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Discurso de posse

Em 1922 fui morar no Cosme Velho, num velho sobrado que dava fundos para o Largo do Boticário. O Rio das Laranjeiras, humilhado dali por diante, e oculto pelas exigências de um inexorável e antipático urbanismo, ainda exibe naquele recanto os últimos lampejos de seu antigo percurso pitoresco. Lembro-me de que um dia Coelho Neto lá foi em visita, não aos amigos que ali habitavam, mas aos restos do tradicional curso d’água. “Quem te viu, quem te vê, formosa Laranjeiras”, assim recordou ele uma das saborosas crônicas do velho Vieira Fazenda acerca do filete de rio que descia entre pontes e canteiros.

Perdoai-me se o hábito de historiar me leva a começar este discurso por uma evocação. Mas vem a propósito, não da casa que habitei, porém, do vizinho, que ali se instalou alguns anos depois com grande espanto da pequena comunidade que vivia em torno do celebrado largo. Teve a excentricidade, ao tempo escandalosa, de adaptar para sua moradia o casarão azul, então n.º 226, sem lhe tirar o aspecto e o estilo do tempo do Império. Esquivo e calado, não era homem de entrar em convivência imediata com a vizinhança. Sua casa era um perfeito contraste com a nossa, permanentemente aberta e trepidante de mocidade, habitada por três gerações. No misterioso e solene solar do lado, reinava o silêncio. Só víamos o seu ocupante ao sair e ao entrar, por sinal que num carro de tipo já então obsoleto, comumente chamado “cristaleira”. Uma vez ou outra os salões do casarão do sábio se abriam e podíamos ouvir um excelente pianista que me fazia ralar de inveja, executando especialmente trechos de Wagner, provavelmente em homenagem à primeira dona da casa, de nacionalidade alemã. Era Miguel Osório de Almeida, frequentador do colega de pesquisas científicas e de gostos musicais.

Jamais me poderia ocorrer que, cerca de meio século depois, me caberia a honra de vir fazer desta tribuna o elogio acadêmico do estranho vizinho, consagrado com um dos expoentes da cultura nacional. Fui visitar aquela mansão antes de redigir o discurso e uma surpresa a mais me esperava. O sábio incorporara à sua, a casa em que eu próprio morara. O seu gabinete estava, nos últimos tempos, exatamente na peça em que eu estudava os meus preparatórios.

Há catorze anos comparecia ele a este mesmo salão para elogiar os seus predecessores, a começar pelo patrono, Joaquim Caetano da Silva, seu colega no estudo da Medicina, com a circunstância de ter ido aplacar em França e não na Alemanha a sede de Ciência que os centros médicos do Brasil não satisfizeram. É com ele que se inaugura a série de sábios que honraram a Cadeira que, com vossa benevolência, irei ocupar. Grande erudito, conhecedor profundo da língua francesa, foi Joaquim Caetano precursor de Silva Mello também no aliar-se com uma filha do país em que estudou. Profundamente versado no grego e no latim, era um pesquisador dos maiores aparecidos no País. Impressionou de tal modo, em trabalhos apresentados no Instituto Histórico, o Imperador D. Pedro II, que este o nomeou ministro em Haia, a fim de permitir-lhe uma profícua estada na Europa, rebuscando arquivos e colhendo as provas documentais para suas teses. A missão foi executada com tal discrição que os próprios companheiros do corpo diplomático lhe desconheciam a finalidade. O Visconde de Itajubá, nosso ministro na Prússia em 1852, procurava então saber de seu amigo Paulo Barbosa quem era o Dr. Silva que ia para a Holanda, designação que lhe parecia surpreendente. É que a nomeação encobria a finalidade puramente cultural da incumbência. Pensando fazer uma intriga, outro diplomata informava através da mesma fonte, com evidente intuito de fazer chegar o escândalo ao conhecimento do severo soberano, que o nosso ministro em Haia não arredava pé de Paris. Mal sabia ele que para isso mesmo o enviara D. Pedro II. Dessa patriótica infração aos regulamentos resultaria a grandiosa obra L’Oyapoc et l’Amazone, que D. Pedro II considerou equivalente a um exército em defesa de nossas fronteiras do extremo Norte. A ele devemos principalmente a posse pacífica daquela riquíssima região. Foi o arsenal em que se foi municiar a sabedoria do Barão do Rio Branco, na defesa do Brasil perante o árbitro suíço, e fê-lo com tal honestidade que incorporou os dois volumes de Joaquim Caetano aos anexos de sua notável Memória. Ninguém como o então Deputado Afonso Arinos, em discurso proferido na Câmara, pôs em foco o valor hercúleo dessa contribuição cultural. Foi o elemento primacial de uma “operação”, como hoje se diria, destinada à salvaguarda do País. É sob este signo da Cultura a serviço da Nação que nasceu esta Cadeira. Do seu patrono disse Araújo Porto Alegre – lembrou-o Silva Mello – que estudava 25 horas por dia. Não teve, porém, estrela propícia à sua carreira. Fatores adversos reconduziram-no à órbita rotineira. Após estreia fulgurante, voltou à cátedra do Colégio Pedro II, e ao assumir, pouco depois, a direção do Arquivo Nacional e a Inspetoria Geral da Instrução Pública estava quase cego e alquebrado. Mas, ainda assim, trabalhava intensamente na obra sobre as Questões Americanas, para as quais coligira na Europa dezenas de volumes de apontamentos. Boa parte de seu esforço permanece inédita. Falecendo obscuramente em São Domingos, de Niterói, abatido e depauperado, é hoje desconhecido para a maior parte dos brasileiros. Uma das raras consagrações ao seu esforço é precisamente o patrocínio desta Cadeira, fundamento para sua rememoração pelos sucessivos titulares.

