a terza scuola teve em nosso criminalista um genuíno precursor, sendo que os conceitos do crime e do criminoso são no escritor brasileiro mais largos do que os de von Liszt, o famoso jurista alemão.
Nova também foi a doutrina por ele ensinada dos delitos comissivos, praticados, entretanto, omissivamente. Novidades para quem anda sequioso atrás delas aparecem na análise do art. 10 do aludido Código, peculiarmente no que diz respeito a mulheres e menores campônios delinqüentes.
E como esquecer as belas e novas cousas acrescentadas à lição de Ihering contra a velha teoria do Direito Natural em prol da dou¬trina do puro culturanismo, e o que expendeu acerca da morfologia, fisiologia e psicologia nos fenômenos jurídicos?

Em crítica filosófica, além de ter sido ele quem iniciou a campanha seguida e vigorosa contra o extenuado espiritualismo eclético de Victor Cousin e consócios, ensinando sucessivamente, como quem reformava seu próprio pensamento diante do público, o naturalismo idealista de Vacherot, o positivismo de Comte, o criticismo agnóstico de Schérer e Renan, o pessimismo da Scho¬penhauer e Hartmann, o monismo de Haeckel e Noiré, parando definitivamente neste último, cumpre advertir aos conhecedores, se deparam muitos casos originais, espalhados em seus escritos do gênero.

Deste número é o que deixou dito, contra Jouffroy, acerca do papel da imaginação no fato da consciência, e, contra Vacherot, do papel da memória na mesma consciência, até em se tratando de idéias, atos, paixões e sentimentos que formam, segundo a pretensão desse filósofo, o fundo e essência da alma humana. O que escreveu do nenhum valor da achega dos poetas, dramaturgos, romancistas, moralistas em Psicologia, da impossibilidade de esta traçar a história de suas principais descobertas de caráter subjetivo, e fazer previsões exatas nos seus domínios.
A réplica ao aludido Vacherot, quando ensina que o espírito humano se observa de duas maneiras, na parte individual e na parte de seu ser. A análise fina que fez por quatro vezes diversas da filosofia de Kant, principalmente naquela em que mostra que o pensador de Konigsberg inutilizou para todo sempre o chamado racionalismo, de qualquer natureza e forma, não bastando afirmar, portanto, que demonstrara a impossibilidade da Metafísica como ciência.
Várias das ponderações que aduziu contra a Sociologia como corpo científico já organizado. O modo como explicou a falta de homocronismo entre a evolução intelectual e emocional do homem.

Em análise política, – a análise do parlamentarismo brasileiro, isto há trinta e cinco anos, em confronto com o britânico. A página profunda em que delineia o que deveria ser o governo e a organização política do Brasil, como um produto de sua própria história e não uma cópia do Estado inglês ou do americano.
A nota que lança de passagem sobre o fato singularíssimo de não se haver o povo brasileiro constituído por si próprio, senão por um poder estranho, de tal arte que, como atividade, como força, como espírito, ele não se deu a si mesmo os órgãos e funções de sua vida social, sendo-lhe tudo outorgado, como a um autômato imenso, que devesse bulir e mexer-se por virtude de quem tivesse aquela mágica e suprema chave de toda a organização política, segundo a frase do texto constitucional, metáfora tosca e fútil, que, entretanto, se converteu em princípio diretor dos destinos das nações!

O que aventa sobre o futuro realmente induzido ou simplesmente imaginado em política. Como explica a razão da inexistência de uma intensiva vida municipal no Brasil em face de um provincialismo assaz vivace. A página em que descarna o sistema representativo nos Estados modernos como a estranha organização da desconfiança. Os dizeres humorísticos contra a parêmia de Thiers – o rei reina e não governa.

A censura que faz a um erro muito corrente, repetido por Tavares Bastos, do suposto caráter federativo do Estado inglês, cumprindo não esquecer a nota de ser em geral a forma de governo uma questão mais de estética do que de ética política.

Em crítica religiosa histórica – as considerações, contra Herculano, sobre o caráter intrínseco dos males que atacam a Igreja, a suposta imutabilidade antiga da dogmática e pretensas inovações modernas, alegadas pelo historiador português, e, portanto, sobre o sentido e caráter da evolução no seio do catolicismo.

Em crítica religiosa, bíblica, entre outras idéias, as que expendeu do papel de Samuel na instituição da realeza em Israel e a explicação que sugere da oposição que o texto sagrado lhe atribui à vontade do povo que lhe pedia um rei.
As observações que ajunta à crítica de Michel Nicolas a propósito das duas narrativas que o Gênesis traz da criação.

A observação que opõe ao teólogo francês no que se refere à crítica deste a Ewald sobre as origens do Pentateuco. Na intervenção e corrigenda que faz de parte a parte no debate havido entre Vacherot e o padre Gratry acerca da narrativa evangélica da paixão de Jesus.
Como estas outras idéias jogadas no correr dos escritos que intitulou – Notas sobre a critica religiosa, A irreligião do futuro, A história do povo de Israel e o Sr. Oliveira Martins.
Finalmente, em crítica musical, além de repelir o velho sestro, nessa esfera reinante, de tomar meras metáforas por análise, substituindo-o pelo espírito filosófico-histórico, teve ensejo de, a propósito de músicos como Bellini, Carlos Gomes, Meyerbeer, Wagner e críticos como Hanslick e Escragnolle Taunay, espalhar várias pérolas de novo lavor. Bastante é lembrar a bela página em que, a propósito da qualidade representativa ou não da música, se encontra indicada a teoria da associação dos sentimentos ou das emoções consensuais.

Só isto era suficiente para lhe conferir a láurea de pensador original. Oh! não vos poder convidar para, acompanhados pela musa da simpatia, esquecidos os esconjuros dos negativistas que apostaram em tapar os olhos, percorrerdes alguns dos mais sugestivos ensaios do seleto escritor! Se os seus desavisados censores tivessem uma visão clara da evolução total do espírito brasileiro na poesia, uma visão clara da evolução total do espírito brasileiro em religião, Filosofia, Política, Direito e crítica literária, deveriam saber qual o estado de todas estas cousas nesta terra, em 1862, quando o grande pensador do Norte iniciou no Recife o seu poetar, e em 1868, quando deu começo à sua evolução crítica. Já se viu o detestável estado dessas cousas no período aludido. Urge mostrar agora a mutação. A fase poética, com ter grande valor, não tem a importância da fase seguinte.

Os decênios que vão de 1868 a 1888 são os mais notáveis de quantos no século XIX constituíam a nossa labuta espiritual. Quem não viveu nesse tempo não conhece por ter sentido diretamente em si as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868 o catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista católica e eclética a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do aristocratismo prático dos grandes proprietários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares a mais apagada desavença reatora. Tudo tinha adormecido à sombra do manto do príncipe ilustre que havia acabado com o caudilhismo nas províncias e na América do Sul e preparado a engrenagem da peça política de centralização mais coesa que já uma vez houve na história em um grande país.

De repente, por um movimento subterrâneo, que vinha de longe, a instabilidade de todas as cousas se mostrou e o sofisma do império apareceu em toda a sua nudez. A guerra do Paraguai estava a mostrar a todas as vistas os imensos defeitos de nossa organização militar e o acanhado de nossos progressos sociais, desvendando repugnantemente a chaga da escravidão; e então a questão dos cativos se agita e logo após é seguida da questão religiosa; tudo se põe em discussão: o aparelho sofístico das eleições, o sistema de arrocho das instituições policiais e da magistratura e inúmeros problemas econômicos; o Partido Liberal, expelido do poder, comove-se desusadamente e lança aos quatro ventos um programa de extrema democracia, quase um verdadeiro socialismo; o Partido Republicano se organiza e inicia uma propaganda tenaz que nada faria parar.

