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Discurso de posse

Designando-me um lugar em vossa Companhia, senhores acadêmicos, não vos oprimiu o critério dos predicados afins, no flagrante da aproximação, entre homens que se revezam no plano superior da cortesia espiritual. Longe das preferências culturais que tanto solicitaram a atividade de meu antecessor, nem mesmo no convívio social pude senti-lo de perto; seu contemporâneo e menor entre os da geração universitária que lhe admirou a figura solene de reitor, quando por essa época o conheci, pessoalmente, já seu merecimento lhe ganhara singular prestígio. Do honroso encargo de evocar sua memória, recolhi ensinamentos no vulto das grandes impressões, e, meditando sobre uma vida de longa paciência, certo não chegarei a projetá-la quanto em apreço está a pedir; será o castigo da primeira amargura, transparente neste transe que assinala desproporções, humilha no resgate uma divida de muito respeito e quase desmerece o ardor místico no intento da contemplação.

O patrono da cadeira, Teófilo Dias de Mesquita, era natural do Maranhão, onde fez o curso de humanidades. Colaborou nos jornais acadêmicos e na imprensa diária de São Paulo. Em 86 redigiu com Martim Francisco Júnior O Provinciano, em cujas páginas começou a publicar A Comédia dos Deuses. Foi professor, advogado, político, orador, polemista, mas só se salientou, realmente, como poeta – “possuía a divina centelha, era um verdadeiro, um grande poeta, desses que fazem o orgulho de uma literatura e de um povo”, como disse o fundador desta Cadeira, recordando sua vida e obra literária.

Do livro de estréia Flores e Amores, publicado em 74, ainda no Maranhão, não há, talvez, nem um exemplar. A Lira dos Verdes Anos, de 78, descrevendo a terra natal, começa ao som destes ritmos:

Lá na terra formosa, onde os palmares
com fronte altiva, devassando as nuvens
roçam os céus azuis......

Embora tentado pela sedução da forma, não foi um parnasiano. Em Fanfarras a inspiração de Baudelaire e de Sul1y-Prudhomme aparece em alguns de seus versos, aliás, de menor engenho poético que “A Matilha”, o belo poema, “que vale todo o livro”, no conceito de Teófilo Braga. Rodrigo Octavio, que possui as obras do poeta, a começar do segundo volume, dele fala com entusiasmo, narrando as excursões que juntos faziam pelos arredores de São Paulo, “e nessas longas caminhadas, numa palestra calma e sedutora, referia coisas antigas e curiosas do seu Maranhão, onde fora soldado e chegara a sargento, e reminiscências interessantes de Gonçalves Dias, seu tio e glorioso predecessor na dominação do verso”.

Comentando os versos portugueses da primeira parte do Ahasvérus, de Edgar Quinet, na versão de Teófilo Dias, o grande escritor lusitano Pinheiro Chagas louva a riqueza vocabular e o metro variado, que lhe dá graça e fortalece a expressão. E conclui: “à sublimidade da idéia correspondeu a sublimidade da execução. O livro do sr. Teófilo Dias é digno do pensamento de Quinet, e a sua Comédia dos Deuses há de tomar, entre as obras-primas da nossa poesia neste século, um lugar eminente.”

Na “Aspiração”, que inicia as Fanfarras, diz o poeta:

A vida não se esgota e vai perpetuamente
Do esboço às perfeições, harmônica, ascendente.

Falando do ideal:

Não te pode sustar a força nem a injúria:
O tufão não suspende aos rios a corrente!

Teófilo traduziu em ritmos primorosos a poesia de Baudelaire, Victor Hugo, Heine, Leconte de Lisle. Como em Raimundo Correia, seus versos parecem mais perfeitos e viçosos que no idioma original. A musa de Hugo sobre a partida ganha, em nossa língua, maior e mais suave expressão lírica:

Eu vivo do ar que respiras
E como, dize-me agora,
Ficar, se tu te retiras,
Viver, se te vais embora

E ainda:

O amor às almas ensina
Como o universo é bendito,
E esta chama pequenina
Inunda todo o infinito.

Que direi à selva umbrosa?
E à triste flor que amanhã
Interrogar-me chorosa:
Onde se foi minha irmã?

E que me importam destino,
Virtude e lira sonora?
E, sem teu riso, divino,
Que me importa o rir da aurora?

Que farei, sem mais desejos,
Sem ti, sem luz e sem cantos,
Sem teus lábios – de meus beijos,
Sem teus olhos – de meus prantos?

Não me consolo de passar adiante sem reproduzir de Teófilo Dias um quarteto inspirado pelo sino:

É doce, e ao mesmo tempo amargo, noite afora,
Pelo inverno, escutar junto ao fogo, que fuma,
O lento desfilar das lembranças de outrora,
Dos sinos ao tanger, que sonoriza a bruma.

Um critico português, Teixeira Bastos, assim se referiu ao autor dos Cantos Tropicais e Fanfarras:

Teófilo Dias é um poeta de raça. Sobrinho do grande lírico, Gonçalves Dias, parece ter herdado dele o estro poético e a aspiração da glória. Da moderna geração brasileira é talvez o que mais diretamente deriva da corrente romântica, profunda e belamente sentida no Brasil por Gonçalves Dias, por Castro Alves, por Casimiro de Abreu, por Álvares de Azevedo, por Junqueira Freire, dos quais é um continuador de talento e não um imitador vulgar, como tantos outros.

Na segunda parte do livro, o poeta, tomado desse ardor profético que raia pela sublimidade, prediz a aurora de nova civilização, para a qual outros seriam os ideais de arte. E antecipa o novo credo:

O pensamento audaz, esquadrinhando os mundos,
Calcinou, sulco a sulco, os germes infecundos
Da divina semente, estéril e vazia.

O nome de Teófilo Dias no espaldar da Cadeira 36 traduz, na mercê de formoso destino, a admiração comovida de seu fundador: patrono e acadêmico fizeram-na soberba e refulgente; e até a nuvem que ora passa parece esgarçada aos reflexos da glória que lhe beijou o berço e lhe guarda a sobrevida no caminho sem fim da posteridade.

Na vida de Afonso Celso de Assis Figueiredo, depois Conde de Afonso Celso, o primeiro aspecto que considerar, cronologicamente, é o da atividade política.

Eleito deputado em 1881, apenas egresso da Faculdade, sua eleição coincidiu com a aplicação da famosa Lei Saraiva. Dessa fase surgiu um livro de memórias – Oito Anos de Parlamento, em que começa relatando as peripécias da campanha eleitoral, conduzida a esforços temerários em pleno sertão mineiro.

A publicação rememora curiosidades da vida política, impressões negativas da colaboração parlamentar na obra de governo, conceitos, pessoais sobre os problemas da época, inclusive os conselhos de Martinho Campos para fazer carreira como deputado, estes, principalmente, fora de sentido, agora em que nem sequer há deputados. Suas reminiscências parlamentares evocam figuras políticas e retratam perfis interessantes. Entre os oradores, mais notáveis lhe pareceram Gomes de Castro, Ferreira Viana, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Andrade Figueira. Outros lhe mereceram gratas referências nas justas da eloqüência parlamentar: – Ulisses Viana, Aristides Spínola, Prado Pimentel, Cesar Zama, Duque Estrada Teixeira, José Mariano, Pereira da Silva, Lacerda Werneck, os dois Martim Francisco, Amaro Bezerra, Coelho Rodrigues, Duarte de Azevedo, Jaime Rosa, Junqueira Aires.

