Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Bernardo Élis > Bernardo Élis

Bernardo Élis

                       PRIMEIRA CHUVA

Quentura de noite pejada de nuvens baixas e negras.

Bambos bamboleios de trovão soturno

batendo o tímpano bambo da zabumba do horizonte.

Trovão apagado,

saudoso,

distante.

Depois a chuva em grossos pingos

sobre os telhados,

na poeira ressequida das estradas,

na terra requeimada das queimadas,

desprendendo um cheiro forte de gestação.

(Mamãe molhava algodão em cachaça canforada

e nos dava para cheirar: - cuidado com defluxo!)

 

Amanhã tudo vai começar de novo:

as folhas voltarão aos galhos secos,

as águas resmungarão nas grotas mortas,

os pássaros do céu hão de cantar no cio...

(E aquela que partiu por que não volta?)

 

Lá fora uma goteira numa lata pinga,

pingo a pingo,

pengue,

pengue,

numa toada monótona de preta que ninasse.

Pengue,

pengue,

pingo a pingo.

(E aquela que partiu,

Por que não volta?)

                                                                           (Primeira chuva, 1955.)

 

O DESCOBRIMENTO

Um tropel maluco

de mil patas

no seio das matas.

Um tiro de trabuco

deu um bruto soco

na quieteza virgem da paisagem.

E homens da cor-de-areia,

vindos da banda do mar,

chegaram à beira do Rio Vermelho,

resolveram-lhe os poços azuis

em que dormiam palhetas cor-de-brasa

e deitaram-lhe fogo às águas claras.

 

E o velho pajé muito velho,

cabeça branca das cinzas de muitas eras,

num esgar medonho de fera,

gritou: Anhanguera, Anhanguera!

 

Os homens da cor-de-areia

bateram e venceram a nação dos Goiás.

 

Mas na noite viúva,

quando o fogo sagrado lambeu a lua,

- rascar de maracás,

- zás-trás, zás-trás,

- tutucar de tantãs,

- grito de agouro: acauã-acauã,

abriu-se na mata a flor do sumaré.

E o velho pajé muito velho,

num gesto hierático de bárbaro,

erguendo as mãos para o céu,

clamou: tupã, tupã!

 

O verde novo da floresta

tinha um ar alegre de festa,

E os homens da cor-de-areia,

vindos da banda do mar,

foram tombando à beira

da fogueira que tingia a noite,

suando de frio, tremendo de calor.

 

E o verde alegre da floresta

tinha um ar novinho de festa.

                                                                           (Primeira chuva, 1955.)

 

                               O CORONEL PEDRO MELO

No frio da manhã, o coronel Pedro Melo ia pela estrada montado na sua grande mula, a maior de que havia notícia naquela região. Tilintava as esporas, as rodelas dos freios, as fivelas e bombas do arreio e da cabeçada. Atrás iam os dois jagunços, Mulato e Resto-de-Onça, cada qual com sua repetição alceada no ombro. Os cascos batiam nas pedras. Pelos baixos, a neblina ia densa, molhando o capim que pegava a amarelar. Os bem-te-vis cantavam pelos altos angicos.

Pedro Melo dirigia-se para a Grota, ia pôr seu filho Artur a par de tudo que se passava no povoado, queria dar-lhe parte das exigências de Vicente Lemes.

O velho olhava sobranceiro a paisagem que lhe era tão familiar. Quantas vezes já passaram por ali, nem sabia ao certo! Julgava-se o criador daquela paisagem, daqueles caminhos, daquelas cercas, daqueles muros e daquelas pontes. Tudo saíra de suas mãos ou das de seu filho. Era o criador e dono daquilo tudo. No entanto, Vicente Lemes e Valério Ferreira pretendiam governar. Essa era boa! Uns preguiçosos daquela marca! Que é que eles já haviam feito para a região, a não ser fuxicos e mais fuxicos? Pela frente corria a estrada orvalhada e ainda sem sol. Era uma estrada carreira.

