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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Múcio Leão

Senhor Austregésilo de Athayde,

Coube ao mais antigo dos amigos que tendes nesta Casa a honra de vos dar as boas-vindas no limiar da imortalidade. Sede bem-vindo.

A solenidade desta noite, Sr. Austregésilo de Athayde, é propícia a velhas evocações. Por um momento, deixo de ver-vos tal como aqui vos achais, exibindo esse ouro do fardão acadêmico e essa prata que o tempo deixou que nevasse sobre a vossa fronte. E torno a ver-vos como vos vi na época em que nos conhecemos, mal saídos da adolescência e imaginando que na vida existisse realmente os encantados jardins de Armida.

Vínheis do Ceará, e poucos escritores daquele momento poderiam ser considerados tão legitimamente representativos do nosso doce e áspero Nordeste quanto o éreis vós. Nascido na orla do sertão pernambucano, tínheis sido criado em terras cearenses. Sangue e corpo, sensibilidade e alma, emoção e bravura, tudo o que possuíeis era Nordeste, sofria e cantava o Nordeste.

Teria sido esse o segredo da espontânea e afetuosa amizade que logo nos uniu? Talvez. Mas os motivos de aproximação que tínhamos – desculpai-me o que existe de pessoal na observação – eram ainda outros. Estavam na identidade do nosso gosto e nas nossas preferências literárias, na identidade do nosso sonho de nos dedicarmos a um longo exercício da crítica, na identidade das nossas austeras concepções do que fosse a atividade de intelectual.

UM ENCONTRO EM RENAN

Havia, ainda, outra circunstância que nos aproximava. Havia o nosso mestre Renan.

Sim, Sr. Austregésilo de Athayde, estávamos ambos, aos vinte anos, vivendo em plena intimidade com o suave filósofo bretão. Em mim, a sedução renaniana fora superficial, e era meramente artística. Embalava-me a incomparável música do mais maravilhoso dos estilos, e confesso-vos que ainda hoje não encontrei, em nenhuma literatura, escritor que me dê tanto a impressão da poesia vaga, sempre difusa, porém sempre luminosa, quanto o autor da biografia de São Paulo, o escavador dos mistérios dos Evangelhos, o gracioso e comovido escultor da imagem de Jesus.

Em vós, porém, a influência renaniana fora uma crise profunda, fora de sentimentos e de crenças, fora de alma, fora dessas que transformam os destinos.

Não guardastes mágoa ao doce heresiarca por essa imensa subversão que operou no mais fundo do vosso espírito. Retomando Renan na maturidade, pudestes encontrar nele aquilo que uma humanidade mais adiantada que a de hoje, uma Igreja mais liberta, talvez venham a ver: o autor do Quinto Evangelho, um escritor canônico, apto a incorporar-se à mais bela família de escritores do mundo, a essa família sem igual que se compõe de Mateus, Marcos, Lucas e João. Não penseis que eu queira ser paradoxal no que vos digo. Os séculos têm operado milagres mais espantosos do que esse. E os tempos futuros hão de ver assombros muito mais vertiginosos do que os que
viram os tempos pretéritos, do que os que vê o nosso tempo.

Vós mesmo, com a autoridade que vos dá um largo estudo da matéria teológica, dizeis-nos qualquer coisa acerca da possibilidade, já não digo da canonização de Renan, mas da colocação de sua Vida de Jesus entre os livros aceitos pela Igreja. Eis um perfil que traçastes de Renan – um perfil em que o próprio Renan se reconheceria:Na sua aparência de revelador do Cristo como homem, havia nele tanto amor filial e tanta piedade como em São Francisco de Sales. Acreditando-se discípulo de Voltaire, pelo sorriso e pela displicência, pela ironia maliciosa e quase sempre ingênua, era na verdade um apologeta, empenhado na destruição dos dogmas pelos métodos frios e neutros da Ciência,mas mostrando a cada passo que os fenômenos de ordem telúrica do Cristianismo transcendem a projeção das forças naturais e se filiam, por maneiras que não conseguiu explicar, ao testemunho dos milagres.

São palavras de ouro. E como estão próximas da graciosa confidência do escritor – da confidência segundo a qual tudo o que ele desejava realizar na vida seria um pequeno livro piedoso, para uso das almas devotas.

VOCAÇÃO QUE FALHOU

Criança, sob os tépidos influxos de um lar impregnado na religião católica, imagináveis que a vossa vocação era a da Igreja, e para ela caminhastes.

No Seminário do Ceará fazíeis grandes progressos, e desde logo as esperanças dos vossos mestres se condensaram, alvissareiras, naquele estudante tão bem dotado para a aquisição de todos os conhecimentos. Foram-vos facultadas, então, todas as condições necessárias ao mais aprofundado estudo, e entre elas estava uma licença especial para freqüentar a biblioteca da Casa, departamento que era vedado ao comum dos alunos. Iniciou-se assim o vosso drama de consciência. Em vários autores encontráveis a negação da divindade de Jesus, a negação sem apelo das próprias bases da Religião. Nulos vos pareciam os argumentos de que podíeis dispor para refutar tais negações, reafirmando vossas crenças. Apeláveis, então, para os mestres do Seminário, desejando que eles vos oferecessem aquilo que já os livros não vos davam.

Mas, ah! tudo o que eles diziam vinha previamente esfarinhado e destruído pelos vossos filósofos racionalistas e libertos. O resultado dessas polêmicas verbais com os vossos mestres foi o desfazerem para sempre as vossas crenças. Pascal adolescente metamorfoseava-se em Renan.

Um dia nos haveis de contar, nessa série de comovidas evocações da primeira vida, que escreveis, o que foi aquele drama interior de vossa alma. Teremos, assim, em nossas Letras, um correspondente para certas passagens das Recordações da Infância e da Mocidade, do escritor de quem em tanta coisa vos aproximais.