Na política é um mundo inteiro que vacila. Nas regiões do pensamento teórico o travejamento da peleja foi ainda mais formi¬dável, porque o atraso era horroroso.
Um bando de idéias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte. Hoje, depois de mais de trinta anos, hoje, que são elas correntes e andam por todas as cabeças, não têm mais o sabor da novidade nem lembram mais as feridas que, para as espalhar, sofremos os combatentes do grande decênio. Positivismo, evolucionismo, cientificismo na poesia e no romance, folklore, novos processos de crítica e de história literária, transformação da intuição do Direito e da política, tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da Escola do Recife. O escritor dos Menores e loucos foi o mais esforçado combatente, com o senso de visão rápida de que era dotado. Por que contestar o seu merecimento? Por que amesquinhar o seu esforço?
Vós, Sr. Dr. Euclides da Cunha, tendes, felizmente, ficado e ficareis a coberto dessas ásperas contingências de precisar defender uma cousa que, no fundo, não vale dois minutos de esforço neste canto da terra: o renome, a reputação literária... De um ímpeto, adejastes por cima dos mais altos píncaros, onde flutuam aos ventos as flâmulas dos entusiasmos e das glorificações brasileiras.

Lá chegastes e lá deveis ficar, porque não vos fizeram favor.
Fostes levado pelo mérito inegável de um livro que é uma das obras-primas da mentalidade nacional.
Mas cumpre dizer-vos, nada deveis à crítica indígena; porque ela não vos compreendeu cabalmente. Tomou o vosso livro por um produto meramente literário, como as dezenas de tantos outros que se afez a manusear.
Viu nele apenas as cintilações do estilo, os dourados da forma, e, quando muito, considerou-o ao demais como uma espécie de panfleto de oposição política que dizia da organização de nosso Exército, de nossas cousas militares, umas tantas verdades que ela, a crítica, não se atrevia a dizer. Daí os aplausos.
Não era desses que precisáveis.

Vosso livro não é um produto de literatura fácil, ou de politi¬quismos irrequietos. É um sério e fundo estudo social de nosso povo que tem sido o objeto das vossas constantes pesquisas, de vossas leituras, de vossas observações diretas, de vossas viagens, de vossas meditações de toda hora. Começastes por querer surpreendê-lo na índole, na constituição mais íntima, na essência intrínseca, nessa espécie de rendez-vous que ele se deu a si próprio nos campos do Paraguai.

Achastes talvez desmesurado o plano, e recuastes até agora. Creio que o quisestes pegar em flagrante nas cruas lutas de maragatos e castilhistas do Rio Grande do Sul, ou nas curiosas aventuras da Revolta da Armada.
Tem sido a iniludível necessidade de dividir o assunto, agigan¬tadamente extenso, para uma só tela. Andais tentado hoje pelo Acre e pela Amazônia, que vos consomem os lazeres; porque vós tomais ao sério vossos estudos e tendes o pundonor dos escritores que forcejam por ser verídicos e escrupulosamente exatos.

Que a musa da felicidade, que deve ser o anjo de guarda dos gênios empreendedores, vos ampare e abrigue sob largas asas e propicie ao Brasil o ensejo de receber de vossas mãos outros livros como esse d’Os sertões.
Nele a narrativa, que ocorre na segunda parte, da campanha de Canudos, é uma simples exemplificação de caráter subalterno. O nervo do livro, seu fim, seu alvo, seu valor, estão na descritiva do caráter das populações sertanejas de um dos mais curiosos trechos do Brasil.
Para os que as conhecem, foi inestimável serviço ver, ligados, presos, articulados, – os traços diversos, esparsos na imaginação e na memória. Tomaram eles feição sob a vara mágica e evocativa do poderoso estilo do observador.

Para os que não nas conhecem, e é este o caso de todos os deliqüescentes que enfiam frases no Rio de Janeiro, foi como a revelação de um mundo longínquo, afastado, estranho, alheio a tudo que os toca, tudo em que pensam, tudo de que fabulam, em suas irisadas vacuidades de imortalizados em vida... Era como se se tratasse de populações da Mongólia, do Turquestão ou do Saara...
Tanto é profundo o inconsciente desconhecimento de nós mesmos!
Tínheis o espírito cheio do ensino do divino Tomás Buckle, de quem me prezo de haver sido o primeiro que lhe analisou a doutrina em língua portuguesa, nos dois mundos, quando estudastes o vosso assunto e escrevestes o vosso livro.

Usastes de seus processos, que são fundamentalmente os mesmos popularizados por Hipólito Taine e diluídos na prosa docemente ondulosa de Ernesto Renan.
Estudastes a terra, sua organização, seus aspectos, sua flora, seu clima, suas falhas, seus recursos, e pudera dizer, seus males, seus padecimentos, e tomastes nas mãos a mor porção dos fios invisíveis com que ela prende o homem e o faz à sua imagem e semelhança.
Surpreendeste-a na lenta e segura laboração das almas e dos caracteres.
De vosso livro deve-se tirar, pois, uma lição de política, de educação demográfica, de transformação econômica, de remodelamento social, de que depende o futuro daquelas populações e com elas o dos doze milhões de brasileiros que de norte a sul ocupam o corpo central do nosso país e constituem o braço e o coração do Brasil.

Dir-vo-lo-ei como; mas antes deixai que exerça livremente o meu direito de admirar.
Também sei queimar gostosamente bagas de incenso, quando o altar não está vazio e nele existe realmente o que se deva venerar. Para tanto, no caso, não hei mister improvisar; basta-me abrir o vosso livro e ler nele como se lê nos Missais nas cerimônias do culto.
Vós sabeis retratar ao vivo a natureza física, dando intensidade às notas, sem prejudicar a veracidade dos fatos, a qualidade dos fenômenos.
É o grande escolho da arte da descritiva: exatidão e relevo, naturalismo e brilho, consistência a colorido, poesia e verdade.

Em vosso livro multiplicam-se as páginas comprovadoras do asserto.
Descreveis a terra, os ares, os horizontes, a flora, as secas, as trovoadas, as bons dias das renascenças hibernais, as labutações dos homens; as vaquejadas, as partilhas, as festas das sazões propícias, os sofrimentos tragicamente heróicos dos grandes êxodos inevitáveis, e descreveis os costumes, as crenças, as almas, em suma, nas suas mais recônditas fibras.
As dez ou doze páginas consagradas à flora não vejo que encontrem superiores ou sequer iguais em nossa língua.

Pequenos trechos esplêndidos no correr da descritiva:

“Dão-lhes na deiscência perfeita como que as vagens se abrem, estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis aparelhos para propagação das sementes, espalhando-as profusamente pelo chão. E têm, todas, sem excetuar uma única, no perfume suavíssimo das flores, anteparos intácteis que nas noites frias sobre elas se alevantam, e se arqueiam, obstando que as atinjam em chofre as quedas de temperatura, tendas invisíveis e encantadoras, resguardando-as.
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Estes vegetais estranhos, quando ablaqueados em roda, mostram raízes que se entranham a desproporcionada profundura. Não há desenraizá-los; o eixo descendente aumenta-lhes maior, à medida que se escava. Por fim se nota que ele se vai repartindo em divisões dicotômicas; progride pela terra dentro até a um caule único e vigoroso, embaixo.
Não são raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos, esparsos ou repontando em tufos, abrangendo às vezes largas áreas, uma árvore única e enorme, inteiramente soterrada...
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Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas da luz. Sucedem-se meses e anos ardentes; empobrece-se inteiramente o solo esbraseado. Mas nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se agravam, às vezes, como os incêndios espontaneamente ateados pelas ventanias, atritando rijamente os galhos secos e estonados, sobre o depauperamento geral da vida, em roda, eles agitam as ramagens virentes, alheios às estações, floridos sempre, salpintando o deserto com as flores cor de ouro, álacres, esbatidas no pardo dos restolhos, a maneira de oásis verdejantes e festivos.
A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras ao pondo de os desnudar: é que se enterroaram há muito os fundos das cacimbas e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos, os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se impropriou à vida.
Então, sobre a natureza morta, apenas se alteiam os ceréus esguios e silentes, aprumando os caules circulantes repartidos em colunas poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros. E avultando, ao descer das tardes breves, sobre aqueles ermos, quando os abotoam grandes frutos vermelhos destacando-se nítidos, à meia luz dos crepúsculos, dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas, e acesos...