O primeiro ocupante da Cadeira, Alcindo Guanabara, tem um nome que se escreve em letras de ouro na história de nossa imprensa. Após uma infância trabalhosa e humilde, abandonou os estudos já em grau superior para ingressar no jornalismo. Essa a missão que exerceu até o derradeiro instante da existência. Ombreia com grandes nomes nesse setor da Literatura: com os Evaristos, com os Justinianos, com os Quintinos, com os Laet e com os Ruis. Tinha o dom de cunhar, numa frase, alguns conceitos que passam como sentenças históricas. A vida de Rui “pode ser simbolizada por uma reta traçada entre a liberdade e o direito” é uma delas. Produzia com facilidade espantosa centenas de artigos. Raros se encontram em forma de volume. Nenhum estudo sobre o quatriênio Campos Sales pode prescindir de seu trabalho monográfico e apologético a respeito. Era sincero e devotadamente republicano e entendia imprescindível defender, à sua maneira, o regime que julgava ameaçado. Deputado e senador, ele o foi pelo que representava o apoio de sua pena aos governos que a esse tempo não dispunham de órgãos ostensivos de propaganda. E como a Política é “a mais impura das Artes”, no dizer de Maritain, nem sempre a coerência pôde ser mantida no correr de sua atuação atribulada. Curtiu o ostracismo, a prisão e o exílio, sem que se alterasse em uma linha a galhardia de seus conceitos. A pequena história apossou-se de sua memória e atribuiu-lhe episódios francamente caricaturais, cuja veracidade seu permanente e honroso adversário teve a malícia de assinalar, ao receber nesta Casa quem o sucedeu.

Não é verdade que tenha jamais perguntado se um artigo, que lhe era pedido, deveria ser contra ou a favor de Jesus Cristo. A versão exata do episódio que deu origem a essa anedota distorcida pelo espírito carioca, ouvi-a de Tobias Monteiro, a esse tempo redator-chefe do Jornal do Commercio. Dela já deu testemunho neste mesmo recinto, há cerca de dez anos, Elmano Cardim ao comemorar, com o bom gosto e a autoridade do costume, o centenário do versátil mas não corrupto jornalista. Aproximava-se a Semana Santa e estava ausente do País o diretor da folha, José Carlos Rodrigues. Costumava este publicar regularmente na Sexta-feira da Paixão, na primeira página, um longo artigo “análogo à comemoração”, como então se dizia. Entre os redatores, a começar por Tobias, ateu impertinente, nenhum ousaria tocar o assunto sagrado. Foi lembrado então o auxílio de um estranho que permitisse manter a tradição estabelecida pelo diretor. Convidado, Alcindo Guanabara acedeu. A pergunta feita ironicamente a Tobias Monteiro, dias após, foi simplesmente se o artigo podia ser escrito do ponto de vista católico, já que Rodrigues era tido como protestante, posto que jamais ingressasse em nenhuma igreja acatólica, e costumava revestir os seus artigos do tom bíblico e untuoso dos autores americanos em que se especializara.

Costuma-se considerar um tour de force literário o discurso em que o Arcebispo Dom Silvério fez nesta Casa o elogio de seu antecessor, atribuindo-lhe sinceros sentimentos cristãos. Mas a verdade é que o exímio jornalista, se não pretendeu impor-se como modelo de comportamento evangélico, jamais renegou os princípios nos quais fora formado e a convivência com o Clero que lhe valera na infância convite do próprio bispo do Rio de Janeiro para alistar-se entre os candidatos ao Sacerdócio. Na conferência sobre A Dor, em que se baseou seu panegirista, “que impressiona pela finura e profundeza dos conceitos”, e na qual, conforme este observa, se mostrou a par da ciência do tempo, citando Claude Bernard, Brown-Sequard e Wundt, revela-se realmente religioso e cristão. O sábio prelado pôde dizer dele, sem nenhum malabarismo, incompatível com seu espírito reto, que Alcindo Guanabara, “longe de ser um ateu, desconhecedor, quando não desprezador de Deus, foi um varão deveras crente, que na vida pública nunca procurou encobrir as suas crenças, antes proclamava a sua fé sem rebuço, com acentos de rigor pouco comuns em nossa atual sociedade.”