Incidentes diversos, alguns de feição policroma, outros menos originais, embora bem contados, refere o precioso depoimento. Naqueles tempos, os governos menos estáveis contentavam maior número, e assim preservavam o País de fermentos revolucionários; os sismógrafos políticos eram menos sensíveis às conspirações, talvez ainda menos aos boatos de conspiração; não faltavam os casos de inferioridade moral, desprimor e intenção bifronte, que são de todas as épocas, porque participam da condição humana. Certa vez, por ocasião da queda de um ministério, um deputado escrevera, ao mesmo tempo, a um ministro demissionário e ao oposicionista na iminência de galgar o poder. Aquele manifestara seu pesar, dizendo que o País ia sofrer profundamente com a exoneração dos patriotas que o serviam; com o outro congratulava-se, calorosamente, pela queda de figuras sem idoneidade, que levariam a Pátria ao abismo. Na precipitação do momento, troca os endereços, e as duas cartas, redigidas à mesma hora, em papel igual, com a mesma letra, foram confrontadas pelos destinatários.

De outra feita, um chefe local escreveu a um senador nos seguintes termos: “Exmo. Amigo e Senhor: Constando-me que vai para o governo o ilustrado partido de V. Ex.a, apresso-me, indagando se isto é verdade, em pedir notícias da preciosa saúde de V. Ex.a e da Exma. Família.” O senador singelamente respondeu: “Como mão se confirma o boato da ascensão do meu partido ao governo, deixo de mandar notícias de minha saúde e da minha família.”

Bosquejando a traços rápidos a fisionomia de uma sessão parlamentar, o autor relevara seu interesse, às vezes dramático, principalmente no caso das interpelações ao governo, que os ministros eram obrigados a responder; debate solene era o da resposta à fala do trono. No seu tempo, a campanha de maior fôlego foi a da Abolição. No começo da legislatura de 86, Afonso Celso era o único abolicionista declarado do parlamento brasileiro. Depois vieram mais três, todos da Bahia: Aristides Spínola, Cesar Zama e Elpípio de Mesquita. Os anais do Congresso provam o ardor de suas iniciativas pela redenção dos cativos, seu entono de combatente voltado para os propósitos liberais. Não lhe valeu como favor, senão como justo prêmio, o título de membro honorário da “Confederação Abolicionista do Brasil”. Em maio de 88, lida a proposta do governo, que abolia a escravidão, fez parte da comissão nomeada para dar parecer, tendo por companheiros Duarte de Azevedo, Joaquim Nabuco, Gonçalves Ferreira e Alfredo Correia.

Vale recordar que para a grande cruzada civilizadora foi genuína e transcendente a atuação de Castro Alves, que em 1865 iniciara o seu apostolado, tornando-se desde logo a maior figura nacional do movimento abolicionista; não devemos duvidar que tivesse sido um dos inspiradores de Afonso Celso, também poeta e sensível aos surtos condoreiros do predestinado sublime que cantou a aurora da magna vitória liberal. A fulguração do gênio alcança então a desdita suprema:

Ser escravo é nascer ao alcouce escuro
Dos seios infamados da vendida,
Filho da perdição no berço impuro
Sem leite para a boca ressequida.
É ver, viajante morto de cansaço,
A terra – sem amor – sem Deus o espaço.

E como se partisse do próprio peito cativo:

Ai triste que eu sou, escravo,
Que vale ter coração?

Duas grandes idéias liberais que levedaram no país, a pouco trecho uma da outra – a Abolição e a república, vingaram sem convulsões sociais. Quase se processaram num ambiente de normalidade e calmaria política. Afonso Celso fez profissão de fé republicana no discurso de estréia na Câmara dos Deputados, em 1882. Por esse tempo não havia campanha definida em organização de combate ao regime vigente; sua colaboração legislativa fez-se tacitamente, ao lado do partido liberal. A República, ele a queria sem as vicissitudes revolucionárias que acompanham as transições radicais; pleiteava-a como sadia aspiração de liberdade, fortalecida no ânimo em flor das novas gerações; e, na conformidade destes princípios de moral política, no seu tirocínio parlamentar, além da campanha de emancipação dos escravos, sugeriu medidas em prol da instrução pública, defendeu a descentralização administrativa e o revigoramento do município, proclamou a necessidade do registro civil, o auxílio ao teatro nacional, a abolição da pena de morte, o recenseamento no país. O advento da nova forma de governo afigurava-se-lhe inevitável em 1886; mas para alcançá-la, a ponto de servir ao interesse nacional, era mister fazer “à Nação o mesmo que o agricultor faz às terras da sua lavoura: derrubar os troncos inúteis, queimá-los e revolver o solo, antes de lhes lançar novas sementes”.

Pouco mais se definiriam no país a etiologia das forças latentes, a colaboração dos fatores imponderáveis, a formação do ambiente, em uma palavra, a flutuação do espírito novo – a marcha para a república. Já então, afirmava Joaquim Nabuco, “era mais corajosa a manifestação de fidelidade às instituições monárquicas, que ser republicano”. Mais tarde, na Constituinte, Saraiva, homem de Estado que tanto serviu ao regime passado, assim se exprimia: “chegou o momento em que fiquei persuadido de que o País faria a república; as classes conservadoras, por este ou aquele motivo, estavam republicanas; a mocidade, nesta não falemos, porque em todo o tempo foi republicana; mas havia uma sorte de vertigem: nenhum homem se julgava talentoso, nem independente, se não fosse republicano.”

A 15 de novembro de 89, inaugurada outra ordem política, a maneira por que se processaram os acontecimentos, a fatalidade das novas correntes, a inversão dos valores, a incidência de outros numes e improvisas devoções, para logo arredaram Afonso Celso do eito em que militara, embriagada a ilusão na ânsia pela república. Novo ciclo se desdobra à sua atividade social e política: depressa o republicano na monarquia se tornava monarquista na república. Na evolução de sua vida há de pairar como imperativo de hombridade política esse lance admirável de reversão, de aspecto contraditório, mas genuínamente nobre e desprendido, capaz de definir nos domínios da orientação generosa os impulsos heróicos da personalidade. Vamos ver como essa reviravolta intrépida foi trabalhada e sentida, como foi ela graduada e erguida nos propósitos de verdadeiro patriotismo, superiormente afirmado em razões de inteligência e de coração.

No roteiro do astro uma inflexão luminosa, em belo e nervoso aceno à admiração contemporânea!

De novo, em forma, o combatente político

Em 1895 reunia em volume sua colaboração no Commercio de São Paulo, sob o título de Guerrilhas. São artigos de combate às idéias e atos do governo na antemanhã da república, ou, como ele próprio diz, “pequenas e indisciplinadas escaramuças que intentam picar os flancos do inimigo, cônscias de lhe não poderem causar dano apreciável”. Revive o político militante, guardando o posto noutra trincheira, e já então, monarquista declarado, mais forte na peleja contra a república que o liberal e republicano contra a monarquia. Um dos mais interessantes capítulos do livro é o que se dirige “aos srs. anônimos”. É o elogio da apostasia, em resposta ao epíteto constante nas cartas anônimas. Revidando de público, serenamente, às agressões ocultas e irresponsáveis, Afonso Celso se revela o mesmo homem, sempre igual, lhano e superior, baixando, aliás, de nível, voluntariamente, para responder a quem começa o desapreço a si mesmo, desfigurando-se covardemente até a rasteirice ignóbil do anonimato. Convenhamos, todavia, que só quem de si nada tem – nem mesmo uma simples designação de sexo, como dizia Medeiros e Albuquerque – mascara-se para agredir e “comporta-se como sua natureza lhe indica: trahit sua quemque voluptas”.