Os mandacarus, atingindo notável altura, raro aparecendo em grupos, assombrando isolados acima da vegetação caótica, são novidade atraente a princípio. Atuam pelo contraste. Aprumam-se tesos, triunfalmente, enquanto por toda a banda a flora se deprime. O olhar perturbado pelo acomodar-se à contemplação penosa dos acervos de esgalhos estorcidos, descansa e retifica-se percorrendo os seus caules direitos e corretos.
No fim de algum tempo, porém, são uma obsessão acabrunhadora. Gravam em tudo monotonia irritante, sucedendo-se constantes, uniformes, idênticos, todos, todos do mesmo porte, igualmente afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo deserto...

Tem como sócios inseparáveis neste habitat, que as próprias orquídeas evitam, os cabeças-de-frade, deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes, convergindo-lhes no vértice superior formado por uma flor única, intensamente rubra.

Aparecem de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali a esmo, numa desordem trágica...

E a vasta família, revestindo todos os aspectos, decai, a pouco e pouco, até aos quipás reptantes, espinhosos, humílimos, trançados sobre a terra à maneira de espartos de um capacho dilacerador... Aqui, ali, outras modalidades: as palmatórias-do-inferno, opúntias de palmas diminutas, diabolicamente eriçadas de espinhos, com o vivo carmim das cochonilhas que alimentam; orladas de flores rutilantes, quebrando alacremente a tristeza solene das paisagens...
Vingando um cômoro qualquer postas em torno as vistas perturba-as o mesmo cenário desolador: a vegetação agonizante, doente, informe, exausta, num espasmo doloroso...
Compreende-se e verdade da frase paradoxal de St.-Hilaire: “Há, ali, toda a melancolia dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!”

A luz crua dos dias longos flameja e não a anima. Reverberam as infiltrações de quartzo pelos cerros calcários, desordenadamente esparsos pelos ermos, num alvejar de banquises; e oscilando à ponta dos ramos secos das árvores inteiriçadas, dependuram-se as tilândsias alvacentas, lembrando flocos esgarçados, de neve, dando ao conjunto o aspecto de uma paisagem glacial, de vegetação hibernante, nos gelos...”

Não é, todavia, a natureza física que tem o condão de arrancar à palheta do escritor imagens, que são fotografias.
Os tipos étnicos, os caracteres das coletividades, as índoles individuais, moldadas no cadinho dos vícios ambientes, os vincos deixados nas almas pela atmosfera social fazem-se reproduzir com firmeza e são, a meus olhos, mais meritórios, porque mais difíceis de concretizar.
Tal é o estado de difusão da matéria-prima empregada.

Mas o escritor sai galhardamente da empresa.
Já viram cousas esplêndidas. Ouçam agora cousas magníficas. Eis o sertanejo, o tipo aparentemente mole, preguiçoso, nas horas da súbita transfiguração, imposta pela necessidade.

“Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moitas de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote desgarrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com seu cavalo... Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando, adiante, nas macegas altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados, rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda brida, no largo dos tabuleiros...

A sua compleição robusta ostenta-se, nesta ocasião, em toda a plenitude.
Como que é o cavaleiro forte que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caruá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira, estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção, escanchado no rastro do novilho esquivo: aqui, curvando-se agilíssimo, sob uma galhada, que lhe roça quase pela sela; além, desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento, e galgando, logo depois, num pulo, o selim; e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra, sem a perder nunca, sem a deixar no emaranhado dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoada em couro...”

São traços; mas são firmes; destacam com segurança uma das múltiplas faces de um tipo social de nossas gentes dos centros.
Há mister ver o quadro inteiro no livro. É admirável. É uma tela empolgante: desenho e colorido ajustam-se e dão-nos a ilusão da realidade viva e palpável.
Há, porém, ali cousa melhor. Caminhamos por entre as filas dos crentes e sectários do Conselheiro; parecem velhos conhecidos com quem já falamos noutro tempo ou poderemos falar ainda, tão lucidamente se destacam e como que vem ao nosso encontro:

“A multidão repartia-se, separados os sexos, em dois agrupamentos destacados. E em cada um deles um baralhamento enorme de contrastes...
Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas, – êmulas das bruxas das igrejas, revestidas da capona preta, lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras, desenvoltas e despejadas, soltas na gandaia e sem freios; as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias niveladas pela mesma reza.

Faces murchas de velhas, esgrouviados viragos em cujas bocas deve ser um pecado mortal a prece; rostos austeros de matronas simples, fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho. Todas as idades, todos os tipos, todas as cores... Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas; trunfas escandalosas, de africana; madeixas castanhas e louras, de brancas legítimas, embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor!...
..........................................................................................................
Aqui, ali, extremando-se a relanços nos acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que ressurgiam, suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado de outras faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico...
... Destaca-se mais compacto o grupo varonil dos homens, mostrando idênticos contrastes: vaqueiros rudes e forte, trocando, como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, abastados outrora, felizes pelo abandono das boiadas e dos pousos animados; e, menos numerosos, porém, mais em destaque, gandaieiros de todos os matizes, recidivos de todos os delitos...
... Prestigia-os o renome de arriscadas aventuras que a imaginação popular romanceia e amplia...
De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro e mau esvai-se-lhes contemplativo e vago. José Venâncio, o terror da Volta Grande, deslembra-se das dezoito mortes cometidas e do espantalho dos processos à revelia, dobrando, contrito, a face para a terra.
Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises duras, mas aprumado o arcabouço atlético. Estático, mãos postas, volve como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto para os céus. Logo após o seu ajudante de ordens inseparável, Lalau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o trabuco carregado.
Chiquinho e João da Mata, dois irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas entradas de Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfilando crédulos as contas do mesmo rosário...
Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Cana Brava, mal se distingue, afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias, Estevão, negro reforçado, disforme e corpo tatuado à bala e à faca, que lograra vingar centenas de conflitos, graças à disvulnerabilidade  rara. Joaquim Trancapés, outro espécimen de guerrilheiro sanhudo, que velava no Angico, ombreia com o Major Sariema, de estatura mais elegante, lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado para as arrancadas subitâneas e atrevidas...
Antepõe-se-lhe, no aspecto, o tragicômico Raimundo Boca-Torta, do Itapirucu, espécie de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino, como um traumatismo hediondo.
... O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de coração mole, segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal no gizar ciladas incríveis, espécie de Imanus decrépito, mas perigoso ainda, tomba de bruços no chão...
... Alheio à credulidade geral, um explorador solerte, Vila Nova, finge que ora, remascando cifras. E na frente de todos, o comandante da praça, o chefe do povo, o astuto João Abade, abrange no olhar dominador a turba genuflexa... No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beatinho, mulato espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo instante ao chefe supremo as novidades existentes. Completa-o, como um prolongamento, José Félix, o Taramela, quinhoeiro da mesma predileção, guarda das igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele, e de acenderem diariamente as fogueiras para as rezas... E um tipo adorável, Manuel Quadrado, olhando para tudo aquilo com indiferença nobilitadora. Era o curandeiro, o médico. Na multidão suspeita a natureza tinha, afinal, um devoto, alheio à desordem, vivendo num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas...”