Relede a peroração da citada conferência e dizei-me se algum pregador do Cristianismo ousaria negar-lhe uma perfeita conformidade com os preceitos evangélicos. “Se sois cristãos, a dor não vos abate, mas vos conforta, vos anima, vos eleva, vos engrandece. Jesus, filho de Deus, e Deus ele próprio, quis a dor humana para reabilitá-la e torná-la profícua. Era, porém, Deus, e toda sua grandeza está no que havia de voluntário nesse sofrimento.” Contrapõe, então, a dor de um Deus, à dor de Maria, que era apenas mulher, para terminar com um apelo: “Se há entre vós, se há na humanidade inteira, a vítima infeliz de uma dor sem consolo, erga o espírito e o coração até essa tragédia angustiosa, e funda a sua dor na maior dor que jamais houve sobre a face da terra, na dor de Maria.”

Tinha razão D. Silvério, estas palavras eram ditas em 1905, diante de uma sociedade convicta de que a crença era um sentimento do passado, que tinha seu lugar na intimidade do lar, onde, diante dos oratórios domésticos, aos representantes femininos da família era muito louvável que mantivessem uma tradição poética e enternecedora. Eis que um homem público, rompendo com a moda do tempo, vem galhardamente dizer que não concebe a existência dos desconcertos do mundo, senão enquadrando-os na concepção cristã do universo.

E não é somente num ambiente sofisticado de um público refinado que ele faz tão emocionante profissão de fé. Ao elogiar um político do Norte, Pedro Velho, o autor em que lhe ocorre inspirar-se é o campeão da liberdade cristã, o Conde de Montalembert, e termina citando o clamor quotidiano da “nossa religião, sursum corda”.

Quase não há manifestação pública em que não reafirme os seus sentimentos religiosos. Chega a clamar pela coerência entre a fé e os atos, lembrando os versos de Corneille: La foi qui n’agit pas, est-ce une foi sincère? Exprobra o abandono do Criador nas soluções dos problemas sociais: “Pretende-se dispensar Deus, mas não se querem perder as vantagens do milagre e da Providência.” “O milagre desbatizado, o milagre leigo”, (hoje ele diria dessacralizado) “chama-se Revolução”.

Demorei-me dessas citações para reforçar a minha afirmação de que o grande arcebispo que sucedeu ao fundador desta Cadeira não pretendeu fazer nenhuma fraude pia ao apresentá-lo como cristão. Ele julgou o homem pela mensagem que deixou à posteridade e não pelas fraquezas e incoerências, aqui ou ali encontradas na vida de tantos, e, Deus nos perdoe, de todos nós.

Acerca de D. Silvério Gomes Pimenta, um dos vultos mais notáveis em nossa história eclesiástica, acumulo, há longos anos, numerosos apontamentos. Não nos cabe aqui senão evocar alguns traços de sua estupenda carreira. Sua obra principal, a Vida de D. Antônio Ferreira Viçoso, é um quadro impressionante da grave e difícil situação da Igreja sob o regime regalista a que estava submetida durante o Império. Dentro do estilo severamente rigoroso em que foi concebida, há elementos imprescindíveis para a compreensão dos graves problemas com que lutavam os prelados de então. Quando, por sua vez, lhe coube empunhar o báculo de pastor da Igreja primaz de Minas, ele próprio recordou os pesados encargos que lhe caíram aos ombros conforme os preceitos de São Bernardo:

O bispo deve ser espelho de santidade, modelo de piedade, defensor da fé, mantenedor da verdade, mestre das gentes, guia dos cristãos, paraninfo da esposa de Cristo, refúgio dos oprimidos, esperança dos miseráveis, vingador do crime, terror dos maus, glória e consolação dos bons.

Em homenagem às grandes preocupações de Silva Mello, com a promoção dos homens de cor no Brasil, não é possível deixar de sublinhar dois traços que demonstram, entre tantos, o valor da própria vida do arcebispo como prova de termos uma estrutura social que permite a realização daquele ideal. O primeiro é a preeminência por ele assumida do Concílio Latino-Americano de Roma, em 1899, provocando a admiração dos seus pares, e que teria arrancado do próprio papa a exclamação: Niger, sed sapiens. A frase é pouco provável, porque a adversativa não teria lugar em um ambiente onde tantos não arianos e expoentes de raças diversas têm tido voz em assembleias ecumênicas. Nem é confirmada por nenhum testemunho. Mas generalizou-se em todo o País, e satisfez o amor próprio nacional o ver-se a Europa e a América espantarem-se diante da demonstração de Cultura de um negro de humílima origem, formado nas escolas e colégios de Minas, e ordenado aos 22 anos, discutindo as intrincadas questões canônicas e teológicas com os expoentes dos países do continente e os mestres da Cúria Romana. Foi ele que, com enérgica resistência, exigiu a discussão pormenorizada dos artigos, impedindo a votação em bloco, pretendida pelos peritos. Já em viagem anterior, em Roma, formara-se a fama do seu poligiotismo. Perguntando o Papa Pio IX ao superior do seminário, a quem acompanhava o jovem sacerdote, em que língua deveria falar àquele negrinho, teria tido como resposta: “Aquela que Vossa Santidade preferir: latim, grego ou hebraico.” A reputação de grande conhecedor de vários idiomas, que aureolava o Padre Silvério, diz o seu consagrado biógrafo, D. Joaquim Silvério de Sousa, deu origem a várias anedotas, que não são mais, como no comum das vezes, do que expressão de um sentimento profundo verdadeiro, posto que não correspondam à verdade histórica.

