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Carlos Magalhães de Azeredo

ESTOICISMO

Ouve tu, homem bom! ouve, alma forte e pura!
Se a Vida destruiu teu santo ideal antigo;
Se teu pai te expulsou, como um torpe mendigo,
Por que fosses trilhar a rua da amargura;

Se a amante te traiu, num beijo de ternura;
Se te vendeu, sorrindo, o teu melhor amigo;
Se o déspota, da tua altivez em castigo,
Na prisão te deixou por leito a terra dura...

Não te queixes! não dês ao tirano e ao perverso
O prazer de escutar-te um ai... Consciência justa,
Tu podes, num só gesto, esmagar o universo!

Sofre, pois, mudo, sem um gemido mesquinho;
Envolve-te na Dor silenciosa e augusta,
Como num manto real de púrpura e de arminho!

                                                                              (Procelárias, 1898.)

 

                            INVARIÁVEL 

Não digas que uma estranha e imprevista mudança,
Notas em meu olhar; que, manso e amigo outrora,
Hoje lampejos de ira e de revolta lança,
E em chamas de rancor infernal te devora.

Não; ele é sempre igual - terno e devoto - embora
Não tenha a luz da fé, nem o ardor da esperança;
Sem crer no teu amor, o teu amor implora,
E de acariciar-te as formas não se cansa...

Quando de ti me vier a morte, quando um dia
Com tuas próprias mãos me abafares na boca
O suspiro final desta lenta agonia,

Inda no mesmo olhar de submisso respeito
Verás - rindo talvez! - alma leviana e louca,
O supremo perdão do mal que me tens feito...

                                                                                    (Procelárias, 1898.)

 

SARCÓFAGO ANTIGO

Aqui, no verde ingresso de um bosque de mirtos e louros,
entre roseiras bravas e agrestes margaridas,

granítico, o sarcófago antigo descansa. Rescende
cingindo-o a madressilva, que as mudas campainhas

em flor agita ao vento. Com laços tenazes e dúcteis
a hera fiel se enrosca, perpétua, à sepultura,

mas lhe respeita as linhas severas, os finos relevos,
e os emoldura apenas em harmoniosos curvas.

Não deturpou a idade seus nobres contornos. A clava
de Bárbaro, com raiva sinistra e rumor surdo,

não a investiu. Acaso, no fundo das selvas Albanas,
num antro sibilino, numa deserta gruta

sagrada, no horto obscuro de um vilico, abrigo sereno
por séculos a fio lhe dera a sorte. Agora,

entre a folhagem pétrea, de pomos e de uvas pesada,
que a circunda, uma cena de místico prestígio

revive. Inda os Centauros, com os Lápitas rudes lutando,
rolam, de olhos em chamas, na mesma ardente fúria

frenéticos os braços, e tesos os fortes jarretes,
e túmidos os peitos felpudos, e eriçados

a um tempo eqüinos pêlos e comas humanas. Já voam
dardos; o sangue, a jorros, vai já correr. Mas surge

na confusão da pugna, robusto, soberbo, sublime,
Hércules - vulto enorme! Com sua crespa juba

as têmporas lhe cinge leonina cabeça; e dos ombros
pende-lhe, manto tétrico, o despojo do monstro.

Ele, com o gesto apenas, lhes doma as horríficas iras.
Cessa o tumulto. Param, de terror fulminadas...

Ignota é a mão de artista, que o grupo guerreiro na pedra
em trágicas posturas criou e uniu. Ignoto

és tu que ali dormiste teu último sono ai! eterno
o crias - sono eterno... Mas nada existe eterno

no mundo; nem um simples jazigo. Um capricho do vento
varreu-te as cinzas, todas. E nem te resta o nome.

Quem eras tu, Romano de estirpe gloriosa, Tribuno
ou Cônsul, coroado de grama ou de carvalho?

Herói antigo, ou fino letrado da Corte e do Fórum?
Onde teus Manes pousam, e teus divinos Lares?

Se subo, entanto, à beira do velho jazigo, se estendo
a vista, além dos louros e mirtos viridentes,

além do vale cavo, sonoro de Arícia, e da imensa
Campanha árida e triste, Roma diviso ao longe...

Mas não; quem sabe em Roma que um dia viveste? Que ruína
fala de ti? Em que alma pela lembrança reinas?

Entanto, indiferentes, chilreiam estivas cigarras
aqui, com voz estrídula, em árvores musgosas.

Pássaros da floresta vizinha, pardais, pintassilgos,
e pombas de plumagem dócil, indiferentes,

os lépidos pesinhos no grande sarcófago pousam,
e bebem a onda clara... que a sepultura ilustre

hoje é, Patrício esplêndido, uma urna de rústica fonte,
que as águas níveas colhe dentre as marmóreas fauces

de um tigre... E quando as tintas purpúreas do ocaso colorem
no belicoso campo Lápitas e Centauros,

ou quando a branca Lua na fonte se espelha em silêncio,
gárrulas raparigas seus cântaros apoiam

nos ângulos lavrados, sorrindo, cantando, pensando...
Mas ai! não em ti pensam... pensam nos seus amores...

                                                                           (Odes e elegias, 1904.)