Poderíeis, é certo, naquele momento, ter feito o que tantos fazem – ter deixado de lado os escrúpulos da consciência, e, tendo perdido a fé, aceitar a batina. Mas isso não se coaduna com a vossa delicadeza, nem com a vossa lealdade. Sincero convosco mesmo, abandonastes os sonhos de vos tornardes sacerdote. E de vossa torre de marfim da religião, descestes para a planície em que se acotovelam e sofrem os homens comuns.

Certo dia, vestido de preto, exibindo uma gravata preta, trazendo um guarda-chuva preto debaixo do braço – atravessastes, pela última vez, o portão do Seminário onde atormentada se vos consumira a adolescência. Junto do portal, coroada de espinhos, a figura de pedra do mais doce dos amigos vos fitava, dirigindo-vos uma exortação ansiosa:

– Belarmnino, Belarmino, por que me abandonas?

Fitastes de olhar sombrio, o homem dulcíssimo. E apenas lhe respondestes:

– Nunca, nunca mais nos havemos de encontrar.

E, até agora, cumpristes essa declaração. Continuais distante de quaisquer crenças, e esse estado, segundo o confessais, é o de uma imperturbável tranqüilidade interior.

Mas, ao lado dessa descrença, conservais e cultivais certos pontos de vista, que em geral somente os espíritos religiosos, somente os que vivem da Igreja e para a Igreja desposam. Não sei de jornalista brasileiro, na geração atual, que tenha defendido com maior ardor do que vós a majestade da religião no coração das massas. É que sois, antes de tudo, um espírito político. E defendeis a religião por motivos sociais, da mesma forma como defendeis a Democracia, da mesma forma como defendeis a Língua Portuguesa.

UM CONGRESSO INTERNACIONAL

Foi esse sentimento político – se posso defini-lo assim – que vos levou, em 1948, a assumir, diante do Brasil e diante do mundo, a atitude corajosa de que tanto nos lembramos. Representante do Brasil na 3.ª Comissão da ONU, colaboráveis na redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Esse documento, que estava destinado a tornar-se o Evangelho leigo da nova humanidade, consagrava, no seu pórtico, a afirmação de que “o homem era um ser dotado de consciência e razão pela Natureza”. Isso equivalia à proclamação de um princípio filosófico. Embaixador de um país em cuja Constituição se inscrevia o nome de Deus, antevistes a fria e racionalista finalidade a que com aquela afirmação se pretendia atingir. Resolvestes, por isso, pugnar por outra filosofia. Vossa meditação foi a de que, se a Declaração havia de sair sob a égide de algum princípio filosófico, que ao menos esse correspondesse às aspirações da maioria dos povos ali representados. E foi então que apresentastes vossa proposta, por força da qual aquela afirmação seria substituída por esta outra: “o homem é um ser criado à imagem e semelhança de Deus...”

O que foram os consectários dessa atitude nós o sabemos, pelas florestas de papel, pelos mares de tinta que o grande tema consumiu no mundo. Já existem livros estudando o assunto... Tais, porém, foram as dificuldades que no momento surgiram, que os delegados de outros Países, o da Bélgica e o da França, se viram forçados a negociar uma fórmula de transação: nem o grupo dos racionalistas faria prevalecer a sua natureza, nem o delegado do Brasil faria prevalecer o seu Deus... Aceitastes a conciliação. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem passou a figurar esta fórmula vaga: “o homem é um ser dotado de consciência e razão...” Mas não se diz quem foi que o presenteou com essa razão e com essa consciência.

E ainda haverá sujeitos maliciosos, meu caro confrade, que oponham suas tenazes dúvidas a essa modesta e quase simplista declaração...

A ESTRÉIA NO RIO DE JANEIRO

Vencida aquela crise em que, em vossos altares íntimos, um cataclisma destruíra Deus, deliberastes partir para o Rio de Janeiro. Jasão preparava-se para ir conquistar o Velocino de Ouro, Dom Quixote partia para ir redimir os pecados do mundo.

Foi com esse espírito de afirmação, de vontade de triunfo, que saltastes de um navio do Lóide, no Rio de Janeiro de 1918.

Aqui podíeis contar com uma simpatia carinhosa e com um amparo atento, a simpatia, o amparo do vosso tio Antônio Austregésilo, já àquele tempo um dos nomes triunfantes da Ciência médica brasileira, um dos valores mais respeitados da Academia. Foi o Professor Austregésilo quem vos apresentou ao meio literário da capital da República. Por intermédio dele, fizestes duas aproximações que muito se gravaram em vossa sensibilidade e mais tarde em vossa saudade: a de Coelho Neto e a de Lima Barreto.

REMINISCÊNCIA DE COELHO NETO

Com o autor de O Rajá do Pendjab tínheis certa aproximação anterior. Fora Coelho Neto, um dia, alvo da terrível diatribe de um foliculário de Fortaleza e, no entusiasmo dos dezoito anos, rude vos lançastes na arena, em defesa do escritor de vossa estima. Tivera ele conhecimento dessa atitude, e a louvara numa bela carta que ainda hoje possuís.

Chegando ao Rio, levastes-lhe os originais de um livro de contos – as Histórias Amargas – que trazíeis na mala, e lhe pedistes um prefácio para a coletânea. Coelho Neto vos deu esse prefácio. E nele afirmava que os vossos contos lembravam os de Machado de Assis “na proporção em que uma flor recorda os perfumes da floresta...” Mandastes o livro para a tipografia, mas um incêndio nos privou do prazer dessa leitura. Considerastes aquela catástrofe um sinal do Destino e destes o livro como inédito para sempre. Dele conhecemos apenas o prefácio de Coelho Neto, que conservais como relíquia.

Daí por diante vos mantivestes amigo do autor de Rei Negro. Mas, circunstância curiosa, Coelho Neto deixou de identificar-vos com o contista, com o jornalista que éreis. Passou a confundir-vos com o pintor Virgílio Maurício. A princípio procurastes desfazer o triste equívoco. Mas a confusão era persistente, e findastes por vos conformar com a fatalidade daquele destino. Aceitastes a nova condição de ser o pintor alagoano. E quando vos encontráveis com Coelho Neto, com ele conversáveis deliciadamente acerca das vossa Arte audaciosa e colorida.