Outro episódio é dos mais belos que se apresentam ao estudioso da formação brasileira. Estava D. Pedro II em Mariana na Semana Santa de 1881. Era bispo daquela diocese mineira D. Antônio Correia de Sá e Benevides, antigo engenheiro e professor do Colégio Pedro II. Desejando o imperador cumprir o preceito pascal, pediu ao bispo, seu amigo pessoal, que lhe recomendasse um bom confessor. Deu-se então esta cena que não terá paralelo no mundo contemporâneo. O soberano do Império, único branco puro do Brasil no dizer de Gobineau, diante de um negro como simples cristão. Desde que li esse passo, há muitos anos, gravou-se-me na lembrança o quadro comovedor. O imperador, inviolável e sagrado, ajoelhado aos pés de D. Silvério, rezando o confiteor; o descendente de escravos com a mão erguida absolvendo dos pecados, em nome de Deus, o representante do poder que mantivera na servidão os seus antepassados. A Igreja Católica no Brasil e nossa chamada “democracia coroada” tiveram ali um momento culminante na gloriosa caminhada para a perfeita comunhão das raças e das classes.

Ilude-se, contudo, quem pensa que a mansidão evangélica e o trato ameno de D. Silvério eram a expressão exterior de um espírito complacente. Em questões de princípios era de uma intransigência e de uma energia que nos lembram a passagem célebre de Bernardes: “Nem toda ira é pecado.” Na chamada “Questão religiosa”, o padre Silvério, então jovem redator do jornal diocesano, terá sido dos que mais violentamente fustigaram o Governo de então, o que não o levou jamais a aceitar o que chamava cataclismo republicano, permanecendo sempre fiel à dinastia de que recebera sempre constantes de veneração.

De feição totalmente diversa foi o sucessor de D. Silvério, o galhardo e desempenado Gustavo Barroso. Dele fez Silva Mello estudo tão minucioso que atinge 106 páginas. Lido na íntegra exigiria pelo menos cinco horas. Ali estão, em corpo inteiro, o jovem petulante desafiador da sociedade conservadora da sua terra natal, o espadachim da imprensa carioca, enfrentando figuras consagradas, o reformador do mundo empolgado na cruzada contra o Bolchevismo e o Judaísmo, transformados em dragões que o novo Siegfried se dispunha a combater com fúria desenfreada, e o soldado de Cristo, encerrando o ciclo heroico com obras edificantes e acolhendo-se no seio da Madre Igreja, que bordejava hesitantemente, para afinal terminar os dias repetindo o Stabat Mater e fechando os olhos serena e convictamente na paz do Senhor. Bom clínico e arguto pesquisador, diagnosticou Silva Mello em toda a carreira de Barroso, mesmo naqueles episódios que nos parecem excessivos, vistos longe do ambiente em que ocorreram – e que eu próprio sofri na carne e no espírito –, manifestações da terrível frustração representada pela impossibilidade de cumprir uma das mais fortes vocações militares em nosso País. Vindo do Ceará, encontrou fechada a Escola Militar, não se admitindo próxima reabertura. Daí os temas de caráter militar dominarem sua extensíssima produção, o interesse pela história militar, pela indumentária militar, pela organização militar, constantes em sua bibliografia como em sua atuação parlamentar. Foi ele que restaurou, após aturada campanha, o uniforme dos Dragões da Independência, que, por ocasião de seu funeral, lhe prestaram tocante homenagem, tão bem descrita por Silva Mello.

Na verdade havia em Barroso duas personalidades distintas: o militar frustrado, que encontrou no Integralismo a possibilidade de realizar em parte seus ideais de infância, e o bom amigo dos jovens, solícito em coadjuvá-los e animá-los sem intolerância e sem preconceitos, como podem atestar vários acadêmicos. Um era o comandante supremo das milícias, montado a cavalo e desfilando pela Avenida à frente dos camisas-verdes a desafiar os adversários da “ordem e da civilização”. Outro era o intelectual compreensivo e tolerante, cooperativo e carinhoso, atento a novos valores e pondo sua experiência e seu prestígio a serviço de jovens nos quais sentia despertar a vocação histórica e literária. Que o diga Pedro Calmon que com ele conviveu como secretário do Museu Histórico e dele recebeu tantas vezes estímulo e animação que o conduziram ao ponto das letras históricas nacionais.

Devo a Gustavo Barroso um extraordinário apoio em momento decisivo. Por ocasião do centenário de Rui Barbosa, promoveu esta Academia um Congresso da Língua Vernácula, que foi uma das mais significativas comemorações do evento. Foi seu ideador e promotor o meu velho amigo Aloísio de Castro, fervoroso ruísta, cujo nome evoco neste momento com profunda emoção. Mas um compromisso de ultimíssima hora, indeclinável, afastou-o do Brasil no momento da realização do certame. Coube a Gustavo Barroso, que então presidia a Academia, assumir pessoalmente a direção dos trabalhos. Rui não era santo de sua vocação... Mas lede o discurso inaugural que abre os Anais do certame e dizei-me se é possível produzir peça mais bela e à altura da homenagem que se prestava. É um pórtico de grandiosidade e classicismo perfeito, em que o pensador sem trair os princípios que professava, reúne a elegância à erudição, estabelecendo o tom austero e digno em que decorreram os trabalhos. Eu era um antigo e sincero admirador de Barroso. Mas nesse instante o meu respeito pelo seu talento duplicou. Considerava a ausência inesperada de Aloísio de Castro, que se preparava longamente para esse encargo, uma catástrofe. Não contava com o incrível poder de improvisação e a capacidade de trabalho do Presidente da Academia.