Numa página memorável, estuante de dignidade humana, ele diz: “Manifestei-me outrora republicano e presentemente monarquista. Modificam-se-me as convicções. Deu-se comigo o mesmo que se deu com a quase totalidade dos políticos ora figurantes. A diferença consiste em que o meu republicanismo terminou no momento em que o deles emergiu, isto é, a 15 de novembro.” E o político apóstata, reverberando estímulos novos, justifica: “Todo aperfeiçoamento, todo adiantamento da ciência constitui uma apostasia; toda palavra humana, todo discurso, toda prédica, todo livro, importa uma provocação à apostasia, porquanto ninguém fala ou escreve para converter convertidos, porém para incutir idéias de progresso nos retardatários, corrigir os que andam em erro, inovar, em suma. Assim, instrução, educação, leitura, tudo sugere a apostasia, tudo se destina à apostasia, tudo conduz à apostasia.” Dá o Autor as razões de sua convicção, qualificando em primeiro lugar o dever de acompanhar a seu pai, o homem de Estado que recolheu os últimos alentos do governo monárquico. E afirma numa encantadora expansão: “Desvaneço-me de confessar que me subordinei a meu pai, em quem, sobre considerá-lo o melhor dos pais, eu via um estadista de primeira ordem, de alta envergadura, profundamente patriota, preparado como nenhum outro para promover a felicidade do Brasil.”

Bela manifestação de amor filial, que, vezes outras, dava de si o melhor dos filhos! E não somente esta. Recebendo a notícia de ter sido seu pai banido do país nos primeiros dias da república, dizia: “O governo provisório não me considerara digno da mesma honra, ou rendera, talvez justiça a meus sentimentos, compreendendo que o exílio de meu pai importava o meu.” Tempos depois, no lance trágico do assassínio de Gentil de Castro, a solicitude filial salvava o Visconde de Ouro-Preto de sorte par, retirando-o quase à força de um trem de Petrópolis, assaltado pela multidão em fúria, destravada na irresponsabilidade do contágio mental.

As outras razões de sua profissão de fé retroativa foram subordinadas aos fatos conseqüentes à implantação do novo regime, sem dúvida respeitáveis do ponto de vista em que se colocou em face dos acontecimentos.

Com a república, sua carreira política não se encerrou; é certo que não mais exerceu cargos eletivos ou de administração, que mais tarde recusou, fiel como sempre às nobres inspirações do brio pessoal. Não lhe esmoreceu, entretanto, o espírito combativo, sempre à prova em defesa do Brasil, dos forais de sua grandeza e anelos de progresso, caminho de melhores tempos; o lume da fé patriótica jamais se apagara no grande brasileiro, e, incendido a espaços, adquiria renovado vigor quando o clarim da nacionalidade tocava a rebate, chamando a postos valores sociais capazes de atuação defensiva ou reivindicadora. Foi assim que porfiou sempre na esfera intelectual o seu espírito de brasilidade, termo seu, depois aforado nas condescendências evolutivas da língua. Na imprensa e na cátedra, como na tribuna do Instituto Histórico, sempre se revelara a índole essencialmente brasileira de suas cogitações, expressa a fulgor na campanha nacionalista, trovejada na exaltação do amor pátrio. O entusiasmo permanente, discreto na aparência, afirmava-se na realidade das manifestações oportunas, e o patriotismo, como o tempo à roda dos dias, aquecido e retemperado ao ritmo das estações, toma o colorido dos tons de primavera, como se clareasse também para as coisas humanas a vida que palpita no revérbero das manhãs de sol. Seu nacionalismo primaveril no antecrepúsculo da vida foi, sem dúvida, uma demonstração de perene altivez patriótica.

A 17 de março de 1931, a propósito do seu jubileu, dizia ele: “Conservara as idéias que, moço, assim propugnou em 1881 o ancião de agora, no fim de sua longa jornada de desilusões? Conserva-as, sim; mas a vida lhe ensinou que as revoluções devem ser mutações regeneradoras, tendentes sobretudo ao progresso moral, ou conforme as concebeu um pensador: legítimas no seu intuito, vastas nos seus princípios, moderadas nos seus atos, felizes nos seus resultados, duradouras na sua obra.”

Na plenitude da afirmação assim se identificava, por volta de meio século, a coerência de uma vida política!

O prosador e memorista - Cenas da vida passada

Apresentando o livro Vultos e Fatos, disse o vosso ilustre confrade: “Quando estudante alimentava o autor veleidades literárias, a par de muitas outras ilusões.” Ocupações e preocupações outras o afastaram dos primeiros amores, às vezes dos mais fiéis nos votos e tendências pessoais. E acrescenta que não se havia curado, entretanto, da mania de escrever. Avultavam “em sua gaveta folhas e folhas de papel, rabiscadas a esmo, nos lazeres da política, da advocacia e das constantes viagens”.

Tratando dos vultos que defrontou descreve os pastores de homens que conheceu. São impressões pessoais, hauridas em breves contactos. E assim desfilam, ao correr de rápidas notas, algumas figuras dos chefes e ex-chefes de Estado. Certa vez, viajando com Nicolas Piérola, do Panamá, a caminho do Peru, foi chamado noite alta para ver o ditador, salteado por subitânea doença. Como seu nome viesse precedido do título de doutor na lista de bordo, teve que ver o General, apelando para um dicionário de medicina popular. E na medicina de ocasião, ainda que ao revés da indicação terapêutica, a força medicadora da natureza acudiu ao médico à força, como, não raro, aos profissionais de carreira sói acontecer.

Em sua excursão aos Estados-Unidos teve Afonso Celso o ensejo de conhecer a capital do território de Utah, a florescente Salt Lake City, onde vive e prospera a seita polígama de Smith. A cidade fica “situada num vale, cercada, ao longe, de altas montanhas em anfiteatro, das quais se destacam alcantis agudos, cobertos de perpétua neve”. Maior que o encanto geográfico é a curiosidade social que em terras americanas tornou dogma o ideal da poligamia. Combatidos sem tréguas, seus adeptos decidiram fugir à civilização, buscando remota região onde se instalaram e, em menos de 30 anos, conseguiram transformar um sítio inóspito em adiantada aglomeração humana de mais de 25 mil habitantes.

Entre os princípios codificados, quase todos importados da religião cristã, numa investida de assombrosa coragem social, o mormonismo adotou a poligamia, incluída e estilizada qual mandamento do novo credo. Tomando à letra o preceito bíblico – crescei e multiplicai – acreditava Mr. Common, maior da seita, que só a poligamia poderia realizá-lo, assim a par da natureza humana, sem hipocrisia. E argumentava:

Quantos filhos, no máximo, pode ter uma mulher? Digamos vinte; pois um homem pode procriar mais de duzentos. É, pois, uma força criadora que não deve ser dissipada. A monogamia é antinatural; ilude as fatalidades do organismo. Socialmente, com a poligamia desaparecem as infidelidades, os escândalos, os subterfúgios desleais e as dissimulações indignas. Não há filhos ilegítimos, bradava o chefe, e respeitamos todas as mulheres que amamos. Somos obrigados a sustentar as nossas esposas e nossas sociedades conjugais são tranqüilas, prósperas e felizes.

E apela para os livros santos: “Abrahão foi polígamo; Jacob teve quatro mulheres. David herdou as de Saul; Salomão contou-as por centenas e é apelidado o sábio dos sábios.” E exclama: “O dogma garante a castidade das mulheres e a saúde dos filhos; nosso mecanismo conjugal funciona admiravelmente; nossos lares são puros, abençoados, venturosos; obedecemos às indicações científicas das estatísticas, que provam a existência de mais avultado número de mulheres do que de homens; dez mulheres, no mínimo, para um homem, eis a proporção.” Fato curioso: todas as vezes que o Congresso Americano tenta abolir a poligamia mormônica, são as mulheres que tomam a dianteira no protesto, com a energia verbal de que são capazes.