Quando o velho era menino, havia ali apenas um trilheiro de jumentos. Bem se lembrava de quando a abriu. Era mocinho, que bons tempos! A estrada antiga nem merecia esse nome. Mal dava passagem para os cargueiros de mantimentos. Para ir a Barreiras era duro. Os comerciantes da Bahia até debicavam:

- Ei, seu moço, esse seu Goiás é mesmo um fim de mundo! Por que é que você não traz carro de boi para levar mercadoria?

Pedro Melo enrolava conversa e ria para disfarçar o embaraço. No fundo, ficava agravado. Na verdade não levava carro de bois a Barreiras porque a estrada não dava passagem. Dava isso para meter os burros pelas grotas e serrotes.

Os comerciantes, entretanto, tanto azucrinaram que um dia Pedro não se conteve:

- Homem, não trago carro porque acho tropa melhor de lidar.

- Quiá, quiá, quiá - estalaram as gargalhadas em redor. - Ô homem de boca dura! Tu não traz carro porque lá não existe estrada - chasqueou um dos caixeiros da Rainha da Barateza, a melhor casa comercial de Barreiras. O Melo sentiu a cara lascar fogo:

- Pois pro ano, por esse tempo, estou aportando aqui com dois carros, de boiada baia.

O dono da Rainha da Barateza, onde conversavam, saltou o balcão para fora, deu dois tapas nas costas de Pedro, mandou um caixeiro trazer a garrafa de vinho do Porto e cálices, e distribuiu a bebida para todos:

- Olhem, vocês são testemunhas. Se esse goiano entrar aqui, pro ano, com um carro de bois, eu mando dizer uma missa cantada. Já não falo em dois, basta um carro.

De novo as gargalhadas estrondaram, enquanto os cálices se esvaziavam, como selo do trato. Valendo-se da confusão, o moço Pedro Melo despedia-se de todos e passava a perna por riba da mula estradeira, metia-lhe as esporas e saía num trote picado para alcançar a tropa que guizalhava na saída do comércio.

Pelos pousos e estirões, foi delineando o plano. Adestraria duas boiadas de 48 bois crioulos baios, faria dois carros de bois. De cá já ia escolhendo os boiecos: o filho da Beleza mais o da Dinamarca iam para o coice; o filho da Sertaneja e aquele boizinho que barganhara com o mano Antônio iriam para a guia.

Também pensava nos pés de pau para fazer os carros. Ia fazê-los de jatobá, daqueles jatobás enormes que cresciam na beira da serra.

E a estrada? Essa era a mais dura, mas ele já tinha em mente como traçar a danada por aqueles ermos que tanto conhecia. O principal era despender o menos possível.

Daí uns dias, já os machados roncavam pelos vãos de serra, abrindo a picada da estrada. Para trás as picaretas e as enxadas retiniam, aplainando mais ou menos o chão duro. Além, alguns homens davam os últimos repasses numa junta de bois baios que arrastavam toras de madeiras.

Como um general, todo encourado, Pedro ia e vinha, dando ordens, distribuindo o pessoal no trabalho, apressando a picada, pois precisava voltar ao sítio ainda em tempo de ajustar as chedas dos carros, que os carpinteiros lavravam.

- Vamos ver, vamos ver, minha gente! - As enxadas retiniam no terreno pedregoso, enquanto os paus seculares baqueavam lá adiante, clareando a mata.

Numa dessas vezes, Pedro Melo viu um preto alçar a foice para cortar uma vergôntea que se erguia bela e viçosa no meio do sarobal. Pedro segurou-lhe o braço, chamou os demais trabalhadores e se dirigiu ao foiceiro:

- Você sabe o que é isso?

O cabra ficou meio espantado, titubeou, mas o patrão encorajou:

- Vamos, diga, você sabe.

- Apois num é um broto de cedro?

- Isso mesmo - confirmou Pedro Melo, enquanto com o olhar aprovador percorria os demais homens ao redor. Também os outros suspenderam a faina e estavam curiosos pelo desfecho da cena. “O patrão mandava derrubar o mato e depois não deixava torar um ramico daquele!”