Não creio que se possa fazer estudo sério da pessoa e da obra de Barroso sem ler a profunda análise a que procedeu Silva Mello em seu discurso de posse e em que procurou destrinçar, com tino médico, o “acervo de opiniões desencontradas, que correm toda a gama de julgamento, indo da ofensiva grosseira à glorificação entusiástica”.

O que se poderia fazer acerca de Silva Mello, em face das mesmas discordâncias, poderia consumir, no mínimo, o dobro de páginas. Porque há matéria para muitos volumes na biografia de meu antecessor: lutas e combates pelo estudo, viagens, naufrágios, concursos e finalmente o êxito estrondoso, a consagração de uma velhice gloriosa, coroada por um lar feliz e tranquilo e uma falange de amigos sinceros e firmes. Mas é o próprio Silva Mello quem nos ensina, em seu verdadeiro ensaio sobre Barroso, não ser possível a compreensão de qualquer personalidade sem estudo de suas origens remotas. O que se colhe de referências esparsas em sua extensa obra é, neste particular, muito pouco. O pai era português e a mãe brasileira, filha de francês casado com uma suíça. O traço que ele sublinha de sua formação infantil é uma timidez terrível, “timidez”, diz ele, “que na adolescência tomou proporções absurdas. Nos tempos de ginásio cheguei a não sair de casa senão depois do escurecer, cheio de temor e acanhamento por ter de passar diante de moças à janela, como era hábito à tarde nas cidades do interior”.  Essa cidade era Juiz de Fora, que, a julgar pelo depoimento de Pedro Nava, bastantes anos depois, devia realmente representar terrível desafio a um rapaz tímido. “Dessa timidez”, disse Silva Mello em seu discurso de posse, “até hoje, em velhice avançada, não consegui libertar-me”. Com tal empecilho psicológico, “fui o último da escola pública que frequentei não sabendo, aos dez anos, fazer conta de dividir. Estava tão capacitado da minha inferioridade que não empregava qualquer esforço para estudar ou aprender”. “Atravessei a escola”, diz ele, “sob o signo de uma falta de inteligência sem limites, o que me livrou de qualquer esforço de aprendizagem”. Foi durante o curso ginasial que lhe desabrochou a inteligência. Se se sentia ainda constrangido para a leitura, a elocução fácil que adquiriu deu-lhe confiança para aspirar ao magistério.

Foi pelo final do curso escolar, antes do início dos estudos ginasiais, que se deu na mentalidade de Silva Mello a crise que costuma ocorrer ao fim da adolescência: a crise de fé. “Em criança”, diz ele,

[...] pela idade dos oito anos, atravessei uma fase de extrema religiosidade, caracterizada pelo fato de querer frequentar sempre a igreja, acolhendo, com devoção e alegria, imagens e bentinhos dados pelos padres. Rezava então ao deitar e ao levantar-me, e o meu desejo mais intenso era de seguir a carreira eclesiástica.
Mas não seria um sentimento fundado em bases muito sólidas. Ao menos, diz ele: “[...] lembro-me ainda que o meu maior interesse era de poder usar no futuro um chapéu de veludo preto, como o do vigário da nossa paróquia, a coisa mais bela que me parecia existir no mundo.” Essas tendências desapareceram logo depois.

Não sei como ocorreu essa perda de crença, essa inconversão, mas parece-me que o processo foi lento, operando-se aos poucos, à minha revelia, até chegar ao ponto de sentir, então de maneira concreta e palpável (sic), a convicção de que Deus não podia existir. O fato principal é que essa convicção instalou-se definitivamente no meu espírito, sem nunca comportar qualquer dúvida ou recuo, sequer a preocupação de encontrar provas mais seguras e evidentes. Se havia qualquer coisa de claro, de positivo, de indiscutível para mim era esse ponto de vista, que tinha força de uma proposição matemática, de uma verdade por si própria imanente, axiomática, indiscutível pela sua evidência. O que houve depois foi uma grande indiferença pelos problemas religiosos que não mereciam sequer estudo e atenção, porque já de antemão, pareciam-me alheios à realidade, não passando de absurdas interpretações.

Noutra passagem Silva Mello trata igualmente dessa crise, situando-a entre os quinze e dezesseis anos, sempre, portanto, em pleno curso ginasial.