Catequizado a valer pelo chefe mormônico para adotar a seita e ficar em Utah, nosso patrício, ainda solteiro, belo e jovem, de lá tornou fiel às suas crenças religiosas e monógamas, mas não deixou de confessar que as mulheres daquelas bandas são muito pouco femininas nos atrativos. Embora casado, sem dúvida, seu pensamento seria idêntico, como não é outro o ponto de vista de nossa sinceridade social, irredutivelmente fiel à monogamia. Os homens são sempre sinceros, disse Tristan Bernard; acontece, porém, que mudam de sinceridade... Neste particular mantemos a tradição hierática e sentimental, sem ouvir a La Fontaine quando disse:

l’ ennui naquit un jour de l’uniformité.

Temeridades da inspiração poética...

Subindo o Jequitinhonha

Dócil aos impulsos de forte impressão, Afonso Celso fala de uma excursão pelo Jequitinhonha, o rio que corre em dilatado curso no território de Minas e, ora lesto, ora vagaroso, sempre retorcido e novo em ondulações imprevistas, entre grimpas e vergéis, fendendo a ramaria da floresta virgem, procura novo leito em terras da Bahia – “verde ninho murmuroso de eterna poesia” – onde, em sua formosa orla litorânea, na cidade de Belmonte, deságua no oceano. Seu pensamento ágil reflete o êxtase da admiração pela corrente soberba, que “leva mensagens misteriosas do recesso do continente à profundeza dos mares”, e lhe permite sentir com emoção o panorama tropical no esplendor de sua grandeza, ou como ele diz: “na apoteose de suas alvoradas, no estro de suas aves, no ritmo das cachoeiras, no segredo de suas matas.”

Em Salto-Grande a natureza voluptuosa nos depara o espetáculo do tombo de Jequitinhonha, a dois quilômetros do povoado. Ali, em visão impressionante, as águas bravias afrontam obstáculos naturais, rolam opulentas e encrespadas, crescem e empolam, mais e mais impetuosas, até vencer a barragem, transmitindo à floresta confidências de raiva e bramindo na “voz das grandes águas”, despenhadas em turbilhão na volúpia da liberdade. Ludwig diz que, tratando uma grande vida, sempre lhe veio à mente o curso de um rio; só uma vez, diante do Nilo, na represa de Assouan, a vida de um rio se lhe prefigurou um destino humano. E considerou que, em face de fenômenos da natureza toda poderosa, a ação das criaturas, o esforço dos homens, a agricultura, a vegetação, os animais, os povos e sua história não teriam existido sem o rio, ou não teriam sido quais se nos oferecem à contemplação.

Minha curiosidade ingênua sempre me aproximou com simpatia dos livros de impressões de viagens. Por isto mesmo prefiro no cinema a cenografia dos lugares tranqüilos, o desenho de um jardim, o contorno de um rio, um perfil de montanha, uma curiosidade arquitetônica, em suma, a projeção de uma paisagem gentil. O remanso da enseada, a clareira da floresta ou a doçura do sitio de serra, mesmo no cinema, têm para mim efeito sedativo; às vezes chego a sonhar, em curtos instantes de contemplação e fantasia:

chacun songe en veillant. Il n’est rien de plus doux.

Disse o poeta o que eu sabia apenas sentir e não exprimir...

Ave, Patria!

Em páginas de ardor patriótico, querendo comemorar o 4.o Centenário do Descobrimento do Brasil, escreve para seus filhos um livro de crença amável, sob o título Porque me Ufano de Meu País. Cartilha de estímulos, verdadeiro breviário de civismo, diz o escritor aos herdeiros de seu nome: “Entre esses ensinamentos avulta o do patriotismo. Quero que consagreis sempre ilimitado amor à região onde nascestes, servindo-a com dedicação absoluta, destinando-lhe o melhor de vossa inteligência, os primores de vosso sentimento, o mais fecundo da vossa atividade, dispostos a quaisquer sacrifícios por ela, inclusive o da vida.” Nele se descrevem as belezas e riquezas do Brasil, a amenidade de seus climas, a formação do tipo nacional, o caráter brasileiro, a nossa história, a projeção de seus grandes nomes, suas perspectivas do futuro.

Em 1936 o livro aparece na undécima edição brasileira, depois de várias traduções: alemã, francesa, duas italianas. Não há melhor e mais desenganada resposta à crítica de exagero e puerilidade, que lhe assacaram gratuitos detratores. A admiração é uma forma de sentimento, e só não admira quem não é capaz de sentir e errar, ao léu do destino, pelas devesas do ideal.

O jornalista

Veterano das colunas do Jornal do Brasil, como ele se gabava de ser, colaborou Afonso Celso, subscrevendo diariamente a secção Cota aos casos, destinada a “rápidos comentários aos sucessos do dia, singelos e francos, sem malícia nem paixão”. Sua atuação jornalística demonstra que bem lhe cabe o conceito de Banville, de referência a Bourget: “Não passava um dia sem ter aprendido, enriquecendo e renovado seu espírito.”

Para mais de cinco mil artigos, calcula Múcio Leão o seu espólio arquivado só nas colunas do reputado órgão da imprensa brasileira, e remata, atalhando o propósito: “Quanto livro interessante, de bela construção moral, de sólida análise: literária, de delicado pensamento, em suma, será possível organizar com esse material tão rico e precioso!”

No jornal desenvolveu a campanha empreendida pela Ação Social Nacionalista, à frente da qual, como brasileiro, “procedeu com inteireza, patriotismo e abnegação, sacrifício, sem outra ambição, outro desejo, outra esperança, que prestar serviço sincero e desinteressado a seu país”. O programa do movimento nacionalista foi o programa da vida do seu egrégio chefe, isto é, “a valorização de tudo quanto é brasileiro, na elevação material, mental e moral do Brasil”.

No Instituto Histórico

Entrou em 1892; durante cinco anos foi orador; de 1912 até a morte exerceu a presidência do Instituto. No exercício do mandato, seu trabalho avulta em constante atividade. Teve iniciativas e foi um realizador. De sua presidência, em 1914, o Primeiro Congresso de História Nacional, de cujos ofícios ficaram cinco volumes de memórias; em 1921, o 2.o Congresso de História; em 1922, o 1.o Congresso Internacional de História das Américas, nove volumes publicados; fundou a Escola de Estudos Brasileiros; uma Faculdade de Filosofia e Letras; o dicionário do Instituto; manteve e fez progredir a Revista; não esqueceu o Museu Histórico. As comemorações cívicas jamais faltaram às efemérides históricas; desenvolveu a biblioteca, facilitando a freqüência à sala de leitura. Em 1914 plantou o marco comemorativo da fundação da Cidade; inaugurou a estátua de Pedro II na Quinta da Boa Vista; promoveu a remoção dos despojos dos imperadores do Brasil para a Catedral de Petrópolis.

Solícito nas obrigações de seu posto, cristalizou, em exemplo que fica, o amor ao estudo de nossa História, a devoção de seus numes tutelares e o culto de nossas tradições.

