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Basílio da Gama

               À NAU SERPENTE

                Por ocasião de cair ao mar no Rio de Janeiro
                    em 8 de fevereiro de 1767

Já do lenho as prisões se desataram
E assustada serpente as águas trilha,
Já ondeia no mar a instável ilha,
E já no fundo as âncoras pegaram.

Os ventos sobre as asas se firmaram
Por ver de perto a nova maravilha,
E ao vasto peso da disforme quilha,
Gemeu Netuno, e as ondas s’encurvaram.

Verdes Ninfas azuis do pego undoso,
Conduzi pelos úmidos lugares
Esse errante edifício majestoso:

E entre tantas empresas singulares,
Veja o mundo qual é mais glorioso,
Dar leis à terra, se pôr freio aos mares.

 

A UMA SENHORA

            Natural do Rio de Janeiro, onde se achava então o Autor

Já, Marfisa cruel, me não maltrata
Saber que usas comigo de cautelas,
Qu’inda te espero ver, por causa d’elas,
Arrependida de ter sido ingrata.

Com o tempo, que tudo desbarata,
Teus olhos deixarão de ser estrelas;
Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d’oiro converter-se em prata.

Pois se sabes que a tua formosura
Por força há de sofrer da idade os danos,
Por que me negas hoje esta ventura?

Guarda para seu tempo os desenganos,
Gozemo-nos agora, enquanto dura,
Já que dura tão pouco a flor dos anos.

 

                            A RESIGNAÇÃO

                       Por ocasião do ser o autor condenado pelo
                  Tribunal da Inconfidência ao degredo de África.

Temam embora a morte os que aferrados
Aos grossos cabedais, que possuíam,
Nunca tão de repente presumiam
Que lhes fossem das mãos arrebatados.

Sintam deixar co’a vida os começados
Muros d’altos palácios, que erigiam;
A cara esposa, os filhos, que cresciam;
Os brandos leitos; os tremós dourados.

Que eu sem bens e sem casa, vagabundo,
Mal coberto c’o manto da indigência,
Já não temo da morte o horror profundo.

No que me tira não me faz violência,
Que o melhor modo de sair do mundo
É cheio ou de miséria ou de inocência.

 

AO MARQUÊS DE POMBAL

                                            Apresentando-lhe em 1769 o poema Uraguai

Ergue de jaspe um globo alvo e rotundo,
E em cima a estátua de um herói perfeito;
Mas não lhe lavres nome em campo estreito,
Que o seu nome enche a terra, e o mar profundo.

Mostra no jaspe, artífice facundo,
Em muda história tanto ilustre feito,
Paz, justiça, abundância e firme peito,
Isto nos basta a nós, e ao nosso mundo.

Mas porque pode em século futuro,
Peregrino, que o mar de nós afasta,
Duvidar quem anima o jaspe duro;

Mostra-lhe mais Lisboa rica e vasta,
E o comércio, e em lugar remoto e escuro,
Chorando a hipocrisia. Isto lhe basta.

 

          AO MARQUÊS DE POMBAL

Não temas, não, marquês, que o povo injusto
De teus grandes serviços esquecido,
Pelos gritos da inveja enfurecido
Solicite abolir teu nobre busto.

Para ser imortal teu nome augusto
Não depende do bronze derretido;
Em mais firmes padrões fica insculpido
Teu nome excelso, teu valor robusto.

Lisboa restaurada, o Reino ornado
De ciência, de indústria e de cultura,
De política e comércio apropriado:

A tropa regulada, a fé segura,
O tesouro provido, o mar guardado:
Eis aqui do teu gênio a cópia pura.

 

O URAGUAI

                     CANTO I

Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue tépidos e impuros
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada artilheria.
MUSA, honremos o Herói que o povo rude
Subjugou do Uraguai, e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai tanto custas, ambição de império!
E Vós, por quem o Maranhão pendura
Rotas cadeias e grilhões pesados,
Herói e irmão de heróis, saudosa e triste
Se ao longe a vossa América vos lembra,
Protegei os meus versos. Possa entanto
Acostumar ao voo as novas asas
Em que um dia vos leve. Desta sorte
Medrosa deixa o ninho a vez primeira
Águia, que depois foge à humilde terra
E vai ver de mais perto no ar vazio
O espaço azul, onde não chega o raio.
Já dos olhos o véu tinha rasgado
A enganada Madri, e ao Novo Mundo
Da vontade do Rei núncio severo
Aportava Catâneo: e ao grande Andrade
Avisa que tem prontos os socorros
E que em breve saía ao campo armado.
Não podia marchar por um deserto
O nosso General, sem que chegassem
As conduções, que há muito tempo espera.
Já por dilatadíssimos caminhos
Tinha mandado de remotas partes
Conduzir os petrechos para a guerra.
Mas entretanto cuidadoso e triste
Muitas cousas a um tempo revolvia
No inquieto agitado pensamento.
Quando pelos seus guardas conduzido
Um índio, com insígnias de correio,
Com cerimônia estranha lhe apresenta
Humilde as cartas, que primeiro toca
Levemente na boca e na cabeça.
Conhece a fiel mão e já descansa
O ilustre General, que viu, rasgando,
Que na cera encarnada impressa vinha
A águia real do generoso Almeida.

                          [...]

                     Canto IV

                          [...]

Para se dar princípio à estranha festa,
Mais que Lindoia. Há muito lhe preparam
Todas de brancas penas revestidas
Festões de flores as gentis donzelas.
Cansados de esperar, ao seu retiro
Vão muitos impacientes a buscá-la.
Estes de crespa Tanajura aprendem
Que entrara no jardim triste e chorosa,
Sem consentir que alguém a acompanhasse.
Um frio susto corre pelas veias
De Caitetu, que deixa os seus no campo,
E a irmã por entre as sombras do arvoredo
Busca co’a vista e treme de encontrá-la.
Entram enfim na mais remota e interna
Parte de antigo bosque, escuro e negro,
Onde ao pé de uma lapa cavernosa
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada de jasmins e rosas.
Este lugar delicioso e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido,
Para morrer, a mísera Lindóia.

Lá reclinada, como que dormia,
Na branda relva e nas mimosas flores,
Tinha a face na mão, e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia e cinge
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada e irrite o monstro,
E fuja e apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caitetu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
Soltar o tiro, e vacilou três vezes
Entre a ira e o temor. Enfim sacode
O arco, e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindóia, e fere
A serpente na testa, e a boca e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açoita o campo co’a ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.

Leva nos braços a infeliz Lindoia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que amor reinava um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua,
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.

Nos olhos Caitetu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime, e a voluntária morte,
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.

Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece.
Tanto era bela no seu rosto a morte!

Indiferente admira o caso acerbo
Da estranha novidade ali trazido
O duro Balda; e os Índios, que se achavam,
Corre co’a vista, e os ânimos observa.
Quanto pode o temor! Secou-se a um tempo
Em mais de um rosto o pranto, e em mais de um peito
Morreram sufocados os suspiros.
Ficou desamparada na espessura,
E exposta às feras e às famintas aves,
Sem que alguém se atrevesse a honrar seu corpo
De poucas flores e piedosa terra.

Fastosa Egípcia, que o maior triunfo
Temeste honrar do vencedor latino,
Se desceste inda livre ao escuro reino,
Foi vaidosa talvez da imaginada
Bárbara pompa do real sepulcro.

Amável Indiana, eu te prometo
Que em breve a iníqua pátria envolta em chamas
Te sirva de urna, e que misture e leve
A tua e a sua cinza o irado vento!

                                       [...]