Aos quinze e dezesseis anos, já estava impregnado de uma condição ateísta tão profunda e absoluta que não deixou mais lugar para qualquer dúvida ou vacilação... Não posso dizer como isso aconteceu, mas foi coisa súbita e inesperada, independente de qualquer leitura ou troca de ideias... E isso para meu mal, para meu grande mal, pois considero a fé religiosa capaz de trazer incalculáveis benefícios ao indivíduo, principalmente fazendo-o suportar melhor as agruras e sofrimentos da vida.

Só mais tarde Silva Mello terá encontrado apoio para sua descrença nas obras então divulgadíssimas de Haeckel, Büchner, Vogt e Le Dantec, este último por ele considerado “o meu grande ídolo da mocidade”.

De todos é realmente o que mais resiste à implacável renovação da moda, tão violenta na Ciência como em tudo mais. Ora, Le Dantec era grande amigo da mística Elisabeth Leseur, lembrou-o, não há muito, Antônio Carlos Villaça. E ela costumava dizer ao sábio: “Não há ateu lógico.” E Le Dantec suavemente concordava. E que aquela extraordinária mulher tinha razão prova-o o mesmo Silva Mello. Aquela convicção que, segundo ele próprio, “não admitia qualquer dúvida ou vacilação”, “indiscutível pela sua própria evidência”, e que ele varreu de suas preocupações, vai dar lugar a uma de suas obras mais extensas: Religião: Prós e Contras e, naturalmente, das mais discutidas. Se não dialogou com Elisabeth Leseur, terá Silva Mello encontrado, pela vida afora, figuras dignas de respeito que lhe fizeram, sem perder jamais a serenidade e o ânimo científico, percorrer de novo os caminhos que haviam conduzido àquelas convicções, já agora revestido de grande experiência e profundo conhecimento da alma humana. Não creio estar sendo temerário se procurar esse elemento do sereno diálogo, se não falado, ao menos sentido, na figura de sua segunda esposa, que discreta e exemplarmente o acompanhou na segunda fase de sua vida intelectual, exatamente aquela em que ele passou a expandir, através dos livros, a Ciência e a experiência que armazenara avaramente durante tantos anos de labor intenso.

Contradição curiosa na história de um descrente, e que certamente marcou a sua alma em formação, foi a preocupação com fantasmas. A casa em que residia sua família em Juiz de Fora, era mal-assombrada. Nela ocorriam os espantos costumeiros nesse gênero de fenômenos. A reação do jovem estudante foi enfrentar os fatos apavorantes e desmontar, peça por peça, o mistério. Fê-lo com a paciência e o método de um cientista. O gosto pelo gênero fez que acumulasse um vasto material com que elaborou mais tarde um dos mais curiosos de seus livros: Mistérios e Realidade Deste e do Outro Mundo. O livro é de 1948, mas revela um lastro de observações que remontam à época daqueles episódios que lhe terão marcado a infância e o início da adolescência. Em vez de o levarem ao temor do sobrenatural, as fantasmagorias da casa paterna das crendices ingênuas passou a firmar-se na negativa de todas as crenças. De certo modo esse episódio terá contribuído, na mente do jovem introvertido, para desacreditar a existência do sobrenatural e conduzi-lo ao puro naturalismo.

Mas aqui reaparece aquela incoerência que Elisabeth Leseur apontava ao seu amigo ateu. Convicto da não existência do suprassensível e animado com destruição das lendas de uma assombração, o sábio pesquisador, que só aceitava as verdades comprovadas em suas experiências, não conseguiu libertar-se do medo dos fantasmas. Ouçamos suas próprias palavras no seu livro de maior êxito, e traduzido para várias línguas: O homem: Sua VidaSua Educação, Sua Felicidade: “Fui invariavelmente levado à convicção de que os fantasmas não existem e que, portanto, não me devem amedrontar. Mas, apesar disso, continuo a ter medo deles...”

O medo que tenho é, por assim dizer, específico, peculiar a uma determinada qualidade de assombração. Trata-se de um fantasma invisível, que não aparece, não faz ruído, que não tem nada de maléfico e, por isso, nem medo ou pavor deverá causar. É noturno, só de escuridão. Deve manifestar-se por um leve sopro atrás da orelha ou da nuca, um toque ligeiro, quase imperceptível numa das faces, talvez na própria mão, sobretudo numa perna deixada descoberta, por exemplo, ao descer do leito no escuro. E seria só isso. Absolutamente nada mais. Mas o medo é tão grande, tão intenso que pode fazer arrepiar os cabelos, disparar o coração, resultando daí uma imobilidade pétrea, pois qualquer movimento parece que será motivo para o fantasma executar a ação que está sendo temida. Ele está invisível sob a cama, espera pela perna que deve ou precisa descer, pelo braço oculto sob o lençol, pelo rosto que procura esconder-se sob a coberta. Daí a imobilidade, a falta de coragem para sair da cama ou executar livremente qualquer movimento.

Por essa simples razão nunca ousei dormir sozinho numa casa isolada, ou mesmo num quarto muito afastado de outros habitados. Eis a situação em toda sua ridícula simplicidade. Bem razão tinha Elisabeth Leseur em afirmar que não há ateu lógico. E mais ainda Le Dantec para não contraditá-lo.