LIMA BARRETO

De Lima Barreto, porém, foi que naquele tempo de entusiasmo e de esperança, se gravaram em vosso espírito as reminiscências mais carinhosas. Era já no crepúsculo do grande escritor boêmio, e freqüentemente o encontráveis no Café São Paulo, na Avenida Rio Branco.

Lima Barreto com o espírito sempre enevoado, mas ainda assim miraculosamente claro e penetrante, andava sujo e semi-andrajoso. Muitos fariseus das nossas Letras fugiam-lhe ao contato, com receio de manchar as túnicas de uma alvíssima virtude. O criador de Policarpo Quaresma fulminava-os com o seu sorriso de semideus desprezador dos homens.

Era no fundo do Café São Paulo, em uma das últimas mesas, que Lima Barreto se sentava, para tomar a sua garrafa de cerveja, o seu chope, os licores poderosos em cuja névoa se esquecia dos tormentos da vida. Ali o íeis encontrar, e, enquanto ingeríeis abundantes copos de leite, com ele praticáveis longamente, arquitetando, talvez, em tais momentos, muitos daqueles diálogos que havíeis de localizar na Barbearia Sol. De algumas dessas práticas temos conhecimento, porque as narrastes, mais de uma vez, em vossas páginas de reminiscências. Vemos, por essas páginas, que um dos assuntos diletos de Lima Barreto, naquele fim de vida, era Machado Assis. Mas a maneira como o criador de Gonzaga de Sá encarava o criador de Dom Casmurro era a da negação. Sustentava Lima Barreto, nas confidências que vos fazia, que Machado de Assis era falso em tudo o que escrevia e em tudo o que imaginava – falso no conto e falso no romance. E vos exortava a que, escrevendo, e escrevendo obra de ficção,conservásseis sempre os olhos na pura e simples realidade. O preceito, como preceito, é excelente. A censura ao grande romancista é que me parece injusta. Como escritor, Machado de Assis nutria-se da realidade, tanto quanto se teria nutrido Lima Barreto. De certo eram diferentes as realidades de um e de outro, tanto quanto eram diferentes os dois homens – um todo clareza, todo franquezas, todo confissões de defeitos, exibições de vícios ou de virtudes; o outro todo sutileza, todo subentendido, todo meio-linha, meio-tom, meia-cor, meia-palavra. Como haveriam de entender-se os dois?

A Lima Barreto confiastes os longos planos que então vos entusiasmavam – o da publicação dos contos intitulados Histórias Amargas, o da publicação do romance intitulado Quando as Hortênsias Florescem. Sobre o romance creio que ele não chegou a ter idéia precisa. Com relação ao livro de contos, porém, é certo que o teve. Ouviu que Coelho Neto escrevera para ele um prefácio, no qual dizia que aqueles contos lhe lembravam os de Machado de Assis. E, partindo daí, fez sumariamente o julgamento da vossa obra:

– Se lembra o Machado, não presta. Vá escrever outra coisa.

UM MOMENTO LITERÁRIO

Já então, meu caro confrade, os vossos amigos sabiam que havia chegado ao Rio de Janeiro um companheiro encantador, de espírito ornado, malicioso e sutil, de ânimo incansável, apto às lutas espirituais e, se fosse preciso, às lutas físicas.

Lembro-me do afeto que vos testemunharam sempre Graça Aranha e Ronald de Carvalho, desejando chamar-vos para as fileiras do Modernismo, que então se organizava. Muito resististes às seduções dos dois feiticeiros. Deliberadamente, recusastes ser um dos templários daquela guerra santa. Preferistes ficar à margem, antes como assistente do que como ator. Foi, naquele momento, a posição de muitos de nós, foi de todos os que traziam uma séria formação clássica e que não tinham a audácia iconoclástica de esbofetear os ídolos antigos. Ai de mim, fui um desses jovens cheios de prudência que não ousaram caminhar com as ousadias do seu momento, e preferiram guardar a fidelidade ao passado! Como me penitencio disso! Hoje, que adormeço neste remansoso abrigo da Academia, hoje que vejo coberta de brancuras tristes a minha pobre cabeça, como lastimo não ter sido, aos vinte anos, o mais irreverente dos irreverentes! Agora é tarde, é muito tarde! Mas que vontade de retornar aqueles dias, meu caro Austregésilo de Athayde, e de voltar levando nas mãos a chama de Eróstrato!

Sei que convosco – que com tanta firmeza nos dizeis que desejaríeis ser um dos conjurados de Bruto nos Idos de Março – poderia contar, como um dos mais seguros companheiros, para essa missão de redenção do mundo literário.

HISTÓRIA DE UM DUELO

Que éreis tão apto aos rijos combates físicos como aos espirituais, não o ignorávamos, mercê das proezas desportivas que desde logo se contavam a vosso respeito: as vossas aventuras de andarilho, as vossas exibições notórias de jogador de boxe, as vossas demonstrações diárias e inexaustas de nadador corajoso e peritíssimo...

Foi nessa ocasião que ocorreu aquele gracioso episódio do duelo com Antônio Torres.

Torres era, então, o demônio da imprensa brasileira, e do seu mirante da Gazeta de Notícias vivia a flagelar as reputações mais respeitáveis. Um dos seus teirós mais duros era com o nosso querido Austregésilo. Considerando a injustiça daqueles ataques, deliberastes tomar Antônio Torres à vossa conta. E certo dia iniciastes, nas colunas da Tribuna, uma série de ataques crudelíssimos contra o cruel panfletário. A uma dessas agressões tais são as incoerências da alma humana! – aquele agressor incessante não pôde resistir, e vos mandou seus padrinhos, desafiando-vos para um duelo. Vossa resposta foi pronta: aceitáveis o desafio, e, como podíeis escolher a arma, escolhíeis o boxe. Durante dois dias esperastes os emissários do confrade, para com eles ultimar as condições da luta. E afinal eles vieram. Vieram, porém, trazendo uma carta de Antônio Torres, uma delícia de perfídia, em que vos eram dadas, a vós e, por vosso intermédio, ao Professor Austregésilo, as desculpas de um cavalheiro, e em que vos era aconselhada a leitura dos bons autores – e em primeiro lugar a dele próprio, Antônio Torres.