- Para que serve o cedro? - continuava perguntando o moço, sem se dirigir a ninguém. Num coro, uma vintena de vozes responde:

- Pra fazer cadeira, armário, porta, janela, oratório...

Aí as vozes se calaram, como se tivessem esgotado o rol das serventias. Pedro Melo percebeu a indecisão dos homens e os concitou:

- Vamos, vamos, para que serve mais?

- Com perdão da má palavra, serve pra caixão, meu amo - respondeu um mais afoito.

- Isso mesmo, - aprovou Pedro: - é o pau apropriado pra caixão. - Nesse ponto, perguntou: - E vocês sabem quem sou eu?

Cheios de indecisão, uns três responderam que ele era o patrão, o coronel Pedro Melo, homem poderoso e rico.

- Vocês podem bater em mim?

- Deus me livre e guarde, - disse o coro de homens descobrindo-se.

- Vocês podem me matar?

- Cruz credo, coronel! Larga pra lá essas brincadeiras sem graça.

- Pois esse raminho daí é a mesma coisa que a minha pessoa. Ninguém pode fazer mal para ele. Ele vai crescer, vai ficar um pauzão danado de forte e vai servir para meu caixão... - A frase ficou meio suspensa, enquanto o moço refletia para, a seguir, dizer com uma firmeza impressionante: - Isso, se eu morrer!

O silêncio caiu sobre os homens e sobre a paisagem. Pouco a pouco os cabras foram botando na cabeça suarenta os cacos de chapéu e daí uns instantes as ferramentas retiniam à cadência de uma canção tristemente monótona. Perto do cedrinho, ali ficou o moço Pedro Melo com seu porte arrogante, com seu semblante duro, com sua quase convicção de que não morreria, de que viveria eternamente, de que ninguém jamais o derrotaria em qualquer coisa.

Ante seus olhos agora de velho, uma névoa perpassava. A estrada foi feita, os carros de bois avançaram por ela e chegaram a Barreiras justamente no dia marcado. Foguetes riscaram o céu da cidade e as campainhas da igreja anunciaram a elevação da hóstia, na missa solene que o coronel Lima mandava dizer.

E, na verdade, tudo isso aconteceu, porque no dia exato, nem antes nem depois, precedido de foguetório, o moço Pedro Melo, na porta da Rainha da Barateza, gritava: - Ôa, boi, ôa!

- Espia o sol - gritou Resto-de-Onça.

- Eta rodeira bonita! - secundou Mulato. Estas palavras afugentaram as lembranças do velho coronel Melo, que logo já avistou o bicame e de imediato pensou em Vicente Lemes: Vicente foi sempre homem pirracento. Não sei adonde Artur estava com a cabeça quando encaminhou esse tranca para cargos públicos! Por cima, tinha ainda a velha Benedita para emprenhar Vicente pelos ouvidos com fuxicos sobre Artur e ele, Pedro.

- Foi mole, foi mole sem contia... - esta frase chegada aos ouvidos do velho, fê-lo perder o pensamento. Atrás vinham os dois capangas. Vinham alegres, souberam do caso do inventário, ouviram o velho conversando com Tozão e anteviam lutas. Afinal, estavam voltando os bons velhos tempos. Quem é que foi mole? - indagava a si mesmo o coronel: Seria Artur, seria ele Pedro? Não. Não era um nem outro, que aqueles dois homens de sua confiança não iam nunca falar um absurdo desses. Artur não era mole, nem ele...

- Foi: Damião foi mole - reafirmava Resto-de-Onça e agora o coronel ouviu bem: falavam de Damião, ah, isso sim. O capanga prosseguia: - Falar procê, se compadre Artur tivesse lá, escrita era outra.

Mulato concordou e contou um caso de outros tempos, Resto-de-Onça ainda não trabalhava com eles. Foi em Santa Maria de Taguatinga. O chefe político mais forte de lá era contra Artur, mas era um homem delicado, que não gostava de agravar ninguém. Um dia Artur com seus rapazes entrou no povoado, madrugadinha, dando tiros e gritos, apearam na porta da igreja e desfilaram pelo Largo.