 

O CAPRICHO DE ELFA

Por que me acusam? - dizia consigo a linda Elfa, passeando sozinha pelo seu salão, e levantando rapidamente, com um gesto ágil, o vestido de cauda, que quase derrubou, ao passar, um fino vaso de Sèvres. - Por que me acusam? É sem razão, de certo... Foi culpa minha, se a fatalidade... Dizem que por um capricho, um fútil capricho... eu expus, eu sacrifiquei a vida de um homem. Ah! por um capricho! E não vai de capricho em capricho a existência da mulher? E um capricho não é sagrado desejo, ordem divina, quando alguém nos adora? E como de outro modo saber se somos amadas?

A lâmpada esparzia uma luz de leite, suave, dormente, através do cristal fosco do seu globo. Era uma luz de delicadezas e mistérios; a luz que convém, mais que a do pleno dia, mais que a dos teatros e dos bailes, ao triunfo perfeito da beleza que não quer deslumbrar, mas enfeitiçar, e possuir, e ser ambicionada por uma paixão profunda, profunda como a própria essência humana. Luz para quem espera, contando as horas, a presa que há de chegar segura, que segura há de ficar para sempre... Luz que é filtro estranho, que confunde a mente e entorpece a vontade, pondo em tudo reflexos de sonho dando uma tão mórbida doçura ao velho relógio de Saxe, onde se ouve pulsar um coração pequenino, e à Almeia de bronze que, dobrando-se em lasciva postura, tem no seu próprio corpo os máximos encantamentos, e às rosas cor de sangue, que, de envolta com opalescentes violetas de Parma, se finam nas jarras de Viena, e às pregas dos reposteiros de seda brochada que se multiplicam no grande espelho veneziano... uma tão mórbida doçura especialmente às formas de Elfa, decotada, ornada como para um sarau, ao ar o colo e os ombros ebúrneos... mas o olhar velado e o sorriso enigmático não são de quem pensa em danças...

- Fui imprudente - confessava ela - mas podia eu lá adivinhar? Por uma flor, uma flor soberba - nunca eu vira igual! Estávamos sós; sós íamos subindo a encosta sombreada; nas árvores os ninhos palpitavam cheios de músicas; o calor da tarde estiva nos penetrava e nos rendia; eu buscava apoio no braço dele, no seu peito, e quando para o seu rosto erguia os olhos, a boca se me prendia à sua boca, e tinha preguiça de a deixar. Eram beijos sem número fundidos num só beijo imenso... Por que vi eu a fatal flor? Que flor era essa? Não lhe sei até hoje o nome. Sei que era grande e rubra - uma granada sem preço, como não há nos ourives. Eu a desejei... eu lha pedi. Conheci que ela pendia, na ponta de um galho delgadíssimo, sobre um precipício, áspero de espinhos e calhaus? Conheci. E, ai de mim! assim mesmo lha pedi.

E ele, sem hesitar, me deixou, sentada no caminho, sob a copa de uma velha mangueira. Célere galgou, de rochedo em rochedo, a íngreme subida, agarrou-se a um penhasco, estendeu o braço, e com um grito alegre de vitória empolgou a sublime flor vermelha... Mas nesse momento voltou-se para mim; quis ter dos meus olhos para os seus olhos a primeira recompensa. - De repente, sumiu-se tudo, não o vi mais, não vi mais a flor, e unicamente, aterrada, ouvi o baque de seu corpo no abismo. Trouxeram-no depois. - Ah! que belo estava, pálido assim, com a face de neve onde a boca ainda sorria docemente, desbotada... e por entre as mal cerradas pálpebras, as pupilas me fitavam, sem brilho, mas com tão estranha insistência na sua imobilidade! Ah! que belo e mais desejável que nunca! A flor, esqueceram-na lá, no despenhadeiro, ou perdeu-se, não a puderam encontrar mais...
E disso me acusam. Foi culpa minha, se a fatalidade... Eu lera histórias de amantes que iam colher o edelweiss nos cumes alpinos, entre o gelo escorregadio, por manhãs de inverno; e de outros que se atiravam às águas de um lago para trazer um branco nenúfar pedido. Mas sempre havia fadas, ou ninfas, ou náiades, que os protegessem. Morria algum, por acaso; mas era raro...

Enfim, passou. Eu chorei bastante, chorei: e fui muitas vezes enfeitar de grinaldas e ramalhetes o túmulo onde ele dorme. Mas ele dorme ainda, é para sempre que dorme. E agora me dizem: Ingrata! perjura! - porque outro me ama, porque eu me entreguei a outro. Que o seduzi? E sou criminosa se as minhas graças seduzem? Acusam-me, porque eu vivo, e não faço da minha vida a escrava submissa da morte. Ai! eu vivo, eu quero, preciso vida ao redor de mim, vida que se me dê em troca da minha vida...

O morto está ausente há muito, está longe, no país de onde ainda ninguém tornou. Ele não pensa em mim: por que hei de pensar nele? E quem me afiança que nessas peregrinações ignotas, de astro em astro, ele não se tem dado a outras, à mercê dos encontros? Não, meu coração, ele nada sofre, com os teus afetos novos: ele nada sabe. E se soubesse... Da sua mansão eterna diria: “Ao menos, ela não escolheu um estranho, um desconhecido para me suceder. Escolheu um amigo meu um homem de confiança - Está bem protegida.” E a sua paz seria completa.

Não há fantasmas, não é verdade? Às vezes, em sonho... mas a manhã desfaz o pior sonho... Às vezes nesta sala onde ele também esteve, à claridade desta lâmpada que nos alumiou os colóquios... cuido ver... larvas da imaginação... Ah! batem à campainha. Que susto! Vamos lá. É o meu vivo! O outro não voltará...

 (Baladas e fantasias, 1900.)