No envelope, o escritor desenhara um coração traspassado por uma espada. Era o que desejava fazer convosco...

O episódio morreu assim. Mas teve a conseqüência que desejáveis: o Professor Austregésilo pôde desde então dormir tranqüilo, sem mais o pesadelo daquelas atormentações de cada semana...

PROEZAS DE UM ANDARILHO

É fato que, em vosso espírito esportivo, ao amor pelo boxe, ao amor pela natação, suplantou sempre o amor pela marcha.

Creio que o vosso paraíso íntimo se divide em três jardins: o primeiro é o gosto dos autores clássicos; o segundo é o órgão, ao qual confiais, em improvisos inspirados, todos os sonhos que alentam vossa alma; o terceiro é andar a pé. Suspeito que os livros que com maior prazer escreveríeis seriam o Manual do Perfeito Tocador de Órgão e o Manual do Perfeito Andarilho.

Que pena a absorção com que viveis a atividade jornalística vos impeça de dar execução a essas duas obras, nas quais, como o fez De Maistre, ao escrever a Viagem em Torno do meu Quarto, poderíeis condensar, em volta de um assunto aparentemente mínimo, uma síntese do mundo!

UM DEMIURGO

Um dos acontecimentos que mais fundamente marcaram a vossa vida, meu caro confrade, foi a aproximação com Assis Chateaubriand, esse demiurgo. Com ele, ao lado dele, tendes trabalhado há 27 anos, numa identidade de espírito e de coração, que somente dois irmãos poderiam possuir.

Creio que não vos farei nenhuma revelação, se vos disser que ainda esse traço desportivo – o gosto por andar a pé – vos é comum com aquele espantoso dínamo de super-humanas energias, que é o criador dos Diários Associados.

E agora vos conto que, em meus tempos de estudante, já Assis Chateaubriand formado, e se preparando para o concurso em que na Faculdade de Direito do Recife aspirava a ser o substituto de meu pai, essa forma de esporte era a predileta de muitos de nós. A Barbosa Lima Sobrinho, prodígio de resistência, ousei acompanhar numa aventura audaciosa, realizando, em poucas horas, sabe Deus com que sofrimentos, a travessia a pé de Olinda a Goiana.

As mais famosas dessas expedições, porém, eram aquelas organizadas e capitaneadas por Assis Chateaubriand. Há longos anos, creio, o nosso queridíssimo Chateaubriand abandonou esse modesto exercício de pedestres: seus esportes hoje são outros, são os longos, incansáveis vôos nos céus brasileiros, nos céus americanos, nos infinitos céus dos outros continentes. Amplitude!Amplitude!Amplitude!

O MISTÉRIO DE UMA ILHA

Com os fulgentes sonhos de homem de letras, trazíeis, quando chegastes ao Rio de Janeiro, outros sonho fulgente: o de ser proprietário de um pedaço do planeta. Mas que não fosse um mero sítio, um simples terreno para a construção de uma casa, isso que é, afinal, a banal aspiração de cada um de nós. O vosso desejo era ser dono de um continente, e se esse continente não pudesse ser vasto, como a Ásia, que fosse minúsculo, como uma ilha da Guanabara. Mas que fosse vosso, todo vosso, sem repartir a sua propriedade com outros senhores...

O destino, que vos sorriu em todas as coisas, sorriu-vos também nesse anelo. E, ainda muito moço, pudestes realizar aquela aspiração criada em vossa alma desde o tempo de menino, desde quando pela primeira vez lestes Robinson Crusoé.

Uma ilha, viver na delícia de uma ilha, ser dono de uma lha! oh! sonho impossível dos criadores de fábulas, dos poetas de todos os tempos! É o sonho de Homero, quando entrevê, em seus deslumbramentos de cego, a divina figura de Calipso; é o sonho de Shakespeare, quando cria a mais impalpável das suas visões de mulher, a doce Miranda de A Tempestade; é o sonho de Camões, quando, desejando dar a máxima glória aos seus heróis, os conduz para a Ilha dos Amores.

Onestaldo de Pennafort, o harmonioso e esquivo poeta, que já devera ser um dos nossos, contou, num estudo que é em si mesmo Poesia, o que seja a delícia e o mistério das ilhas. Citando Gillet, ele assegura: “Toda a felicidade do mundo habita as ilhas. A Poesia está tão cheia de ilhas como o céu de estrelas. Que encantadora Oceania se faria com todas essas ilhas criadas pelos poetas!” Não tem importância nenhuma, reconheçamos, o fato de tais ilhas não existirem na realidade: o que tem importância é que os homens as hajamimaginado, é que elas sejam sempre perfumadas, formosas e felizes.

O nosso poeta conclui por afirmar que, quando esses paraísos se realizarem (eles hão de um dia forçosamente se realizar)! só para aqueles que os imaginaram é que se realizarão. “Porque só é digno de ver uma coisa aquele que pode imaginá-la antes.”

O doce destino transformou para vós em realidade a Poesia incomparável do velho mito das ilhas.

Visitei esse vosso paraíso logo nos primeiros tempos em que o possuístes. Era, então, um recanto rústico, em que alvejavam umas modestas praias e frutificavam umas árvores modestas.

Mas vossos instintos de expansão nos mares são veementes. Tendes, como a Inglaterra, necessidade de reinar sobre as ondas. E eis que, quando a Fortuna dadivosa vos foi bater à porta, levando-vos uma sorte grande, tratastes de adquirir, na proximidade daquela primeira, uma outra ilha – esta agora um vastíssimo pedaço do planeta, capaz de fazer inveja a muito país da Europa.