O universitário

Bacharel em 1880, depois de belo tirocínio escolar, aos 2l anos era doutorado em Direito pela gloriosa Faculdade de São Paulo; professor e diretor da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais, depois diretor da Faculdade Nacional de Direito, reitor da Universidade, diretor do Departamento Nacional de Ensino, sua vida universitária intensamente se desdobra no ensino de várias matérias, no garbo com que exerceu os postos de comando, sobretudo, e poderosamente, na influência sadia sobre o espírito da mocidade, em lições e exemplos que madrugaram no melhor estudante do seu tempo, e depois, inteiriço e forte o fio da vida, prevaleceram no professor egrégio, glória autêntica do magistério superior no Brasil.

Em Afonso Celso as vantagens do professor, em fortuna igual, derivaram dos dotes excepcionais do orador, rebentados nas primeiras emoções no turno da formação universitária; pouco depois cultivados na tribuna parlamentar, firmando-se par a par nas célebres conferências da Glória, até exceder-se a si mesmo nos torneios da palavra, sempre fluente com elegância, torrencial sem exageros, servida por admirável memória, pontual e dócil na transmissão do pensamento, qual lhe traçara a pena no arranjo do discurso.

O prosador no romance

No episódio do Invejado, o autor debuxou, na urdidura da fantasia, um fato real, processado em época histórica, amargurada pela transição política, dando-lhe a feição de romance nacional contemporâneo. Rico de quadros da época, apanha com finura a realidade, até os aspectos pitorescos. Três capítulos podem ser apreciados como crônica sugestiva do tempo: o ano da Abolição; 23 de novembro, e 10 de abril de 1892. No último são recordadas a revolta da fortaleza de Santa Cruz, a prisão de treze generais e a deportação de políticos para Cucuí.

No livro prevalecem os fatos históricos sobre o romance; as personagens recordam, sob o véu da ficção, algumas individualidades daquela quadra, mais ou menos situados no flagrante do colorido e nos reflexos da opinião política do autor. É a vida real romanceada, e não o verdadeiro romance, graduado na intensidade da vibração emotiva. A diferença para Thibaudet se impõe na maneira de conduzir o enredo no romance: “O romancista autêntico cria as suas personagens com as infinitas possibilidades na direção da vida; o romancista amador as faz com a linha única da vida real. O gênio do romance faz viver o possível; não faz reviver o real.” Maurois precisa o seu ponto de vista: Le roman pose la question et n’y répond pas. Un roman n’a pas à répondre. Quand je décris des voleurs des chevaux, dit Tchekhov, je n’ajoute pas qu’il est mal de voler des chevaux. C’est l’affaire du jury et non la mienne. Penso que um romance deve ser um recorte de vida humana – temperamentos e paixões militantes, “história de um, que pode ser a história de todos”.

Em Giovanina, o escritor ensaia o caso de uma família italiana, paupérrima, que emigra para o Brasil. Romance de técnica original, que comparte dos recursos do teatro, qualificando-o o próprio autor de “ensaio simbolista”. Nele se identificam o narrador, o poeta, o dramaturgo e o sociólogo. A nota lírica recomenda e afina a expressão, inspiradamente italiana, no apreço da frase heróica e sentimental. Nos dois livros, o romancista dá arras de sincero e pertinente nacionalismo.

A obra de ficção em Afonso Celso procura o oriente do sentimento. A arte, cultivada na prosa ou na poesia, lhe foi um refúgio aos desenganos da vida política; nela aparelhou a resistência às desilusões; com ela chorou a morte de muitas esperanças. Não teve o feiticismo das escolas, nem sofreu a impressão das correntes literárias que fazem o proselitismo de cada período de evolução. Obra sentimental e humana tenta trilhar a estrada luminosa ou os desfiladeiros da vibração artística, advertindo ou convertendo outras almas, ao encontro da orientação do autor, resignada e forte no apreço das virtudes primárias, que fortalecem a organização moral. Respeita os imperativos biológicos dos instintos e as reações que provocam, acreditando sempre no esforço oportuno das reparações salutares, nos benefícios da concórdia e nos votos do altruísmo. Porque é mister ver e sentir como a própria arte no drama, na comédia ou no romance, querendo espelhar a natureza, pinta muitas vezes o amoralismo, enfeitando vícios ou projetando criaturas taradas constitucionalmente, como se fossem tipos sociais capazes de generalização. Argumenta-se que elas existem. Sem dúvida. Porém, fisgadas pela herança neuropática, desgraçadamente inexorável na transmissão dos caracteres sombrios. Até os escritores ditos católicos, em tiradas de ardor beato, se comprazem na exploração do pecado. (Thérèse Desqueyroux e outras personagens de Mauriac são exemplos tempestuosos.) Para advertir, dizem; sem embargo também, correndo o risco de mostrar que o pecado é essencialmente humano, que pode ter poesia, requeimando sugestivamente no inferno dourado de uma prosa fulgurante. Assim as pecadoras impenitentes nem sempre despertam compaixão ou inspiram misericórdia, acontecendo que muita vez estimulam simpatias inconscientes, tanto mais perigosas quanto mais aladas nos transportes da paixão amorosa. Para fotografar a vida, o romance não raro busca a atmosfera das paixões, onde o ambiente malsão trai a fatalidade do destino. Mas, se a Arte visa à verdade, a ficção, que reflete a vida, mesmo desestimada dos bens efêmeros ou desprendida do pesadelo das impressões ingratas, não é menos consumida no interesse de explorar a tolerância humana. Sempre voltada para a criação, a Arte, para atrair e comover, evita o lugar comum, a monotonia cúmplice, o tédio da rotina, o abuso da repetição; por isto busca a curiosidade da exceção, o encanto da novidade, embora se possa ser original, explorando fatos conhecidos sob feição nova, até porque é sempre a mesma a essência das coisas no infinito das formas e aspectos sociais. A ficção assim singularmente figurada se encaminharia no rumo de verdadeira volúpia literária, sem outro sabor, ou melhor, inspiração nos domínios da sensibilidade artística. Fora do estado de alma que ilumina, alertando ou defendendo, os pendores elementares se voltam para o mal, desatam-se nos vícios e nas paixões inferiores que emergem dos desvãos da personalidade. O aspecto agudo do problema humano não há de ser pautado na sinuosidade do desvio mórbido ou no tributo doloroso de uma anomalia biológica. Ou então havemos de aceitar o legado do testamento espiritual de Jean Barois, figura de velho cientista, anticlerical e político ortofrênico, expresso em síntese apoplética: “Creio no determinismo universal.”

Um crítico, naturalmente apavorado na visão da calamidade, observou que, se as almas se mostrassem, como os corpos, o mundo ficaria assombrado. Pior ainda, no tom pessimista, é a previsão de que o mundo se transformaria num vasto manicômio, se, travada a vontade, o rádio transmitisse a voz da consciência. Mas a física moderna, que nos deu o cinema, o radio, a televisão, a aviação e outras maravilhas catastróficas, vai desencadeando tremenda revolução espiritual, absorvendo a metafísica, identificando a razão com a consciência intelectual, e, nas suas conseqüências filosóficas, arrasando o determinismo. “Não há razões para a razão”, disse impávido Louis de Broglie. Voltamos a nos entender: à luz da ciência havemos de admitir a razão, como a entendia a idade clássica, isto é, a faculdade que tem o homem do próprio governo. Mas, como a resistência da couraça segue a proporção ofensiva da bala do canhão, já, em criação de última hora, dos destroços da metafísica, vai surgindo outro enlevo do espírito: a metapsicologia. Seja como for, Arte e ciência, como máximos objetivos da inteligência humana, não devem ser opostos para não serem diminuídos. Nelas reside a suprema dignidade do espírito. Por que traçar peias à sua íntima e recíproca interpenetração? Quando virá a última palavra da ciência? E a derradeira emoção da Arte?