O curso secundário fê-lo Silva Mello no Ginásio O’Granbery, de Juiz de Fora, dirigido por pastores metodistas norte-americanos. Mas sua orientação filosófica estava firmada e, respeitando a Bíblia pela sinceridade com que a veneravam mestres de valor, não tirou dela nenhuma lição espiritual. Despida de mensagem de sublimidade, aquele livro pareceu-lhe um amontoado de violências e contradições. E nunca aprofundou os estudos bíblicos.

Esta nova crença que se instalou em sua alma, crença na Ciência, na pesquisa e na experiência, alimentada por leituras nas horas roubadas ao descanso (porque a morte do seu pai obrigou-o ao estafante trabalho no comércio de balcão na loja de um parente), vai, por sua vez, sofrer um golpe. Os altos “sonhos de mancebo ardente” chocaram-se, ao iniciar o curso médico no Rio de Janeiro, com a fatuidade do nosso ensino naquele momento. Um teorismo balofo, uma completa falta de correlação entre a Ciência Médica, que ele entrevia nos livros, e a campanuda retórica das aulas revoltou-lhe a honesta disposição para os estudos. O ensino médico, segundo seu depoimento, era “um aleijão do ensino superior, um monstro horrendo e disforme, a principiar no ladrilho dos anfiteatros e terminando nos cérebros moles e anêmicos dos lentes. Estes são uns sábios opilados, com cabeça de palha e cérebro de cortiça”.

Inconformado com essa incrível situação, corroborada, aliás, por tantos depoimentos da época, o jovem estudante mineiro, disposto a não desperdiçar a mocidade, após informar-se a respeito das condições de vida na Alemanha, resolveu corajosamente enfrentar o desafio de cursar a Universidade de Berlim com diminuta mesada de 150 mil-réis mensais oferecida por uma irmã. Os frutos desse sacrifício foram extraordinários. Vencido o obstáculo da língua, que em breve passou a dominar, chegando a estudar dezoito, ou mesmo vinte horas por dia, o jovem brasileiro impôs-se à admiração dos lentes. As pesquisas no Instituto de Rádio de Berlim, onde elaborou uma notável tese de doutoramento sobre o Tório X, fizeram-no assistente daquela famosa instituição, invejável posição dentro do magistério de um dos maiores centros científicos do mundo.

Esse período de intensa atividade e sacrifício aparecia, mais tarde, ao sábio vitorioso, nimbado pela luz dourada da mocidade: “Em 1914”, diz ele nas Ilusões da Psicanálise,

[...] eu me formava em Berlim, onde vivera muitos anos como estudante, passando temporada de férias em Londres e Paris. A vida era barata, agradável, quase inocente de tão simples e bucólica. Todos andavam, por assim dizer, contentes, felizes dentro das possibilidades de cada um.

Essa a euforia que foi quebrada subitamente com o cataclismo da Primeira Guerra Mundial. Silva Mello voltava ao Brasil para iniciar, confiante, suas atividades, no transatlântico Tubântia, quando este foi torpedeado no Mar do Norte, levando para o fundo do mar os livros, as notas, além de precioso material de pesquisa. Alcançando as costas da França, Silva Mello conseguiu chegar à Suíça, onde permaneceu dois anos em Valmont exercendo a clínica num estabelecimento privado, no qual chegou a ser vice-diretor, com perspectivas seguras de vir a dirigi-lo. A fama dos estudos realizados na Alemanha em torno do Tório X já lhe granjeara a auréola de sábio. A volta ao País em 1919 marca o início de sua vitória no mundo médico brasileiro. Essa vitória foi paradoxalmente marcada por um famoso malogro. Revalidado o diploma de Doutor em Medicina em Minas Gerais, e inscrito num concurso na Faculdade do Rio de Janeiro, foi estrondosamente derrotado, posto que obtivesse a docência. O fato estimulou-o. Sua fama em breve se estendeu. Seus cursos na Policlínica de Botafogo e na Santa Casa da Misericórdia atraíram, desde os primeiros momentos, uma legião de discípulos fiéis. Em breve sua clínica alcançava extensão incalculável. A cidade tomou, em breve, conhecimento de sua presença marcada por uma consagração. Sobem a 50 mil as fichas de clientes ainda conservadas em seu consultório.

Mas o jovem tão bem-sucedido nos meios científicos alemães jamais abandonara sua formação brasileira. De sua vivência com a cultura alemã, então em momento de extremado fervor, não assimilou nenhum dos traços que hoje nos provocam um movimento de horror, vendo nela o estopim que levou o mundo, em que ele vivera confiante e feliz, ao primeiro grande conflito mundial e ao segundo. Seus mestres mais respeitados, alguns que ele enumera entre as influências predominantes em sua formação, subscreveram um famoso manifesto em que comprometeram a escol da inteligência germânica naquela tenebrosa aventura.

O mineiro, que venceu pela capacidade intelectual e força de vontade naquele meio orgulhoso da sua superioridade, nunca se deixou contaminar pelos germens que iam precipitar todo aquele gigantesco movimento cultural, por duas vezes, na condenação universal. Voltando ao Brasil, ele demonstrou haver assimilado, no mais alto grau, as grandes qualidades da disciplina germânica, sua inacreditável tenacidade e persistência na pesquisa, um inexorável método de trabalho e um horror à superficialidade vaidosa e ao brilho intelectual vazio. Mas é inútil procurar em suas obras os vestígios do preconceito racial e o dever de impor aos povos inferiores os benefícios de serem dirigidos pelos representantes da raça eleita.