E foi ali que fundastes o vosso império, D. Belarmino Maria Primeiro! Foi ali que plantastes o vosso jardim e as vossas florestas, foi ali que edificastes o vosso inacessível castelo! Doce retiro! É para lá que vos afastais, cada fim de semana, levando apenas alguns livros e os quatro suaves corações que mais vos amam. É para lá que conduzis os amigos, quando especialmente os quereis homenagear.

Um dos vossos amigos mais queridos, o resplandecente Bernanos, teve o privilégio de conhecer aqueles recantos, de aspirar o aroma daquelas flores, de repousar à sombra daquelas árvores. E foi depois de uma dessas suas visitas, que ele tomou da pena para vos fazer, na primeira página de Monsieur Ouine, esta expressiva dedicatória:

À mon cher Austregésilo, solidement planté dans son peuple comme un arbre dans la terre, et qui, comme un arbre, doit vivre et mourir debout.

Aquele retiro é, pois, o País dessa grande Poesia que trazeis convosco, dessa Poesia a que vos recusastes, até hoje, a dar existência e forma. É lá que recebeis a visita daquela que celebrastes em formosa página – a misteriosa dama da noite, vaga fascinação do luar, perfume denso da terra, símbolo divino dos amores impossíveis, e, talvez, quem sabe, também dos amores possíveis.

Tão deleitoso vos parece aquele recanto que os deuses benignos vos ofertaram que, mesmo quando visitastes Capri, ilha duas vezes ilustre – a primeira por ter sido o refúgio preferido por Tibério, dono do mundo, para esconder a sombria tristeza de seus últimos dias, a segunda por se ter tornado o paraíso feliz de um dos mais famosos escritores contemporâneos – a vossa imaginação fugiu para o Atlântico fluminense, e veio repousar em Marabá. E o vosso coração vos segredou que a ilha brasileira, que o destino vos dera, era mais bela que a maravilhosa ínsula italiana. E tínheis razão!

Que importância pode ter a imagem de um César, que importância pode ter a imaginação de Axel Munthe, quando as comparamos com uma centena de metros de terreno sem história, sem que entretanto frutifiquem algumas árvores que temos o privilégio de chamar nossas?

ESTRÉIA DO PROFESSOR

Mas naquele momento de vossa estréia literária no Rio de Janeiro, estáveis bem longe de imaginar que um dia havíeis de ser diretor da maior corrente de jornais do País, bem longe de pensar que um dia havíeis de vos assentar num congresso de embaixadores, falando em nome do Brasil. Naquele momento, o que havia era o rude braço a braço da vida com um rapaz que se iniciava trazendo apenas como elementos de vitória sua coragem e sua capacidade de esforço.

Estáveis no Rio havia apenas alguns meses, e vãs pareciam as tentativas que fazíeis para arranjar um emprego, quando lestes, certo dia, um anúncio sugestivo: um colégio da cidade precisava de um professor de inglês. Lembrastes-vos de que já havíeis sido professor em Fortaleza. Resolvestes tentar aquele emprego. Mas como, se o inglês de que dispúnheis – apenas o que se aprende no curso secundário – mal dava para uma leitura apressada de jornal? Se fosse uma cadeira de língua latina, sim, porque essa faláveis familiarmente, no Seminário... Mas de inglês!... Contudo, lá fostes. Com o diretor do colégio assentastes as vossas condições. E quando esperáveis sair, para volver na manhã seguinte trazendo bem recordada a primeira lição do Berlitz, e ir, assim, cada dia recordando a reaprendendo a matéria da aula a dar – caiuvos a alma aos pés.

O diretor vos avisou de que a classe estava reunida, acrescentando que havia dias não tinha ela aula de inglês e que portanto convinha que naquele momento mesmo iniciásseis vosso ensino. Valeu-vos nessa ocasião a raiz clássica da cultura que havíeis haurido no Seminário.

Assumistes a cátedra, e destes, numa brilhante estréia de professor, uma lição acerca da criação daquela nacionalidade, traçando o panorama das raças que se chocaram nas Ilhas Britânicas, e que haviam de forjar, para o deslumbramento da História, o milagre da língua inglesa, e, mais ainda do que isso, o milagre da pátria inglesa.

INICIAÇÃO NA IMPRENSA CARIOCA

É dessa fase a vossa iniciação no jornalismo carioca – a atividade de colaboração no Correio da Manhã e na Folha, a atividade de direção na Tribuna, no Braz Cubas e, enfim nos Diários Associados, onde vos encontrais desde 1924.

No Correio da Manhã destes o primeiro trabalho em setembro de 1921, e ali penetrastes levado por uma sugestão hábil de Raul Brandão, brilhante jornalista, um dos vossos companheiros, naquele momento, na Associated Press. Ali chegastes como um conquistador indo desde o primeiro dia ocupar a coluna de honra, a fulgidíssima coluna em que doutrinavam Júlio Dantas, Monteiro Lobato, Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues, Antônio Leão Veloso. Vosso primeiro artigo ali aparecido – um corajoso ensaio intitulado Estudos Dantescos – sobremaneira impressionou o mestre de todos nós, aquele que foi o lidador sem medo e sem subterfúgios, o Cid da nossa imprensa, aquele para o qual o exercício jornalístico foi sempre uma sarça ardente: Edmundo Bittencourt.

No dia seguinte à publicação desse artigo, em conversa com Raul Brandão, referia-se Edmundo Bittencourt às vossas capacidades, reveladas naquela página, e dizia que no Correio da Manhã havia aparecido um jornalista da estirpe de Rui Barbosa.

EXERCÍCIO JORNALÍSTICO

Três décadas se passaram, pois, desde aquele dia, três décadas de um incessante exercício jornalístico. Trinta anos de uma atividade em que tendes produzido diariamente seis e oito artigos. Que pavorosa montanha de papel escrito isso representa, meu caro colega! Numa profissão toda melancólica, como é a dos jornalistas, eu não sei de coisa mais melancólica do que seja esta: considerar a imensidade do trabalho escrito, para sempre perdido, que fica de tais vidas! Pensai no caso de um Carlos de Laet, que viveu oitenta anos e jamais deixou o exercício da imprensa. Se gostássemos de certas estatísticas pitorescas, poderíamos fazer algumas representações gráficas. E, então, iríamos ver que, postos em colunas presas umas às outras, os artigos que Carlos de Laet escreveu dariam várias vezes a volta da terra; iríamos verificar que eles formam talvez uma estrada da terra à lua, senão a Marte...