Paremos, senhores, à beira dessas comparações siderais.

Ainda o prosador

Em Notas e Ficções, à maneira de prefácio, meu predecessor publica uma carta de Voltaire aos editores de suas obras, confessando-se delas pesaroso: “Nem uma me satisfaz.” Não é este, certamente, o juízo da maioria dos autores, nem em relação a seus trabalhos tem ele razões para o perfilhar. A opinião de um grande pensador, por outro pensador abonada, sem a restrição de um comentário, é uma lição de humildade, aliás, na intenção e na essência, nada conforme ao galardão acadêmico. Em verdade, solicitando vossos sufrágios, o candidato a ela foge, arriscando no lance um tanto de presunção, quando, claramente, não denota espírito de suficiência. Mas, a exemplo de George Duhamel, também dou graças à disciplina das academias, que impõe o recato pessoal e esquecimento de nós mesmos, com a obrigação de considerar alheia obra, revendo-a e penetrando-a na estrutura e no pensamento. Arrependido ou não, é certo que a obra segue seu autor, como ensina a liturgia cristã. Do copioso legado intelectual de Afonso Celso devemos nos orgulhar, inclinados no sentimento de carinhosa veneração.

Seus contos registram fatos ou recordam impressões, que algumas foram das mais vividas nos tempos radiosos de sua mocidade; outros gravam passagens dolorosas. Quase todas ensinam a sofrer e até a amar o sofrimento. O primeiro recapitula a história do filho pequeno, que se inicia na dor, a ela se adapta e com ela se consola. Em regra a dor passa e até sua recordação passa também. Graças a Deus que assim acontece; mas nem sempre, “pois algumas há que jamais passam”, disse o narrador, engrandecido na resignação, qual de outra vez em confidência amiga havia segredado a Ataulfo de Paiva, no auge da angústia dolorosa: “Em minha casa a dor não tem férias.”
“O caráter mineiro” lhe inspira a narrativa de dois episódios que afirmam a pureza de costumes do montanhês, cuja elevação moral, em parceria idílica com a serra, o preserva do pó da cidade, ralado pela vida intensa, de mistura com os vícios da civilização. “Não há progresso sem pecado”, disse Roger Martin du Gard.

A história de um velho piano que uma visita indiscreta faz vibrar em acordes comoventes, lhe dá a impressão de uma voz misteriosa, “dialeto da sombra”, em fantástica audiência.

O conto prefigura a visão de dias mortos, tragados pelo tempo e que revivem com a aurora de outros tempos. É o passado imaginário, como o futuro. Tanto deixa a pensar o problema siamês do conhecimento de um ou do outro, quando se busca a verdade.

Outros contos revelam o desencanto do autor, seu desprezo das vaidades humanas, seu respeito às normas sadias de orientação moral. A observação visa a indivíduos e características psicológicas, que são componentes compulsórias da alma humana. Em toda sua obra, apostando evidência, se identifica a inspiração cristã, implícita ou explícita, atestada, como disse Osvaldo Orico, “pela resignação, pela doçura e, sobretudo, pela capacidade de vencer-se a si mesma para vencer o tempo”.

– Tornando às memórias de viagens, narra seu regresso de S. Francisco da Califórnia, em companhia de uma formosa mexicana, jovem e educada à moderna, que por ele se apaixona e chega a confessar seu estado d’alma. É um parêntese de amor numa crônica de viagem. Lupe foi um incidente romântico na vida de Afonso Celso. Bem se compreende que seria para lhe doer o coração não recordar essa mulher, sua companheira de viagem e que lhe pareceu “sumamente aprazível”. A um crítico ela deu a impressão de quem “não conversa, discursa”. Era assim a sua heroína, diz o Autor, sem cuidar, talvez, que para as mulheres falar muito não é heroísmo, ou então quase todas são heroínas. As mulheres não gostam de intimidades com o silêncio... Daquele idílio a bordo, saborosamente descrito, uma impressão se desprende, imprevista e até certo ponto lamentável; chegou a romance, mas não teve poesia. Faltou o amor. A chama da paixão unilateral não encontrou o elemento comburente que ateia o incêndio. Poderia ter sido, creio eu, o amor etéreo, singularidade sentimental de sutis transigências com a sensualidade, apenas vivida no idealismo ou nos enlevos do sonho – amor sem inspiração cordial e sem fisiologia.

Lupe, “flor do mal”, ou “perseguida do destino”, quem sabe se o amor teria sido a sua redenção? Na frase melancólica de Afonso Celso, anos rodados, alguma coisa se vislumbra que trava como a saudade e amarga como o pesar. Talvez o pesar de não ter amado. Mas lhe ficou o resgate, na saudade da tentação.

Houve quem reparasse a nota pessoal nos escritos de Afonso Celso, e, no estilo, a construção da frase, o arranjo desigual, o abuso de orações elípticas. Preliminarmente, há que distinguir o tom pessoal, envenenado pela vaidade e corrompido na egolatria ou narcisismo, que em verdade é detestável. No escritor brasileiro, entretanto, o comentário se orienta no sentido de autobiografia, assim à maneira duma viagem à roda de si mesmo; explora o gênero da narrativa, talvez influenciado pelo pendor dos estudos históricos, que tanto afeiçoava sua cultura. Poder-se-á dizer que a narrativa é dos gêneros o mais em conta, porque recorda a história pessoal de cada escritor: é mais leve, mais fácil, mais objetiva; tem apenas o rótulo de ficção, não sendo produção artística, pensada e polida na abstração ou no símbolo. A guerra de Tróia, como as proezas de Ulisses, jamais tiveram realidade, e Dante nunca desceu aos infernos, pelo menos durante sua encarnação; no entanto, em criações eternas, a Ilíada e a Odisséia, como a Divina Comédia, sublimaram a obra de arte. Mas a narrativa, que é um desvio ou uma clareira na floresta da História, pelo menos não é conjetural e subjetiva, iluminada na visão do historiador. Revolvendo fatos e figuras que ficaram distantes, por vezes o historiógrafo não tem medida no julgamento arbitrário, podendo padecer das paixões do momento e sofrer o dano sugestivo e inconsciente dessa influência. Por isto Valèry retoma o fio de suspeição e de desprezo que a História inspirava a Voltaire. A narrativa pode ressentir-se da impregnação pessoal, sobretudo no julgamento político, como no caso de Afonso Celso em relação à República. Também a História que apreende fenômenos políticos não permanece na memória dos povos; tem a vida das gerações sensíveis aos acontecimentos. A História analisa sem comover-se, e só a vibração emotiva tem sobrevida e plasma a impressão do dia seguinte.

Nos contos, sua imaginação compõe nuvens errantes ou tece o véu da alegoria, por vezes povoando de azul um ambiente triste. A necessidade de imaginação é humana e universal, reponta na criança e ainda no outro extremo da vida não se despede senão à beira do túmulo. Não é o sonho o mais gracioso sinal de superioridade da espécie? Anatole France desconsolava-se à vista de nossa sociedade “cheia de farmacêuticos que temem a imaginação”. Defendendo a necessidade dos contos de fadas e das histórias infantis, raciocina tranqüilo: “As fadas existem, precisamente porque são imaginárias; existem nas imaginações ingênuas e claras, naturalmente abertas à poesia sempre jovem das tradições populares.”