- Menino, o tal sujeito delicado virou um canguçu. Num “vupe” arreuniu seu povo e se nós saíssemos ligeiro, sei não, era aquele sobrosso.

Os cavalos gemiam e arrastavam os cascos, descendo cautelosamente, a passo, a bocaina estreita e inclinada em demasia. Papa-capins e grilos voavam do capim que bordejava o caminho. A Grota estava lá embaixo, no fundo de uma furna. Os arreios ringiam e a conversa calou-se.

Na sombra, um joão-conguinho guinchava. De cá, viam-se as casas, o engenho, as capoeiras pelas encostas mostrando as velhas roças, os currais, oficina de farinha. O velho teve novamente jeriza. Era aquilo que irritava Ferreira e Vicente Lemes, era a capacidade de trabalho deles Melos. Isso que enfezava os inimigos. Afinal, Artur ali era tudo, sempre fora tudo. Desde novinho vivia lendo e estudando cada livrão grosso de meter medo, mas aprendeu: era o médico, o farmacêutico, o advogado, até o padre. Padre, muito bem: padre, porque Artur descobriu aquele tal de espiritismo, que era religião. E Artur era médio, como chamava o padre dos espíritas.

O velho sentia-se orgulhoso do filho, sentia-se envaidecido. “Era um sábio. Nem Francisco Azevedo, o famoso professor da fazenda das Taipas, que possuía um mundão de livros, nem esse podia com Artur que o entupia com duas palavras. Isso que exasperava o dorminhoco do Vicente e o fuxiqueiro do Ferreira.”

Se havendo adiantado, Mulato pendurava-se da sela, fazendo correr as varas da porteira, franqueando ao velho a entrada do curral. Um bando de cachorros veio ao encontro dos chegantes, aos latidos, mas reconhecendo-os transformaram a acuação em ganidos de alegria.

Já a pé, Resto-de-Onça segurava com uma mão a camba do freio da mula, com a outra firmava o estribo e ajudava o velho a apear-se junto à calçada da frente da fazenda. Pedro Melo estava ansioso por contar ao filho a exigência absurda do coletor Vicente, mais esse fuxico do diabo do juiz Valério. Ó gentinha!

                                                                              (O tronco, 1956.)

 

                                PELO SIM, PELO NÃO

Ora pois, que a idade tem muita força. Por aquele tempo, tinha eu meus dezoito anos, era comprido que nem uma vergôntea de marmelo, espinhento, sensível a mais não poder, e o sangue me galopava pelo corpo tal e qual u’a manada de poldros brabos em broto novo de queimada.

Acontece que meu padrinho resolveu tocar pra diante uma fazenda que recebera de porteira fechada, em pagamento de dívida; situava-se pra lá do Bugre, pro norte da mata dos Caiados, por nome fazenda do Coqueiro: Coqueiro, por via do despropósito de coco de macaúba que por lá crescia. Disparate.

A fazenda não era lá muito boa, não, mas possuía suas manchas de terra fresca, suas furnas de cambaúba e capim meloso, coisa especial, onde pastavam algumas centenas de cabeça de gado bruxo já meio mestiçado de zebu, brabo que era uma coisa por demais. Só sentir cheiro de gente, os bichos levantavam a cabeça, sacudiam as aspas enormes e deixavam era poeira na cara do cristão. E com meu padrinho, que Deus tenha, lá fomos nós custear esse gado, pegar aquelas brabezas a casco de cavalo e laço e derrubar pelo rabo, reunir em pastoreio, meter no curral, salgar, cortar a vassoura do rabo, marcar e carimbar. Uf, nem lhe digo! Foi o que deu outubro e novembro e nós naquela labuta que era um nunca mais se acabar! Por cima, o capeta da curralama andava toda estragada e o pessoal estava reconstruindo quase tudo, racha aroeira praqui, pororoca prali, reajusta uma porteira mais acolá.