Eis aí; é uma galeria de indivíduos que são como que índices ou sumários de um meio, de uma situação, de um momento.

São como feixes de fatos, cada um com seu rótulo, sua rubrica inapagável e eterna; são como expoentes indicadores das correntes subterrâneas das multidões; fórmulas lógicas, obtidas por processos indutivos, como integração completa de milhares de fenômenos observados. Mas são definições ditadas pela própria natureza: cada indivíduo é um resumo e um compêndio. Ali estão as cristalizações humanas obtidas por quatrocentos anos do labutar de uma mera cultura incongruente, cheia de falhas, grosserias e indisciplinas de toda a casta. E todas são reais e pegadas em flagrante.

Parece uma página do Purgatório ou dos quadros tétricos de Dostoievski. Mas onde o escritor projeta em cheio os raios de seu aparelho de descrever é quando traça alguma cena de nevrose coletiva. Ouvimos o esplêndido e o magnífico; ouçamos agora o surpreen¬dente. É a cena do beija das imagens, após as rezas intermináveis:

“Antônio Beatinho, o altareiro, tomava de um crucifixo; contemplava-o como o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado, e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variantes, a mímica reverente.
Depois erguia uma Virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o bom Jesus.
E lá vinham, sucessivamente, todos os santos e registros, e verônicas e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando um por um, por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se os beijos chirriantes, inúmeros, e, num crescendo, extinguindo-se-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas a meia voz, dos mea-culpa, ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas ainda, para que se não perturbasse a solenidade.
O misticismo de cada um, porém, ia-se a pouco e pouco confundindo na nevrose coletiva. De espaço a espaço a agitação crescia, como se o tumulto invadisse a assembléia adstrito às fórmulas de programa preestabelecido, à medida que passavam as relíquias sagradas.
Por fim as últimas saíam entregues pelo Beato, quando as primeiras alcançavam as derradeiras filas dos crentes.
E daquelas almas simples cumulava-se a ebriez e o estonteamento. Desbordavam as emoções isoladas, confundindo-se repentinamente, avolumadas, presas no contágio irreprimível da mesma febre; e, como se as forças sobrenaturais que o animismo ingênuo emprestava às imagens penetrasse afinal as consciências, desequilibrando-as em violentos abalos, salteava a multidão o desvairamento irreprimível.
Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas; desatavam-se movimentos impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes de desmaios. Apertando ao peito as imagens babujadas de saliva, mulheres alucinadas tombavam escabujando nas contorções violentas da histeria, crianças aterradas desandavam em choros; e, invadido pela mesma aura da loucura, o grupo varonil dos lutadores, dentre o estrépito, e os tinidos, e o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no mesmo ictus assombroso, em que explodia, desapoderado, o misticismo bárbaro...”

Nada, porém, iguala a gravura do fluxo e refluxo da troca recíproca de influências entre o grande louco e a multidão que o seguia. Feitura dela a princípio, veio a atuar como causa por seu turno; mas só chegou à posse completa de sua mesma vesânia, quando a viu compartilhada pelas gentes que o cercavam. Essas variantes sutis, que só poderiam ser notadas por uma alma pro sua vez complicada, ressaltam nestes períodos:

“Dominava-os, por fim, sem o querer. No seio de uma sociedade primitiva que pelas qualidades étnicas e influxo das santas missões malévolas compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou-o logo de não vulgar prestígio, agravando-lhe, talvez, o temperamento.
A pouco e pouco, todo o domínio que, sem cálculo, derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as conjeturas ou lendas que para logo o circundaram fizeram o ambiente propício ao germinar do próprio desvario. A sua insânia estava ali exteriorizada.
Espelhavam-na a admiração intensa e o respeito absoluto que o tornaram em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro obrigado em todas as decisões.
A multidão poupara-lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo, o esforço dessas interrogativas angustiosas e dessa intuspecção delirante, entre os quais envolve a loucura nos cérebros abalados.
Remodelava-o à sua imagem. Criava-o.
Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra...”

Belo! Belo!...
A Academia recebe em seu seio um poderoso escritor, mas um que pode colocar idéias, além de pronomes, porque estuda e medita, porque sabe ver e inquirir. Mas, afinal, é preciso generalizar e concluir.
Que lição podemos tirar do discurso, dos artigos, dos estudos do livro do Sr. Euclides da Cunha, eu digo lição que possa aproveitar ao povo que já anda cansado de frases e promessas, desiludido de engodos e miragens, sequioso de justiça, de paz, de sossego, do bem-¬estar que lhe foge, esse amado povo brasileiro, paupérrimo no meio das incalculáveis riquezas de sua terra?

É a terceira tentação a que não posso fugir, e não me furtarei a dizer meia dúzia de palavras.
Já andamos fartos de discussões políticas e literárias. O Brasil social é que deve atrair todos os esforços de seus pensadores, de seus homens de coração e boa vontade, todos os que têm um pouco de alma para devotar à pátria.

É onde pulsa a mor intensidade dos problemas nacionais, que exigem solução, sob pena, se não de morte, de retardamento indefinido no aspirar ao progresso, no avançar para o futuro.
Vós, Sr. Euclides da Cunha, em vosso discurso, aludindo célere, de raspão, aos nossos desvarios e aos nossos desengonçados e tumultuários esforços e planos de reforma, dizeis que sofremos da vesânia de reformar pelas cimalhas.
É a verdade.
Mas por quê?
Reformar pelas cimalhas e não pela base, pelo alicerce... Por quê?
De onde provém esse perpétuo desatino de tantos homens inteligentes?
Em vosso livro, logo nas primeiras páginas, estabeleceis que a nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social: – estamos condenados à civilização; ou progredimos ou desapareceremos...

Logo, é que não nos julgais no todo civilizados, e, a despeito de tantas aparências enganadoras, corremos perigo... Por quê?
Claro, existe aí um problema a resolver, uma antinomia a explicar.
Noutro lanço de vosso livro, como uma síntese dele, como a lição que brota de vossas meditações, chegastes a este resultado acerca das populações sertanejas do Brasil:

“A sua instabilidade de complexos fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes imigratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra... Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo... Além disto, mal unidos àqueles patrícios pelo solo, em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histórica, – o tempo.”

Logo, temos aqui a mais singular das situações sociais, alguma cousa de gravemente inquietante que é indispensável esclarecer para afastar, para corrigir, para conjurar, se possível, como que duas nações que se desconhecem, separadas no espaço, e ainda mais no tempo, e uma delas votada ao desaparecimento no pensar de um dos maiores talentos de nossa atualidade, um dos mais completos conhecedores de nosso povo!...

Mas essa parte das nossas gentes, destinada, a seu ver, a apagar-se da vida e da história, é a maior parte da nação e é aquela que tem mantido a nossa independência; porque é aquela que sempre trabalhou e ainda trabalha, sempre se bateu e ainda se bate...
Não há nisso uma anomalia, uma raríssima extravagância da evolução histórica? Evidentemente; e por quê?
Eis o problema.
Responder a ele cabalmente não é cousa para ser feita nas quatro palavras do final de um discurso acadêmico.
Uma vista completa do assunto exigiria, por assim dizer, o desmontar das diversas peças que formaram e vão formando o nosso povo; o serem elas estudadas uma a uma na sua constituição íntima e na grande alteração que tem sofrido pela fusão neste clima, neste meio. Haveria mister estudar o país, zona por zona, porque existem diferenciações várias a notar aqui e ali, exigidoras de diagnósticos divergentes e terapêuticas especiais. Não é aqui, claro, o lugar de o tentar.
Baste-me consignar que o nosso estremecido povo brasileiro apresenta a sintomatologia geral das nações a cujo grupo pertence, esse grande número de povos de índole e formação comunária, especialmente os latino-americanos, que têm de suportar a nova concorrência das nações de formação particularista colocadas atualmente à frente da civilização industrial do tempo: ingleses alemães, ameri¬canos, canadenses, australianos flamengos, holandeses, franceses do Norte, povos que retêm em suas mãos os capitais movimentadores do mundo moderno.