A imaginação precocemente alada no cérebro infantil sente, como necessidade orgânica, o deleite de um conto. Ainda agora, consolando-me em júbilos novos, tenho o encanto dos lampejos de alvorada, numa nesga de céu que é toda a doçura de meu lar, nos primeiros lumes de sensibilidade de uma criança de quatro anos, que vezes sem conta, orelha alerta, pede que leiam o Cazuza, de Viriato Correia. Fosse eu autor de livros para a infância, não quereria maior consagração que essa de aquietar por momentos, no interesse da narrativa, a curiosidade virgem de uma inteligência que desponta.

Mas continuemos no mesmo tom de afeto e ternura, falando do escritor e acadêmico no livro Minha Filha, todo de sentimento e de amor paternal. O nascimento de uma filha, recebido entre alegrias e esperanças; pouco depois a primeira colisão do infortúnio, numa doença nervosa que desafia a solicitude paterna e faz apelar para todos os recursos da arte de curar, dentro e fora do país. Verdadeira caminhada de sofrimento. A Medicina que não consegue sarar; o médico que não pode ir além da sua medicina, e todo um entrecho doloroso, em que entram diversas personagens afinadas no mesmo sentimento de revolta contra a injustiça do destino humano. E um especialista, glória da ciência mundial, chumbado ao desengano da verdade clínica, ainda consola: “As crianças feridas dessarte acusam notável desenvolvimento intelectual. Que importará à sua filha não se mover como todas, se ao de todas sobrelevar seu espírito?” Quem pronuncia tais palavras? Charcot. Quem as ouve? Afonso Celso. Os profetas sempre foram ouvidos por Deus. E a profecia se cumpriu. Em Maria Eugênia Celso admiramos todos a realidade desse vaticínio.

O poeta

Arte e coração sempre se compreenderam. Um que inspira, outra que reflete; a imensidade do sentimento vazada no poder da expressão É arte retratando a dor. Ler ou ouvir o Anjo Enfermo é comover-se:

Geme no berço enferma a criancinha
Que não fala, não anda e já padece...
Penas assim cruéis porque as merece
Quem mal entrando na existência vinha?!

Ó melindroso ser, ó filha minha,
Se os céus me ouvissem a paterna prece
E a mim o teu sofrer passar pudesse,
Gozo me fora a dor que te espezinha!

Como te aperta a angústia o frágil peito!
E Deus, que tudo vê, não t’a extermina,
Deus, que é bom, Deus, que é pai, Deus, que é perfeito...

Sim... é pai, mas a crença no-lo ensina:

– Se viu morrer Jesus, quando homem feito,
Nunca teve uma filha pequenina!...

Tempos distantes da época desses primores, o pai doente escrevia à filha, também doente:

Tu enferma, e eu enfermo,
E o que mais me faz sofrer
É que, em reclusão sem termo,
Não querem que eu te vá ver...

A minha alma te abençoa
Com carinhosa efusão. Fica boa!
Fica boa, Filha do meu coração!...

Na poesia de Afonso Celso a nota de interiorismo viceja em cada verso, aos ternos estímulos do coração; sua índole religiosa, de jeito o dispõe na inspiração das graças humildes e dos encantos do lar, “dos pequenos atos de bondade e de ternura”. No moralista de carreira que ele foi, sempre afeito a perdoar e a consolar, se encontra a emulação, talvez inconsciente, de Terêncio, o filósofo meigo e sorridente, que tanto colaborou no gosto latino, penetrando-o das graças e sutilezas da linguagem grega.

Não tenho qualidade espiritual que me acredite capaz de tratar de poesia. A sensibilidade pobre, embora bem cedo me tivesse prendido a seus encantos, não ajudou a respirá-la nos eflúvios divinos, sentindo-a a ponto de compreendê-la. O namoro que vem dos verdes anos e fica platônico denuncia timidez incurável. Infelizmente, nem ao menos pude materializar minha incapacidade em simples versos, mesmo sem vibração emotiva, como tantos outros pobres de ritmo e de expressão, que só contentam quem os produz.

Aos primeiros surtos da inteligência humana o pensamento encontrou logo o lado musical da expressão, que mais impressiona e facilmente se transmite porque mais accessível; a prosa fez caminho tortuoso, buscando oriente e amenidade nas lendas e nos contos puramente imaginários. Devíamos, pois, começar pelos versos todos os que amamos as letras mais belas. No entanto, não somente para começar, senão pelo afirmar-se capaz de poesia, seria mister ter bebido, em hora prima, o leite de ternura humana “alimento lírico do verdadeiro poeta”, como aqui disse Cassiano Ricardo, “poeta total”, “ilusionista iludido”, qual lhe chamou, com a autoridade da parecença estética, Guilherme de Almeida, outro grande poeta contemporâneo.

Não comparo a Prosa com a Poesia. Também não a ofendo na comparação com os versos que não chegam a comover. Na cadência, no balanço e colorido da frase, no ritmo da expressão, a prosa de J.J.Rousseau, sem a monotonia dos alexandrinos, tem o feitio do poema, “orquestrado a primor numa quadra em que o verso não sabia cantar”, como disse Lanson, a propósito da Nouvelle Heloise:

Mais, hélas! Vois la rapidité de cet astre, qui jamais n’arrête. Il vole et le temps fuit, l’occasion s’échappe. Ta beauté, ta beauté même aura son terme. Elle doit décliner et périr un jour comme une fleur qui tombe sans avoir été cueillie.

Será mesmo prosa? Sim, a mais natural e mais doce de ouvir. Nela a base matemática da metrificação par e ímpar é de efeito lírico delicioso na harmonia desigual. Sirvo-me apenas de um trecho, tomado às reservas eternas do bom dizer. Não acabaria de citar se, passando pelos modernos, chegasse aos contemporâneos, dentro e fora do nosso patrimônio literário. Figurei de passagem um exemplo, classicamente abonado, para não fugir à inspiração das regras tradicionais, sempre sábias na amplitude benigna e protetora de quem, num ensaio de primeiras letras em recinto de silogeu, se inclina reverente em homenagem às normas idôneas. Quanto existe, jamais deixa de existir no amparo das forças misteriosas que regem a eternidade em matéria de Arte. Mas a Arte, às vezes, é pérfida, e, sempre moça, ilude nos encantos; é volúvel e vive perigosamente, como a mocidade; por isto mesmo deve ser tida no recato da adoração por quem já passou da idade de dizer ou ouvir galanteios, ainda que temperados em suave lirismo. A inflação poética neste século é espantosa; também em Poesia excesso quer dizer falta, sobretudo ausência de Arte e pobreza de emoção. Poetas não faltam, de escola ou sem escola, clássicos, simbolistas, românticos, neoclássicos, cósmicos e novos apóstolos da Poesia pura.

A musa do vosso amado companheiro não teve destons nem hipocrisia; foi sentida e foi amorosa; a primor transigiu com a mágoa ou revelou o consolo de sua vocação. Ouvi como ele, nos votos do seu impressionismo, alcança um Porto celeste:

Andei em longas excursões distantes:
Vi palácios, sacrários, monumentos,
Focos da indústria, artísticos portentos,
Praças soberbas, capitais gigantes.

Mas lia, em toda parte, nos semblantes,
Dores, lutas, idênticos tormentos...
Onde a pátria dos risos?... Desalentos
Colhi apenas, mais cruéis que dantes.

Achei, enfim, num pequenino porto,
Crenças, consolações, calma, conforto,
Tudo o que anima, enleva e maravilha:

Ninho de encantos que a inocência habita,
Promontório do céu, plaga bendita,
É junto ao berço teu, ó minha filha!

O aspecto sentimental é o mais ressaliente. Aqui mesmo, disse Adelmar Tavares: “foi em poesia um intimista.” Ninguém mais que ele “ajardinou as suas afeições e ninguém mais ternamente cantou a alma de seu lar”. E ainda: “Nem um outro poeta conheço ter sido mais pai e mais poeta.”