Barras do dia quebrando, um gole quentinho de café no papo, a gente já pulava em riba do socadinho, metido nas calças justas de couro que lá chamavam de perneiras, atirava aos ombros a capa “ideal” que a chuva não era caçoada, na garupa o cipó de doze braças, e rumava para o campo. Uns iam pegar as brabezas, outros dar pastoreio: era a labuta que você sabe. Antes do pessoal esparramar, na passagem do córrego, amoitado numas touceiras de gravatás, havia um garrafão de cachaça com umburana: a gente bebia escondido, que meu padrinho tinha uma jeriza danada de todo jeito de bebida.

A Valença era que por esse tempo andava pela fazenda, passeando ou não sei o quê, uma sobrinha do patrão, pedaço de moça bonita, que hoje é senhora casada e mãe de muito filho importantão, mas que eu conto porque não falo por malícia, nem com safadeza; minha história é contada do fundo do coração, com o respeito de minha lealdade. Mas que pedaço de moça bonita! Uns olhos escuros que eram mesmo que um veludo, de maciosos; a boca, aquela formosura de boca, sempre molhada e mais vermelha que uma rosa de jardim; um corpo, qual! Não tinha velho, não tinha moço, até as mulheres sentiam um frio pelo estômago quando viam a moça passar no passinho faceiro, os peitinhos tremendo feito berém preparado em madrugada de São João.

E mais para dar na vista da menina do que mesmo para servir, vivia eu trabucando pelos campos, dando duro no curral, de onde, vez por outra, se via o vultinho dela no vão da janela da varanda esperando seu copo de leite quente, espiando uma ferra de marruco ou algum curativo de bicheira. A gente ficava inzonando, inventando lida, fazendo bulha por amor de obrigar a mocinha a chegar à janela. Tinha então uma vaca caraúna, por nome “Cigana’, de bezerro já desse porte assinzinho, - você sabe que leite desse tipo de rês é o que há de mais gostoso, - pois dessa é que o degas aqui enchia o copinho da moça, canequinho de louça imitando um barril, temperado com açúcar e conhaque.

Tempo duro, mas que até hoje o coração me bacoreja apressurado quando me alembro! Ah, tempo bão! Então, o sangue galopava nas veias do corpo só um poldro bravo pelas queimadas.

Hoje é vergonha dizer, mas naquele tempo, não: embora entrado já nos meus dezoito anos bem socados e nutridos, lhe conto, meu irmão, eu não conhecia mulher nenhuma na minha vida. Não é que não existisse mulher dama; bem que doutra banda do “Guampo” havia uns pares delas, onde o pessoal ia buscar amor e aventuras e muito gálico, mas eu nunca fui desses pagodes não. É como lá diz: me casei virgem, de mulher, bem entendido! Padecia, mas suportava.

Por conseguinte, quando punha os olhos em riba da menina, ai, minha Nossa Senhora da Abadia do Muquém! até a vista me turvava, o sangue chega saltava aqui na veia-artéria do pescoço e o coração açulerava que até parecia coisa que ia dar na gente um trem ruim qualquer. E apesar de todo esse sofrimento, embora ninguém soubesse, vivia de olhos fitos na menina, namorado que nem um jacaré, sonhando com ela, cheiro de toda flor, cheiro de toda fruta, era cheiro dela; vulto de nuvem era vulto dela; canto triste de perdiz, pio magoado de sabiá, que são tantos em princípios de água, era canto da voz dela. Ai! era aquela dor mais gostosa que a gente podia imaginar, bambeza de vontade, corpo largado de quebradeira, um sobressalto constante no corpo largado de quebradeira, um sobressalto constante no coração. Muita vez, uma bobaginha de nada fazia a lágrima brotar nos meus olhos: o canto da jaó na boquinha da noite, o ronco comprido de algum trovão ao longe... E como os homens e as mulheres me pareciam bons e cheios de encanto! Até os doentes, até os aleijados eu via com os olhos de muita amizade, uma vontade de ajudá-los, de reparar os seus defeitos, consolar suas tristezas, aproximar os arredios, tratar bem os bichinhos de Deus-Nossinhô...