Mas apresenta essa sintomatologia, ao lado de caracteres que lhe são próprios e o individualizam mais de perto.
Indicar estes últimos, mesmo de relance, é ter uma resposta à pergunta formulada. Apontarei, por brevidade, minhas observações em frases sinópticas.
A crise universal hodierna entre a velha e a nova educação, entre a cansada intuição comunária, que procura resolver o problema da existência, apoiando-se na coletividade, na comunhão, no grupo, quer da família, quer da tribo, quer do clã, quer dos poderes públicos, do município, da província, do Estado, dos partidos, jogando como arma principal das classes ditas dirigentes a política alimentária, o emprego público, as fáceis profissões liberais ou o mero comércio, a crise entre esta intuição e a educação particularista que encara aquele problema, principalmente como cousa a ser solvida pela energia individual, a autonomia da vontade, a força propulsora do caráter, a iniciativa particular no trabalho, as ousadias produtoras do esforço, essa crise universal acha-se no Brasil complicada por causas e circunstâncias especiais de seu desenvolvimento etnológico e histórico. Entre nós a raça colonizadora, acostumada, geralmente, no comércio, e, em várias zonas do Sul e das montanhas de sua terra, à vida de um fácil pastoreio, e, no resto do país, à cultura doce, que é quase uma jardinagem, da vinha, dos frutos arborescentes, como as castanhas, as nozes, os figos, as oliveiras, e, em muito menor escala, do centeio e do trigo, foi obrigada a uma cultura rude e penosa. Recorreu, pela força, ao cativeiro de índios e negros, gentes selvagens, alheias ao trabalho agrícola.

Os mestiços das três raças eram, por via de regra, pela mor parte incorporados entre os escravos.
Os colonos reinóis, de gradações e categorias várias, se encarregavam do suavíssimo ofício de mandar...
E como não, se eram os senhores dos outros e os donos da terra?
Mas todo o mundo não podia ser no campo senhor de engenho, fazendeiro de gado ou de café, proprietário de datas auríferas ou diamantinas, o que importa dizer que grande parte, a mor parte da população, o grosso proletariado rural – não escravo – não possuía um palmo de terra, porque esta foi desde o começo ficando açambarcada em enormes latifúndios pelos concessionários das sesmarias intérminas.

O aludido proletariado teve fatalmente de acostar-se, como agregado, à patronagem dos grandes proprietários. É a origem dos doze milhões de brasileiros que habitam todo o interior do país: matas, sertões, campos gerais, chapadas, chapadões e planaltos, fora das restritas gentes das grandes vilas e cidades da costa ou do centro. Destas, dos habitantes das vilas e cidades, os mandões, diretamente vindos da Europa ou já nascidos no país, apoderavam-se dos cargos públicos ou exerciam o comércio, a mercancia, que teve, no correr de séculos, entre nós todos os caracteres de uma pirataria em grosso. O resto da população livre, o maior número, dividia-se nos povoados ainda em dois grupos, o dos que mourejavam na prática de uns ofícios reles que lhes garantiam uma existência penosíssima e o dos que resvalavam numa pobreza abjeta, repulsiva.

Ainda hoje, por essas terras além, o Brasil é fundamentalmente isto mesmo, sendo apenas a grande novidade moderna a incorporação dos ex-escravos nessa enorme massa de população proletária quer dos campos, quer das povoações. Originaram-se dessa anomalia inicial várias antinomias que ainda hoje nos atropelam e fazem manquejar. A primeira delas é a disparidade entre uma pequena élite de possuidores e proprietários e o avultadíssimo número de analfabetos ou incultos que constituem a nação por toda a parte.

Esta última extravagância agrava-se de um peculiar despropósito que, repetido a toda hora, nos jornais, nos discursos e nos escritos dos que entre nós dirigem a opinião, tem produzido soma incalculável de males, desviando os governos, e todos os que disso podiam curar, de cumprir o seu dever para com a maioria da população nacional.

Quero falar da singularíssima teima dos nossos intelectuais de toda a casta, de dizerem mal das gentes do centro, sertanejos ou não, sem se lembrarem que, há quatrocentos anos, elas é que trabalham e produzem, elas é que se batem, isto é, sem se lembrarem que elas é que têm sustentando o Brasil como povo que vive e como nação que se defende.
Aos fazendeiros e senhores de engenho tratam como adversários e maus sujeitos.
Magnatas, senhores feudais, déspotas, insaciáveis parasitas, são as gentilezas com que os brindam.

Aos homens do trabalho do campo consideram uma turba amorfa que vai desaparecer, bandos de sertanejos, jagunços, matutos, tabaréus, caboclos, caipiras, gaúchos, quase sem valia.
E não lhes ocorre repito, que essas gentes é que, com os ex-escravos, nelas hoje incorporados, criaram com todas as falhas a riqueza existente no país.

O fazendeiro exerceu e exerce ainda a natural patronagem própria do regímen agrícola ou pastoril dos países como o nosso: os sertanejos, matutos e caipiras, gaúchos e roceiros de todas as gradações – são os únicos operários pastoris ou agrícolas – com que temos contado, não metendo em conta alguns milhares de colonos que só recentemente foram introduzidos e em raras zonas do território vastíssimo.

A força de existência, em que pese aos fantasistas da população nacional, está precisamente nessas gentes do interior, nos doze milhões de sertanejos, matutos, tabaréus, caipiras, jagunços, caboclos, gaúchos...
O problema brasileiro por excelência consiste exatamente em compreender este fato tão simples e tratar de fazer tudo que for possível em prol de tais populações, educá-las nos destinos desta pátria.

O maior obstáculo a isto têm sido as literatices dos escritores e políticos que se julgam eles, esses defraudadores de empregos públicos, posições e profissões liberais, os genuínos e únicos brasileiros, a alma e o braço do povo – por isso se arvoraram em nossos diretores...
Outra singularidade latino-americana, agravada no Brasil, e oriunda das precedentes, é que não conseguimos formar ainda um povo devidamente organizado de alto a baixo.
Falta-nos a hierarquização social, o encadeamento das classes, a solidariedade geral, a integração consensual, a disciplina consciente de um ideal comum, a homogeneidade íntima.
Falta-nos a radicação à terra pela propriedade espalhada largamente, pelo cultivo, pela produção autônoma da riqueza nacional. O nosso povo está em geral desenraizado do solo ou nele subsiste como uma vegetação estranha.

Faltam-nos o aferro ao trabalho, a base econômica livre, ampla e segura, e, mais, a masculinidade da vontade, o espírito de iniciativa, a audácia do esforço do empreendimento, da luta pelo progresso e bem-estar.
Nota-se de sobra a indisciplina, o espírito de clã, a divisão e a desarmonia, a falta de solidariedade, de consciência coletiva nacional. Destarte, se por um lado não temos o operariado rural organizado, afeito ao trabalho regular e seguido, nem uma classe numerosa, por toda a parte espalhada, de pequenos proprietários da mesma espécie; porque as terras são devolutas, de heréus, ou estão nas mãos doe grandes latifundiários hoje geralmente decadentes; não possuímos, por outro lado, o vasto operariado urbano nacional organizado pelo Brasil em fora; nem a pequena burguesia proprietária, farta e abastada; nem tampouco grande burguesia comparável à das fartas nações particularistas, opulenta, poderosa, progressiva, e, menos ainda, a vasta aristocracia do dinheiro, o grupo dos milionários, dos banqueiros, dos capitalistas compatrícios empreendedores.