UMA CONFERÊNCIA DE LÉON DAUDET

E isso, que ocorre com Carlos de Laet, ocorre com todos os que se dedicam, a fundo e com constância, à profissão jornalística. Ouçamos, nesse ponto, a confidência de um profissional dos mais representativos - ouçamos Léon Daudet:

Tal como me vêem – diz ele – eu tenho hoje (1935) 45 anos de jornalismo na pena, 29 dos quais no artigo cotidiano. No conjunto, os meus papéis da Ação Francesa, reunidos, comportariam, somente eles, diversas centenas de tomos in-oitavo, os quais, juntos aos meus 87 romances e ensaios, fariam uma biblioteca de seiscentos ou setecentos volumes impressos. E a isso terei de acrescentar as minhas colaborações anteriores, na Nouvelle Revue, no Figaro, no Germinal, no Gaulois, no Journal, no Soleil, na Libre Parole. É pavoroso, é imperdoável, é inverossímil; mas é assim. Acrescento que me entreguei e me entrego ainda a esse excesso de imprensa com delícias. Não há trabalho que mais apaixone.

JORNALISMO, GÊNERO LITERÁRIO

Seiscentos ou setecentos volumes... e tudo isso, ou pelo menos a maior parte de tudo isso, para sempre perdido!

Sois, porém, um campeão incansável da profissão jornalística, e amplamente defendeis para essa atividade o título literário. Que longas e facundas práticas sempre tivemos a esse respeito! Vós, meu ilustre colega, sustentando a tese de que o jornalismo é um gênero literário absoluto, de tal forma que a Academia devia acolher os homens da profissão sem deles exigir livros, contentando-se com apenas a capacidade dia a dia demonstrada nas colunas das folhas efêmeras. Eu, compartilhando com entusiasmo desse vosso carinho e desse vosso louvor à atuação jornalística que considero a principal atividade literária numa terra como o Brasil, infensa à grande e fácil divulgação do livro, mas respeitando a tradição e vos mostrando a necessidade de conservarmos os Estatutos, no artigo em que estabeleceu para todos os candidatos a imperiosa condição do livro publicado. E com efeito, podeis ver,pelos exemplos mais veneráveis, que os jornalistas mais unicamente jornalistas que pertencem à instituição – um Patrocínio e um Guanabara – trouxeram, eles também, a sua obra publicada em volumes.

Assim foi na fundação da Academia, assim continua a ser ainda hoje. Víamos, há pouco, chegar à nossa companhia Elmano Cardim, representante desse baluarte do prestígio acadêmico, que é o Jornal do Commercio. Mas o título em que o nosso eminente companheiro baseou seu direito a entrar na Casa de Machado de Assis não estava na mera condição de diretor do venerando órgão: estava nos lúcidos e fortes estudos que ele coligiu no volume que intitulou Na Minha Seara.

Igualmente, os títulos que a Academia viu em vós não foram apenas os longos anos de atividade em O Jornalno Diário da Noite ou em O Cruzeiro. Foram os finos ensaios, às vezes cheios de finas malícias, as bem lavradas crônicas, os discursos e as conferências, em que tendes estudado tantas figuras da cultura brasileira e da cultura universal, em que tendes analisado alguns dos temas mais importantes da civilização contemporânea. Alguns desses trabalhos estão reunidos nos volumes Fora da Imprensa e Mestres de Liberalismo. Muitos outros, porém, estão ainda perdidos nas colunas precárias dos jornais, nesse limbo em que o jornalista costuma deixar dormir para a eternidade a maior parte do que produz, nesse limbo em que, alguma vez, se desprezam obras-primas...

Vosso conceito de jornalismo aproxima-se muito do conceito de Martí, príncipe incontestado do gênero. Queria o grande jornalista cubano que o seu jornal fosse como os correios antigos: estivesse sempre com o seu cavalo ajaezado, o seu chicote não mão, a sua espora no pé, para que, ao menor acidente, pudesse saltar sobre a sela, e chegar ao seu ponto de destino antes de qualquer outro. Martí queria também que o seu jornal fosse útil e sadio, elegante, oportuno e valente. “Que em cada um dos seus artigos se visse a mão enluvada que o escreveu e os lábios sem mancha que o ditaram.” Colocado um periódico nessa altura, não sei realmente de cetro que se lhe possa comparar.

A CADEIRA 8

Vindes ocupar na Academia uma Cadeira das mais brilhantes. Nela resplandecem três nomes: o de um poeta lírico, um suave árcade de velhos tempos, o de um dos nossos mais gloriosos parnasianos, e o de um sociólogo, de um historiador das idéias, de um profeta da nacionalidade, como o definis.

Seria fácil encontrarmos as afinidades que tendes com cada um deles. A Cláudio Manuel da Costa e a Alberto de Oliveira, dois clássicos, vos achegais pelo amor dos conhecimentos humanísticos, pela devoção com que vos entregais ao estudo dos velhos e puros modelos da língua portuguesa. Com o primeiro, o poeta de Vila-Rica, tendes ainda outro ponto de contato: o terdes sido um homem de atuação revolucionária, castigado por isso.

Cláudio Manuel da Costa é um daqueles brasileiros de má sorte, que, na antiga terra mineira, seduzidos pelo entusiasmo do alferes Silva Xavier, imaginaram poder libertar a colônia do jugo português. Denunciada, a modesta conspiração, que, ao que julgo, não passava de uma aérea conversa de poetas e de sonhadores, ressaltou como se fosse um perigosíssimo movimento revolucionário. Isso convinha aos propósitos atemorizantes da autoridade reinol. Era um acontecimento que cumpria aproveitar. Gonzaga, Alvarenga Peixoto, o nosso Cláudio, pobres fazedores de versos, adquiriram, assim, a importância dos Catilinas ou dos Coriolanos, a de todos os que conspiraram contra a pátria. Foram presos, julgados, condenados. Mais fraco do que os seus companheiros, ou dono de mais perigosos segredos, Cláudio não resistiu aos sofrimentos: suicidou-se – ou o suicidaram – na enxovia.