Bem, u’a manhã de domingo, tínhamos castrado a macete bem uns dez marruquinhos, ferrado outros tantos, tínhamos lidado que não era caçoada e estávamos enlameados da cabeça aos pés, pois embora naquele dia não chovesse, a chuva vinha chovendo obra bem de um mês ou quê; mas, como ia contando, nessa amanhã não chovia. Pelo contrário, um sol de fogo clareava o mundo, com bandos de passo-pretos cantando choco pelas cacaubeiras, uma fumaça dourada se erguendo do lameiro. Pelas nove horas mais ou menos, eu, o Dito Nolasco, o Noratinho e outros terminamos a labuta e resolvemos ir até o corgo mode lavar o corpo e em seguida entrar na fatiota nova, pois as visitas não tardavam e iam ser muitas.

A água estava turva, com o ribeirão meio crescido, mas um banho não era desagradável com o calorão que fazia. Metemo-nos na água, tomamos banho e, como fosse hora de “pegar o grude”, o Dito mais o Norato apressaram-se em ir para as casas deles. Eu, porém, como comia era na casa de meu padrinho mesmo, e lá o almoço fosse mais tarde, deixei-me ir ficando por ali marombando mais um tiquinho.

Beleza de ribeirão, as praias muito alvas da areia que as derradeiras enchentes deixaram! Verde-verde era o mato, umas catleias penduradas do alto que nem velas de igreja, umas flores de uma lindeza sem par trepando pelos galhos, azulando ou arroxeando por ali uns lábios, uns sexos de fêmeas.

O silêncio caía imenso sobre o lugar.

Longe, lá para os lados da fazenda, vozes chamando, pedaços de frases, um pilão socando, latidos de cachorros, cacarejos de galinhas, “Maria, ocê...” que o resto o vento sacudia pra longe; de novo o silêncio mais silencioso desse mundão de meu Deus. A água correndo nas pedras com sua cantiguinha terna, a areia branca, as flores, os passarinhos, um cheiro adocicado de baunilha perdida nalguma moita. Em tudo esse mistério do sangue andando na profundeza do corpo, ruído confuso de mil bichinhos picando, roendo, carregando, trafegando por baixo das cascas dos paus, pelo chão fofo e morno da sua fermentação fecunda naquela manhã de umidade e de sol demais.

Deitado na areia quente do sol, meu pensamento vadio era uma borboleta serena que não pousava em nada; sem perceber, eu sentia em meus nervos, minhas tripas, sangue e pele e cabelo e unha, a presença desejosa da parenta de meu padrinho. Era ela o rio; e nela eu mergulhava o desejo de minhas carnes; era ela a areia, e nela eu me espojava num longo contato mineral e cálido; era ela a flor que imitava tão delicadamente um sexo; era o perfume que punha no meu nariz um fôlego acelerado de quem estivesse tomado do maior medo desse mundo; era o sol destilando essa moleza de pecado e de abandono.

Nisso que volto a vista para as águas turvas do ribeirão, mesmo ali no remanso do poço cavado entre pedras, u’a mancha de sol, seria? me chamou a atenção. Mas será que era sol? Imitava antes um bicho horroroso, aranha imensa talvez de muitas e muitas pernas! Ou era limo verde das águas mansas? Ou cabeleira? Ah, isso sim: mais parecia cabeça de mulher vista de costas, cabelos muito compridos se desmanchando nas águas turvas... Mas cabeça de mulher, uai! Agora, ondulando como labareda incerta, boleando mornamente feito uma gelatina esverdinhada, no fundo das águas refrangidas e refletidas em jato de luz, traços de musgo, sombras de mato e flor, espuma e ondas, aparecia mas logo se sumia um corpo de mulher. De uma beleza que até me tomava o fôlego, de um mistério tão completo que meu coração perdeu o compasso e veio bater na goela, o sangue a me atropelar nas veias tal e qual uma tropa de garanhões perseguindo éguas nos chapadões brotados de novo...

Homem, não sei! Eu tinha, como principiei contando, dezoito anos e o sangue me corria nas veias como poldro brabo. Tem hora que fico cismando: seria a Mãe d’água?

Por isso é que digo que a idade tem muita força.

                                                             (Caminhos e descaminhos, 1965.)