Não possuímos os grandes mineradores, os grandes criadores, os grandes agricultores, os grandes industriais à moderna.
Esta geral falta de base econômica estável e autônoma, que repercute na família e na índole do povo, pela incerteza dos meios e modos de viver, leva-nos a não ter, nem como os povos orientais, a estabilidade patriarcal, da uma parte, e nem de outra, a iniciativa de coragem e espírito empreendedor particularista.
É também esta uma antinomia, e das mais sérias, de nossas gentes.

Este mal provém, como se viu, das origens, da matéria-prima humana empregada no povoamento, na formação da nação e também da natureza do meio, áspero, em grande parte do país, e ao mesmo tempo enganoso, pelas facilidades outorgadas à vadiagem com a abundância de produtos espontâneos, aproveitáveis sem labor; duro para a grande e intensa cultura, doce para a vida imprevidente dos improgressivos.

A estes dois fatores fundamentais juntam-se, neste particular, efeitos que estão desde o começo atuando como causas maléficas: os vícios acumulados, por quatrocentos anos, da escravidão, da política meio de vida, da empregomania, do horror pela vida afanosa do campo no meneio das indústrias produtivas, da atração para os folgados afazeres dos órgãos oficiais, das profissões letradas e da mercancia nas cidades.
Outra grande singularidade da evolução brasileira é o fato originalíssimo que não tem sido notado e menos apreciado na sua genuína significação, e é explicável pelos fenômenos sociais e políticos já aduzidos.

Refiro-me à negação pelo Brasil dada à lei histórica, observada na milenária evolução do Ocidente, por toda a parte, quando os escravos e servos se transformaram em homens livres.
Em todo o Ocidente a mor porção daqueles transmudou-se nessa massa de pequenos proprietários agrícolas, presos, pois, ao solo pelos mais sólidos interesses, e que veio a constituir o cerne, o âmago, o nervo das nações modernas; a outra porção transformou-se nesse corpo de operários rurais, também ligados ao solo, e que é outra das bases firmes das nações fortes e futurosas. No Brasil nada disto.

Tivemos por duas vezes a solene abolição em massa. A primeira vez foi na última fase do século XVIII, quando foram libertados os escravos índios e mestiços de índios.
Fugiram quase todos para os matos e os que ficaram em aldeamentos não se transformaram em proprietários de terras e nem se entregaram à cultura.
Prolongaram uma vida de miséria, servindo ofícios inferiores até se obliterarem quase inteiramente na massa do proletariado anônimo e apagado das vizinhanças.
A outra vez foi ontem, em nossos dias, quando se libertaram os escravos de origem africana e mestiços deles na penúltima década do século XIX.
A debandada foi ainda mais geral.

O ex-escravo, que não tinha sido preparado pelo colonato, nem pela descrição do solo, devido à solene incapacidade da famosa élite de bacharéis palreiros que tem sido sempre Governo nesta terra e tem tido nas mãos os destinos do Brasil, o ex-escravo deu em geral na calaçaria e emigrou para os povoados...
Aí vive aos trambolhões nuns empregos reles.
Ali, nas cidades, como nesta capital, nenhuma aspiração elevada e nobre lhes despontou n’alma.

Aumentaram apenas a nota cômica que nos cerca por todas as faces da existência. Uma das mais características dos dois últimos decênios é o sério com que distintas e graves damas de cor imitam os trajos, os gestos, os cacoetes das mais finas arianas européias ou fluminenses, e a doce ternura com que se tratam de excelências... V. Exa. para aqui, V. Exa. para acolá. É um regalo.
Mas não era disto que havíamos mister.
A politicagem, embevecida no desfrutar dos capitais e dos braços estrangeiros, como se estes tivessem sido criados para estar à nossa disposição e nos serem ofertados de mão beijada, nada viu, de nada curou e nem sabia curar...

Pois poder-se-ia lá pensar que avezados cultores da advocacia administrativa, insignes inventores de malabarescas concessões, eles e seus aliados dos Governos dos Ministérios, dos Parlamentos, do jornalismo, espreitadores de lucros, favores e vantagens, interrompessem seus graves afazeres para pensar no povo, na plebe, nos matutos, nos sertanejos, nos ex-escravos, na lavoura!...
Afear o estilo, aleijar a frase, esquecer, por instantes que fosse, os embevecimentos idiomáticos, com esses plebeísmos rebarbativos, especialmente agora que tudo deve ser chic, como as avenidas e os palacetes da moda.
Que loucura!...
Mas eu insisto: não era disto que havíamos mister. O que precisávamos, e seria de uma vantagem máxima, incalculável, era que não tivéssemos desmentido a lei histórica; era que no século XVIII e mais ainda no século XIX a massa enorme de três milhões de escravos, ou mais, levando em conta as libertações parciais operadas em todo o correr dos dois séculos, tivesse sido transformada num corpo sólido de proprietários e operários agrícolas.
Havia meios de o conseguir, se o Governo em nossa terra tivesse sido sempre uma função dos mais capazes e não essa seleção inominada, essa floração inclassificável que tem sido o espanto das almas dignas.

E eis porque perdeu-se, em duas ocasiões solenes, o ensejo de se irem enchendo os quadros da população livre com a sua natural hierarquização. E eis porque, e é mais uma das nossas peculiares originalidades, no Brasil são só facilmente realizáveis, sem intervenção estrangeira, os fatos políticos e até sociais, que podem espontaneamente ser transformados em temas literários, em assuntos de escritos e discursos, que deixem larga margem a frases bonitas, a períodos elegantes, a meneios retóricos, eloqüentes.

Iludem os faladores toda a gente com os belos e sonoros palavreados. Apontam os díscolos como retardatários, senão inimigos da pátria e do povo, o pobre João-sem-Terra, na frase de Prudhon, que é no Brasil amaríssima realidade. Temos chegado a perder até a consciência de nossos destinos e não sabemos mais para onde nos levam.

E eis porque quando aporta em nossas plagas o estrangeiro inteligente, ilustrado, sabedor, como esse saudoso Luís Couty, cujo livro O Brasil em 1884 deveria andar em todas as mãos e estar tra¬duzido e espalhado por todas as escolas, apenas lança os olhos para a nossa população, não essa que flana na Rua do Ouvidor, julgando-se digna rival da que percorre o Bois de Boutogne ou a Unter den Linden, senão a outra, a que produz os pesados milhões com que se pagam os encargos e esbanjamentos da lista civil, do funcionalismo público, das loucuras de uma administração tumultuária ou imbecil; essa que trabalha, porque é e1a quem suporta os ásperos afazeres dos serin¬gais da cana-de-açúcar, do café, da mineração, dos criatórios e pastoreios, das charqueadas e de todos os duros misteres da produção nacional, lá fora nos campos e nos recessos do país, ou nas cidades, nas fábricas e nos mais pesados ofícios; essa que trabalha e se bate, porque é também ela que na generalidade enche os quadros do exército e da armada, e, quando chega a hora dó perigo, deixa na frase do poeta a página da vida dobrada e parte para morrer... eis porque dizia o estrangeiro, que tem olhos para ver, logo que os lança sobre o nosso tão querido e tão mal dirigido Brasil, é para ter frases como estas, verdadeiras, que nos fustigam como flamas:

“Tomemos a questão do alto, estudemos o conjunto da população. O estado funcional da população brasileira pode-se resumir numa palavra: o Brasil não tem povo!
Dos seus doze milhões de habitantes (hoje serão talvez quinze, o que não muda em nada o raciocínio), um milhão é de índios inúteis ou quase, um milhão e meio é de escravos (hoje os ex-escravos e seus descendentes andam quase inúteis, esparsos nos povoados e raros nas antigas fazendas e engenhos). Ficam nove milhões (serão, talvez, agora doze), mais ou menos. Destes, 500 mil pertencem a famílias proprietárias de escravos: são fazendeiros, advogados, médicos, engenheiros, empregados, administradores, negociantes. Acontece, porém, que o largo espaço compreendido entre a alta classe dirigente e os escravos (agora criados e empregados de toda ordem) por ela utilizados não se acha suficientemente preenchido. Seis milhões (atualmente mais) de habitantes, pelo menos, nascem, vegetam e morrem sem ter quase servido a sua pátria.
No campo serão agregados de fazendas, caipiras, mulatos, caboclos; nas cidades, serão capangas, capoeiras, ou simplesmente vadios e ébrios. Capazes todos eles muitas vezes de labores penosos, como os da desbravação das matas e arroteamento das terras, ou da criação de gados, não terão, porém, nem idéia de economia nem do trabalho seguido e perseverante.
Os mais inteligentes, os mais ativos, dois milhões talvez, serão negociantes, empregados ou criados.