Revolucionário de 1932, vós tivestes destino bem diferente. Terminado o movimento, festes mandado para um doce exílio em terras européias e americanas, e ali o vosso espírito se abriu à contemplação de novos milagres da inteligência e do saber dos homens.

UM REVOLUCIONÁRIO E UM CONSERVADOR

De Oliveira Viana vos aproximais por esse constante, esse nunca adormecido amor com que estudais o Brasil, com que lhe procurais compreender a alma e respirar a essência, com que tentais devassar-lhe os amplos destinos futuros.

Mas que distância imensa entre vós e o vosso antecessor! Que pontos de vista opostos representais, na conceituação da vida, na interpretação da alma, na aceitação e na compreensão dos fenômenos do Brasil!

Em primeiro lugar, sois, pelas vossas origens e pelas vossas próprias atitudes, um revolucionário, enquanto Oliveira Viana é o conservador obstinado.

NASCIMENTO FEITOSA

Ecoa, realmente, no fundo de vossas tendências políticas, a voz de um velho e venerável revolucionário de Pernambuco, o vosso bisavô Antônio Vicente do Nascimento Feitosa, aquele que, em certo momento, encarnou as aspirações políticas do Partido da Praia, na Revolução de 1848. Com efeito, se Borges da Fonseca representa o movimento praieiro no momento em que este se processa, no fiat majestoso, Nascimento Feitosa representa-o na sua continuidade dramática e pungente. É ele o herdeiro das idéias e do prestígio de Nunes Machado, o chefe da luta que se prolonga em Pernambuco contra os estrangeiros opressivos, contra a opressiva hegemonia da família Rego Barros Cavalcanti. Lá está a verificação do fato em uma observação de Nabuco, em Um Estadista do Império: “Os restos da Praia estavam unidos em torno de Feitosa, soltando contra todos que se aproximaram do presidente o grito de ‘vendido ao Governo’.”

Dele, desse vosso antepassado, a cuja memória prestais tão devotado e justo preito, herdastes essa tendência à inconformação, esse desejo do melhor, sentimentos que em certa ocasião vos impeliram para a trincheira da luta, quando, São Paulo, voz do País, pediu pelas armas a reconstitucionalização do Brasil.

OLIVEIRA VIANA, UM CONSERVADOR TÍPICO

Como deixar de chocar-se um homem de tais tendências com um espírito todo tradicionalismo, todo conservação, como era Oliveira Viana?

A obra do vosso antecessor – que é, sem dúvida, das mais altas e das mais gloriosas que ainda se escreveram no Brasil – vale, toda ela, como um protesto das tendências conservadoras do País contra os homens novos, de qualquer origem ou coloração que sejam, que desejem modificar as coisas nacionais.

Oliveira Viana mostrou, certa vez, que, colocados entre o extremo orgulho dos paulistas e a modestíssima concepção de vida dos mineiros, os fluminenses (expressão em que também se incluem os que hoje chamamos cariocas) são os homens da finura intelectual, da malícia, do subentendido e da graça. Serão, assim, os verdadeiros atenienses do Brasil. Ele dá como exemplar típico dessa família de espíritos a Francisco Otaviano, o orador musical, o perfeito esteta da crônica, o sutil parlamentar do Império. A galeria de tais tipos de atenienses seria longa, se a quiséssemos erguer. E, harmoniosos e medidos, nela resplandeceriam os nomes de um Machado de Assis e de um Quintino Bocaiúva, e, antes desses, o de um Francisco de Sales Torres Homem, tão cheio de aticismo e de malícia quanto os dois. Mas haveria também, em tal quadro, a galeria dos atenienses que Machado de Assis desconheceria, ou aos quais chamaria derramados: aquela em que ressaltariam as paixões dionisíacas de um Raul Pompéia, os arrebatamentos estelares de um Euclides da Cunha, os desregramentos clownescos de um Lima Barreto...

Oliveira Viana ficaria também como um exemplar típico dessa família deslumbrante. Seria, entretanto, não um ateniense da escola de Sócrates, capaz de sacudir o altar dos deuses da cidade; porém um ateniense da escola dos opositores do filósofo, um daqueles que, como um castigo para o homemirreverente, que ousava abalar os templos venerandos, lhe punham na taça a homicida cicuta...

Os ídolos da cidade brasileira, Oliveira Viana os conhecia bem: eram os grandes varões da Monarquia, aqueles a quem chama, com a sua terminologia mística, os homens carismáticos.

A constante contemplação do fenômeno nacional levou o nosso ilustre companheiro a algumas melancólicas afirmações: uma delas, e talvez a mais melancólica, consiste em dizer que o Brasil se acha ainda em estado de clã, não tendo atingido sequer ao estado de município; outra em dizer que isto aqui – o vasto e desorganizado Brasil – só pode ser governado como um feudo.

TRABALHAR PARA A ETERNIDADE

Aqui chegais à vossa bela maturidade, cheio o espírito das fecundas intenções de cooperar nos trabalhos acadêmicos.

Vereis que trabalhar para a Academia é a mais suave das glórias. Temos aqui por nós a continuidade dos tempos, e isso é alguma coisa. Estamos na posição da esfinge, plantada em meio da solidão do deserto, segura da sucessão dos seus séculos, e contemplando o passar das caravanas efêmeras. Nesse clima rarefeito da altitude extrema é uma só a cor dos minutos e a das horas – é a cor cinza-azulada da imaterialidade e da distância. Não, não foi positivamente para nós, meu caro colega, que o divino Goethe escreveu aquela advertência que tanto amais e tanta vez repetis: “Não digas ao momento que passa: ‘Detém-te, como és belo!’” Porque aqui são tão uniformemente iguais todos os momentos, que não haveria razão para pedirmos a um só deles que se eternizasse...