À filha no colégio escrevia cartas em verso neste teor de doçura:

Tua carta, filha minha,
Causou-me alegria, sim.
Foi, porém, muito curtinha...
Não quero cartas assim.

Quando a tristeza lhe premia o coração, descantava como na poesia “A flauta”:

De noite, aqueles sons de música em distância
Eram como a fragrância
De um coração heróico em aflições premido:
Modulava-os na flauta um filho da miséria,
Na harmonia buscando animação e olvido.

Em pleno inverno, a miséria o fez vender a flauta para alimentar a família:

A minha velha flauta. Oh! não me fales nela;
Hoje, deu-nos talvez a música mais bela,
Partindo para além!

Tranqüilo e confiante transparece o sociólogo, descrevendo uma oficina:

E no ambiente ali se pressentia
Tônico ardor, fecunda claridade:
Fluidos vitais que hão de animar um dia
O corpo são da nova humanidade!

Por fim ouçamos o filósofo meigo, bizantino no cepticismo:

Vale a pena viver? Há dias em que vale;
De outros muitos, porém, aflige tanto a lei,
Que tamanho contraste é justo que me cale,
ou murmure: – não sei!...

A 8 de abril de 1931, a Academia comemorou o jubileu de um dos seus, que muito seu e de longe o fora, desde a fundação. Um dos oradores, Medeiros e Albuquerque (de quem a lembrança ainda me castiga na saudade), contou que em 1877 o grande escritor português Ramalho Ortigão, de regresso de sua visita ao Brasil, confiara em carta a Eduardo Prado, entre outras impressões, a seguinte confidência: “Afonsinho Celso é esperto como um alho e se não fizer grande coisa de per si, há de pelo menos dar bastante que fazer aos outros, quando se lhe meter isso na cabeça, que ele tem rija e saudável.” Em verdade, vosso confrade, muito tendo feito de per si, ainda traiu a previsão no grato ensejo que deu aos outros de copiosas demonstrações de simpatia, respeito e admiração.

Belo homem esse Afonso Celso: beleza física, intelectual e moral. A proporção e a suavidade dos traços no adorno da fisionomia; o lume da inteligência que lhe permitiu acumular reservas de saber clássico e excelências de cultura moderna; a sensibilidade que no poeta exaltou o gosto, sempre atendido nos desvelos da estética; os dotes do coração que lhe sublimaram as manifestações do sentimento; a alma intemerata, serena, embelecida na conformidade com o sofrimento – a grande alma religiosa, sentida mente cristã: toda essa riqueza de dons, em singular harmonia, ele a teve, à prova de vaidades e tentações, contratempos e vicissitudes.

Na devoção de verdadeiro culto, Adelmar Tavares o crismou Pastor da Bondade. E, realmente, ele o foi na essência de sua compleição moral, apaixonadamente humana, desprendida e baixada à terra para cumprir um destino. Para sentir e amar: sentir a beleza e amar a virtude. Também para sofrer; e, na lustral do sofrimento, ele pôde compreender e traduzir em suave lirismo a Imitação de Cristo. Seguiu a preceito a palavra de Jesus: “Vivei como os lírios”. Ainda na hora derradeira, no limiar da eternidade, dizia: “Durante toda a vida pertenci apenas ao partido de Cristo e só tive um programa social, filosófico, político – o Cristianismo. É dele que está precisando o mundo. E muito. De bondade, de tolerância, de paz e amor. A humanidade precisa de amor, de muito amor.” No dia seguinte, quando foram publicadas estas santas palavras, dele nos restava apenas, distendido e frio, caminho da morada eterna, um corpo inanimado. Como viveu, morreu. Viveu como um lírio...

Senhores, a aspiração acadêmica é, quase sempre, contemporânea de um sonho de mocidade; mais nervosa e confiada pode atingir depressa o termo desejado, compensando a preferência e honrando a Companhia no prêmio da floração espiritual; outras vezes, inútil a pertinência do esforço e infiéis os votos de trabalho, a colaboração branca da vida breve reverdece em estímulos e tranqüiliza outras aspirações. Pela virtude de tantos desígnios, em graciosa transparência, não separais a ação do sorriso, a função de julgar da astúcia no julgamento. Na sublimação de um equívoco, aqueles que aqui chegam, beirando a velhice emérita, contribuem, queiram ou não, para a mocidade do Grêmio, praticamente realizada na fatalidade da renovação. Como a própria humanidade, as academias são sempre jovens, porque represada a juventude no perpassar contínuo das gerações.

Não me sofre o ânimo confessar que o vulto das obrigações noutra esfera de atividade não deu tempo para chocar o prazer do primeiro encontro, prelibar mais de espaço a ilusão deste dia, facilitando outro polimento nestas simples palavras de admiração e reverência, que muitas foram, todavia, em razão da magnitude da obra do companheiro, cuja perda tanto deploramos.

Deu-me a Academia o tributo honroso de difícil sucessão. Para premiar? Não, decerto; talvez para persuadir e estimular. Desconfio, entretanto, que chegou tarde a esmola generosa: não creio no milagre das forças crepusculares.

Indagareis, naturalmente, a talho da confidência: por que foi tão fiel ao intento? Primeiro, porque “é do homem exceder-se em desejos”; depois, perdoai a razão ingênua e pelo sentir a mais forte: porque me pareceu que aqui se podia passar bem o inverno da vida, num ambiente de galantaria intelectual, temperado de doce malícia, como se requer nos remansos da cordialidade, não havendo de poltrona a poltrona, às vezes, mais que um abismo de separação. Por tudo isto a aspiração da Academia cresce com a idade, ainda que de referência a vós outros, senhores acadêmicos, Deus me livre de repetir o que disse Henry Bordeaux, num conceito temerário: La frivolité ne vient qu’avec l’âge.

No meu caso, solicitando a desoras a indulgência de vossa simpatia, salvo melhor juízo, não podia dar maior prova de interesse que riscar com a ambição as extremas da mercê. “Mal dos que se deixam contaminar de humildades,  ascéticas ou filosóficas, sempre fatais a qualquer espécie, ainda a mais razoável, de ambição”, disse Xavier Marques, num dos seus primores de pensamento e de frase. Para apresentar-me de novo, depois de doze anos da primeira tentativa, procurei compor minha fisionomia literária, ainda que um tanto artificialmente, como fazem certas damas invictas, que não poupam diligência para simular juventude. É certo que, como estas, só a mim mesmo poderia ter iludido; mas logrei o favor de vossa atenção, no reconhecimento do esforço, que identifica uma vocação de trabalho, ajudada de gentilezas do destino, qual a que ora reponta num tecido de sonho, à maneira de doce paisagem no fim do meu caminho. E tanto fizestes, senhores acadêmicos, que ainda me valeis em pleno lance de eminência frágil, trazendo a esta cerimônia a colaboração de Cláudio de Sousa, cuja palavra, quente e fúlgida, saberá evitar que desmereça de sua qualidade excelsa o brilho de uma noite acadêmica. A conta da mensagem do Olimpo, que ele nos traz, vai ficar a só impressão desta solenidade. Ainda bem que uma tradição benemérita de apreço, na plenitude de sua sabedoria, consegue resguardar o prestígio das letras na mansão helênica de suas graças.

Eurípides tinha a meditação por soberano bem, e a aberta luminosa que me indicais convida a meditar. Revelando um segredo, a voz interior aconselha apenas, na elegância de sua simplicidade: “Enfeita o teu dia.”