Em parte alguma se encontrarão, nem as massas fortemente organizadas dos livres produtores agrícolas ou industriais, que nos povos civilizados são base da ordem e da riqueza, nem tampouco as massas de eleitores conscientes, sabendo voltar e pensar, capazes de imporem aos governos uma direção definida.”

É forçoso acrescentar que, com todos esses defeitos e lacunas, trabalham muito mais do que a ex-faustosa élite dirigente, cujos esforços negativos têm sido quase sempre em pura perda do país. São os agentes da política alimentária, cujas vantagens práticas para a nação são puramente ilusórias.

E ainda não está terminada a lista das nossas antinomias latino-americanas, nomeadamente nacionais. Uma delas, e das mais sérias, é que não tivemos nunca, durante quatro séculos, senão revoluções e movimentos políticos, que, longe de facilitarem a constituição social do povo, embaraçaram-na ao invés consideravelmente. O começo de falha revolução social que se devia iniciar com a emancipação dos escravos, foi logo entravado e desviado de seu curso pela revolução política da proclamação da República.

O movimento social que devia prosseguir no intuito de se criar um povo de pequenos proprietários agrícolas e de trabalhadores livres, todos ligados à terra, já com elementos nacionais, já com elementos alienígenas, remodelando a propriedade territorial, parou de súbito e tudo atordoou-se com a inesperada e intensa reviravolta política, que atraiu todas as atenções. Veio à tona, um momento ao menos, o militarismo, cercado de abusos.
Surgiu de todos os lados o espírito de revolta e desordem. Reapareceu a velha tendência oligárquica mais ou menos apagada pela ação do Império e retomou posição em todos os Estados. Desencadeou-se febrilmente o espírito de ganância e fortuna fácil ou a loucura do encilhamento; parou a colonização; surgiram as crises do trabalho e da produção.
Encilhamentos, revoltas, das quais a de Canudos, tão vigorosamente descrita pelo nosso consócio, foi apenas um rápido episódio, trouxeram a bancarrota, a moratória, o funding-loan, a desordem econômica geral.

E como era preciso que nos iludíssemos, fascinando-nos com faustosas miragens, decretaram-se avenidas e boulevards, multiplicando fantasticamente os empréstimos, avolumando as dívidas a um ponto inacreditável, e gravemente perigoso.
O capital estrangeiro, sempre sôfrego por empregar-se, canalizou-se para cá, mas com a segurança de garantias definidas na hipoteca de rendas aduaneiras e, em vários pontos, com agentes seus nas repartições fiscais.

A escravidão foi abolida e com ela a realeza; mas, com as nossas loucuras políticas todas feitas pelas admiráveis classes dirigentes, não curamos de educar as populações no trabalho remunerador e autônomo, não cuidamos de preparar o operariado livre nacional, nem da colonização habilmente encaminhada, nem da exploração da terra pela indústria magna – a da cultura.

Chegamos destarte à suprema degradação de retrogradar, dando de novo um sentido histórico às oligarquias locais e outorgando-lhes nova função política e social, que estão a exercer nos Estados com o mais afoito desembaraço: e essa nova função vem a ser a consciência geralmente espalhada da impossibilidade de se deitar uma oligarquia abaixo sem que se levante outra, porque ou oligarquia ou anarquia!...

E mais, digo-o com dor, chegamos ao ponto de não poder atirar em terra qualquer um desses governichos criminosos e asfixiadores senão pela traição ou pelo assassinato!
Com essas nefandas preocupações políticas, cujo principal móvel é fazer uma parte da população trabalhar para sustentar a outra, não admira que seja detestável o estado social da nação e peculiarmente instável e embaraçosa sua posição econômica.
Não admira que se levantem clamores constantemente de todos os lados. Inteligente, a seu modo, a afanosa élite sonha reformas aptas a calarem os brados das populações e mais aptas ainda a conservá-la na direção dos negócios.
É então que surge o negativo esforço de reformar pelas cimalhas, na vossa frase, Sr. Euclides da Cunha. No principal, o estado social do povo que deve ser remodelado por uma educação adequada à vida moderna, e pelo aproveitamento hábil da colonização estran¬geira e nacional, não se cogita.

Nas suas reformas começam pelo fim. Julgam que com o alargamento de ruas podem resolver os tremendamente inquietadores problemas brasileiros. A nação chegou ao século XX, o século em que se vai resolver o seu destino, inteiramente desapercebida para a luta.
A crise de nossa transformação para o moderno viver, tivemos a infelicidade que viesse a coincidir com o surto assombroso de força a riqueza dos grandes povos progressivos de formação particularista. Assaz temos já sentido a garra do leão em nossas carnes.
As forças vivas da economia da nação estão passando ou já estão quase todas nas mãos deles: o grande comércio bancário, o farto jogo dos câmbios, o alto comércio importador e exportador, as melhores empresas de mineração, de viação, de transportes, de navegação, de obras de toda a casta – acham-se nesse número.
Classes inteiras da antiga mercancia nacional desapareceram na miséria ou debatem-se nos paroxismos de um morrer inglório, como essa dos comissários de café.

A singular rubiácea – incrível fato! – serve hoje para enriquecer com milhões as casas importadoras do Havre, Hamburgo, Londres, Nova York e as filiais exportadoras que aqui montaram, além dos grandes torradores estrangeiros, e só não chega para enriquecer quem a produz: o fazendeiro nacional reduzido à miséria com a agravação dos impostos, e o operário assalariado que vence mínimas pagas por seu trabalho...
Só falta que os milionários alienígenas, blindados pelos trusts, se apoderem diretamente das fontes da produção das fazendas. Caminhamos para lá, porque esta evolução já está iniciada.
Deste modo, claro, não é de reformar pelas cimalhas que havemos mister.

Não estamos no caso de ter academias de luxo, quando o povo não sabe ler; de ter palácios de Monroe, quando a mor parte da gente mora em estalagens e cortiços e as casas de pensão proliferam, e de ter avenidas à beira-mar e teatros monumentais, que vão ficar fechados, quando não temos fartas fontes de renda, quando a miséria é geral e quase todas as cidades e todas as vilas do Brasil são verdadeiras taperas; de ter cá a reunião do Congresso Pan-Americano, para dar-lhe, como ilustração, as trucidações de Mato Grosso e o assassinato de deputados e senadores, em pleno dia, nos desregramentos de uma política feroz!...
Não estamos no caso de contrair empréstimos loucamente avultados e ruinosos para os aplicar em obras suntuárias, quando os serviços mais simples estão por organizar por todo o país; quando temos enorme deficit, não falo do orçamentário, o deficit da União, dos Estados, das Municipalidades, falo do deficit do povo, aquele que os economistas chamam deficit de substâncias, porque, possuindo o país talvez mais fértil do mundo, precisamos de comprar fora a mor parte das cousas indispensáveis à vida... e assaz considerável parte da população desceu até à degradação do jogo do bicho...