Certo, ouvireis em mim, e em um ou outro confrade frivolamente inquieto, uma queixa contra a morosidade dos nossos trabalhos, sempre e sempre protelados. Temos em elaborações incessantes o Dicionário da língua vernácula, o Dicionário de Brasileirismos, o Dicionário Biobibliográfico, a Gramática, obras quase todas que já constituíam o sonho de Machado de Assis e dos demais fundadores da Casa. Nenhuma delas foi possível completar ainda.

Não acrediteis, porém, nas queixas que nos ouvirdes: são ainda uma forma da coquetterie acadêmica.

A nossa Instituição, as instituições do gênero dela, são como a China de que me falastes um dia. Sua medida de tempo não são os meses nem os anos – são os séculos.

No princípio da guerra sino-japonesa, que antecipou a ebriez nazista, sentistes com terror, diante das repetidas vantagens do Micado, os perigos que ameaçavam a Democracia, na Ásia e no Mundo. Fostes então procurar o embaixador da China, que era vosso amigo; queríeis conseguir com ele, a pretexto de fazer uma entrevista, uma impressão segura da situação real do Oriente. Sua excelência, homem de agudo espírito, tranqüilizou com um bálsamo o vosso coração inquieto, dizendo-vos que sim, que o Japão estava realmente conseguindo belos triunfos, e que era forçoso que isso acontecesse no princípio... Podia assegurar-vos, porém, que a vitória final teria de caber de qualquer forma à China... Perguntastes-lhe qual seria o prazo que ele marcava para mudarem os ventos no quadrante dos destinos asiáticos. E o sutil diplomatavos respondeu sutilmente: “O de uns trezentos ou quatrocentos anos.”

Somos assim na Academia: como a China eterna, laboramos para a eternidade. Continuemos portanto, sem reproches ou mágoas, a cooperar para essas obras que hão de encantar os olhos dos bisnetos dos nossos bisnetos.

Enquanto cooperamos para atividades tão futuras, haveis de vê-lo, aqui nos tratamos com benignidade recíproca cultivando essa gentileza que não exclui, muita vez, as discrepâncias mais decididas.

 Creio que vindes ser um acabado modelo dessa graciosa Arte por excelência acadêmica – a Arte de dissentir dos companheiros, envolvendo em veludo as discordâncias...

HARMONIA ACADÊMICA

De Oliveira Viana, por exemplo, divergis em vários pontos essenciais. Mas o fazeis expressando os vossos pontos de vista numa doçura tal, numa tal elegância, que vossos conceitos mais parecem aplausos e acordo.

É o que vemos na seriação de idéias de vosso bem meditado discurso de posse, nessas várias reflexões em que o respeito que vos merece o autor das Populações Meridionais do Brasil não exclui a livre apreciação de uma crítica discreta, mas audaz.

Dele divergis, e esse é o vosso direito.

Um dos elementos que formam o encanto da Academia reside exatamente nisso, que chamarei o desencontro das sucessões, num feliz acaso mediante o qual vemos a substituição de um grande romancista, como Machado de Assis, fazer-se com a escolha de um jurista, a de um historiador político, a de um filósofo embebido de Poesia, como Nabuco, fazer-se pela escolha de um guerreiro, um cronista de assuntos militares, a de um poeta soberano, como Raimundo Correia, fazer-se pela escolha de um sábio, de um médico, de um sanitarista.

Se não há, em tais escolhas, aquilo que Nabuco desejaria que existisse – a congenialidade dos que chegam com os que partiram –, há, em todas, um característico comum, que irmana, harmoniza e unifica os escritores que nelas figuram: há o amor a esta instituição, o devotamento aos assuntos literários.

Na sucessão que demos a Oliveira Viana podemos observar um traço de harmonia e união idêntico àqueles que encontramos nas substituições a que acabo de me referir. Estais irmanado ao vosso glorioso antecessor pelo devotamento com que sempre um e outro cultivastes as coisas literárias, pela constância com que um e outro vos mostrastes sempre amorosos desta Casa,pela indormida ação com que sempre pesquisastes verdades acerca do Brasil.

A VIRGEM VERDADE

E talvez seja este último o traço que em definitivo mais vos aproxima de Oliveira Viana. Sois o irmão dele no afã com que – cada um no seu terreno, cada um no seu rumo – procurais à Verdade.

É, esse, Sr. Austregésilo de Athayde, o mais nobre dos cultos, é essa a mais bela das religiões. Permanecer-lhe fiel é o sinal das grandes almas, qualquer que seja a profissão que exerçamos. Direi, porém, que essa permanência marca a superioridade dos espíritos, sobretudo na libérrima profissão que com tanto entusiasmo abraçastes.

E aqui vos posso recordar aquele esplêndido apólogo de Milton, síntese e glória da profissão jornalística. Refere o grande poeta que, descendo Jesus ao mundo, com ele veio também, perfeita e gloriosíssima, a Virgem Verdade. Quando, porém, o Divino Redentor regressou ao Céu, quando se fecharam os olhos dos Apóstolos, uma perversa raça de homens surgiu que talhou em mil pedaços o corpo da Verdade, espalhando aos quatros ventos os seus fragmentos lastimáveis. Desde aquele dia até hoje, os amigos da Verdade, imitando o cuidadoso amor com que Ísis reunia os pedaços sangrentos de Osíris, andam de serra em serra, de vale em vale, levando daqui e dali os fragmentos espedaçados que podem encontrar, ansiosos de recompor de novo o antigo e deslumbrante corpo. Esses fragmentos, conclui o poeta, hão de todos ser afinal um dia reunidos. A Verdade há de um dia de novo brilhar, em seus traços imortais de primor e perfeição, como brilhou ao lado de Jesus.

Esperamos, meu caro confrade, o raiar desse momento incomparável, e, pelo nosso lado procuremos também encontrar algum fragmento perdido do corpo daquela divina Virgem.

14/11/1951