Os governos, os chefes políticos, os diretores dos partidos, os grandes, os potentados, todos os que formam essa classe dirigente, que nada dirige, não têm querido cumprir o seu mais elementar dever para com as populações nacionais, inquirindo de seus mais inquietantes males, de suas mais urgentes necessidades. A literatura não o tem também cumprido, estudando-a, dizendo-lhes a verdade, educando-as, estimulando-as, corrigindo-as... Entretanto é urgentíssimo que nos aparelhemos. A situação é esta:

O grande proprietário e produtor de toda a ordem do interior perdeu o escravo, nervo do trabalho; não sendo-lhe possível reduzir o colono estrangeiro, nos pontos onde ele existe, à condição do antigo trabalhador, não tem tido a plasticidade exigida para a transformação imposta pelo novo estado social. E, como não tem capacidade por si para o trabalho, nem o encontra amplo na população rural ambiente, nem lhe ocorre dividir os enormes latifúndios e tentar a criação da pequena exploração agrícola, deblatera-se e decai.
Perdeu o Brasil o quase monopólio do açúcar, do ouro, dos brilhantes, está muito abalado no café, e, pelo sistema seguido no Amazonas, não admira que venha a ficar abalado também no da borracha; e que fará ele?
Isto nos seus eminentes e culminantes ramos econômicos, nas suas mais pingues fontes de riqueza.

O grosso da população é paupérrima e desarticulada. Nos campos, nas roças, nos sertões, no interior, produz, mas produz pouco e sem sistema. Nas vilas e cidades, quase nada produz em pequenos e mal organizados ofícios e um pouco mais nas modernas fábricas, instaladas em vários pontos onde o operariado geme, porém, nas garras de um capitalismo que se poderia chamar quebrado: porque nós não temos grandes fortunas, fartas somas acumuladas.
Um funcionalismo incontável se vai encarregando de encher o vácuo. É o caso de concluir convosco, Sr. Euclides da Cunha: ou nos transformamos pela base ou sucumbiremos.
Vós vos referistes aos esquecidos e desavisados sertanejos de entre o Itapicuru, da Bahia, e o Parnaíba, do Piauí. Não vejo motivo para essa seleção da morte, essa escolha dos que vão desaparecer!

Desapareceremos então todos; porque todos sofremos fundamentalmente dos mesmos vícios e defeitos. Mas há alguma cousa a tentar para resistir. Olhemos para o Japão; transformemo-nos como ele. Nesta ordem de assuntos, dizia-me, não há muito, um inteligente viajante estrangeiro: Vós brasileiros entrastes agora numa grande febre de melhoramentos nesta cidade e creio que noutras pele país em fora. Sim; é fato. – Mas, obtemperou, tendes tido idéia de iniciar a colonização e povoamento nas admiráveis terras do Rio Branco, reserva providente, que será a única base que tereis para manter a posse do vale amazônico? – Não. – Tendes tido o cuidado de sistematizar os trabalhos dos seringais, vedando o estrago das plantas, e, principalmente, tendes procurado prender ali em pontos vários a população ao solo, pela agricultura e indústrias estáveis? – Não. – Tendes providenciado para que renasça nas vossas extensíssimas zonas pastoris, desde o Norte até às fronteiras do Rio Grande, a excelente indústria da criação em todas as suas múltiplas variedades? – Não. – Tendes, com o sistema das barragens romanas, corrigido as condições do solo de vosso país na famosa região das secas? – Não. – Haveis cogitado do renascimento da indústria do açúcar, fonte outrora de vossa riqueza, e que, por cuidados especiais, pode levar de vencida a beterraba, atenta a superioridade incalculável da cana? – Não. – E o da magnífica indústria da mineração, noutro tempo tão florescente? – Não. – E haveis, sem dúvida, já vos preocupado com o florescimento das culturas do algodão brasileiro, que não tem superior no mundo, e, peculiarmente, com a do tabaco, que rivaliza com o de Cuba? – Não. – Com certeza, porém, tendes atendido, com peculiar carinho, à produção dos cereais nas regiões aptas do Norte e Sul, para que não andeis a comprar fora os meios de subsistência? – Não. – Sem a menor dúvida, andais preocupados com os meios práticos do povoamento da terra, aproveitando o que se pode chamar a colonização nacional, atraindo para o trabalho rural as populações deserdadas, esses esforçados cearenses, por exemplo, fazendo-lhes concessões, dando–lhes terras, meios de trabalho? – Não. – Haveis, em compensação, envidado hercúleos esforços para a difusão cuidadosa dos colonos estrangeiros por todas as boas zonas brasileiras, no intuito de ir reforçando as gentes existentes? – Não. – E, nomeadamente, estais preparando a assimilação dos núcleos germânicos que subsistem íntegros em terras vossas? – Não. – Mas não vos deve, por certo, ter escapado a necessidade urgentíssima de articular o país com vias-férreas de norte a sul e de leste a oeste, vias-férreas que levam sempre consigo o povoamento do país sem falar em estradas vicinais? – Não. – Afinal, porém, haveis acabado com os velhos abusos, com a famosa moleza do meridional, estais, por uma educação rija, segura, forte, enérgica, adequada, transformando o caráter nacional e preparando-o, pela disposição de coragem, espírito de progresso, de atividade, de iniciativa, de ardor pelo trabalho produtivo, para dispensar os hábitos comunários, a tutela do Estado e outros achaques latinos que têm sido a praga de nossas gentes? – Não. – Então, meu caro senhor, não tendes feito nada!... Tendes sido apenas o joguete do capital estrangeiro, sôfrego por emprego a bom juro, e de certas corporações ou indivíduos, postos por ele a seu serviço, e que precisavam de apanhar grossas somas numa espécie de encilhamento... Não consta que, em todo o correr da história de mais de dez mil anos, alargamentos de ruas e aberturas de avenidas numa cidade qualquer, mero luxo a que as nações se entregam quando, cansadas de riqueza, entram a caducar, tivessem sido meio de solver os fundos males sociais, as gravíssimas inquietações de um povo!

Despediu-se e deixou-me triste. Tinha-se desmoronado, a meus olhos, todo o prestígio da Avenida à Beira-Mar, por onde eu já andava a ver desfilar o Brasil glorioso e próspero, dando leis ao mundo... E mais ainda essa fantástica raridade do Canal do Mangue, que devia ofuscar todas as Venezas existentes e por existir... E, todavia, o programa esboçado, a correr, em meia dúzia de palavras por meu interlocutor estrangeiro, é o que temos a fazer, especialmente na sua última parte. Se não, cairemos na vossa alternativa, Sr. Dr. Euclides da Cunha. O Brasil progredirá, é certo; porque ele tem de ser arrastado pela enorme reserva de força, poder e riqueza, que está nas mãos de três ou quatro grandes nações postadas à frente do imperialismo hodierno. Progredirá, quase exclusivamente, com os braços, os capitais, os esforços, as idéias, as iniciativas, as audácias, as criações dos estrangeiros, já que não queremos ou não podemos entrar diretamente na faina, ocupando os primeiros lugares como colaboradores.

Progredirá, certo; porque, afeiçoado o país pouco a pouco, a seu jeito, eles, de posse das grandes forças produtoras, de todas as fontes de riqueza, virão chegando oportunamente e tomando posição seleta entre os habitantes da terra; e, se não estivermos aparelhados, apercebidos, couraçados por todos os recursos da energia do caráter, para a concorrência, iremos, nós os latino-americanos, insensivelmente, e fatalmente, para o segundo plano...
Assistiremos, como ilotas, o banquetear dos poderosos; ficaremos, os da élite de hoje, na mesma posição a que temos mais ou menos geralmente condenado os negros e índios e seus filhos mais próximos que trabalharam para nós...

Triste vingança da História!
Sabe Deus a mágoa com que o digo...
Portanto, excelsior, excelsior! Sursum corda!
Trabalhemos, eduquemo-nos, reformemo-nos para viver...