Pelo contrário, o meio que ele frequentava com um grupo de amigos, entre os quais Miguel Osório de Almeida e Gastão Cruls, ambos médicos e homens de alta cultura, era precisamente a casa de um brasileiro, contradição viva daqueles princípios, o sábio professor Juliano Moreira, homem de cor, e casado com alemã. Era um centro altamente refinado, onde se encontravam diplomatas, professores nacionais e estrangeiros de passagem pelo Brasil. Foi aí que Silva Mello retomou o contato com a inteligência brasileira e, especialmente, com os problemas brasileiros. Até 1936 suas preocupações concentraram-se no campo da Medicina. Seus trabalhos são monografias especializadas de curso restrito aos meios científicos. Foi naquele ano que, insistentemente solicitado pelo Ministro Capanema, cujo nome se encontrará sempre como incentivador ou criador de tantas instituições culturais, escreveu ele, com a rara autoridade de um “saber de experiência feito”, Os problemas do Ensino Médico e da Educação. Este trabalho teve uma repercussão inesperada. Foi uma surpresa para o nosso meio intelectual. O autor não era somente um mestre que em sua clínica estabelecera um sistema de trabalho combinado ao ensino. Era também um profundo conhecedor dos problemas do País. Em prefácio entusiasta, Gilberto Freyre consagrou-o como uma clarinada em prol da campanha da renovação de nossa educação. “A beca de doutor”, diz o sociólogo pernambucano, “quase se transforma em manto de São Miguel lutando contra dragões. Estamos diante de um grande médico brasileiro que escreve um livro tão cheio de verdades que parece mentira a sua publicação.” A repercussão da obra surpreendeu o próprio autor. Ela extravasou dos meios puramente científicos e educativos e foi objeto de debate em todos os meios culturais e literários.

Mas só sete anos depois ele apareceu com um segundo trabalho, desta vez dirigido ao público já despertado para seu poder de transmitir a Ciência: Alimentação, Instinto e Cultura é de 1943. Atingiu rapidamente quatro edições, ainda que se trate de uma obra em três volumes, repletos de experiências e observações pessoais. Do ano seguinte é o seu livro mais divulgado: O Homem, Sua Vida e Sua Educação, com quatro edições em português e tradução para várias línguas. Alimentação no Brasil, trabalho aparecido dois anos depois, apesar de seu caráter técnico, é logo reeditado e completado com a Alimentação Humana e a Realidade Brasileira.

De 1948 é o famoso livro em que ajustou contas com os sustos que lhe pregou a casa mal-assombrada, Mistérios e Realidade Deste e do Outro Mundo, que atingiu logo três edições. Já então tinha Silva Mello o seu público certo e as qualidades que os discípulos registram como uma das suas características de autêntico cientista: permanente autocrítica e perfeita disponibilidade para curvar-se diante de uma nova concepção científica devidamente comprovada. De volta de uma de suas viagens, conta-nos o seu assistente Salgado Filho, anunciou aos discípulos completa renovação no ensino até então ministrado:

Senhores, trago-lhes uma Medicina nova, que derrubará todo o arcaico sistema de nosso ensinamento. Estou convencido de que fazíamos pura Veterinária e que, de agora em diante, exerceremos uma Medicina bem mais humana, que nos ajudará a resolver inúmeros problemas clínicos. Ante um caso aparentemente orgânico estrito, procuremos estudar-lhe também, quanto psiquismo dele participa, não esquecendo de indagar – para que está servindo a doença.

Isto foi dito, nota o fiel discípulo, em 1930, dez anos antes do advento da Medicina Psicossomática. Extraio este grave depoimento do número da Revista Brasileira de Medicina, em que se coligiram históricos depoimentos dos discípulos e admiradores e que constitui uma contribuição fundamental para nossa história científica. Ali depõem, além do citado, Bernardo e Lloyd Silva Mello, Granadeiro Netto, Roxo Fleiuss, Galvão Flores, Fábio Carneiro de Mendonça, Walter Benevides, Lourival Ribeiro, Castro Sousa, Xavier Pedrosa, Álvaro de Paula, José Martinho da Rocha, Juarez Ferreira Clemente, Fleury Pereira, Fernandes Seidl e Vitório Veloso. É a maior homenagem que se poderia prestar a um homem de ciência.

Silva Mello, em busca da atualização científica onde ela se pudesse encontrar, havia estado em contato em Viena com Freud, Adler, Steckel e, em Paris, com Georges Dumas.

Registro com alegria o seu contato com o patrono das relações culturais franco-brasileiras. Os da Alliance Française personificamos em Georges Dumas, o grande restaurador da ponte cultural entre a França e o Brasil.

Pois bem, essa contínua busca da verdade fez com que, após ter sido o precursor da Psicanálise no Brasil, estimulando os estudos de Porto Carrero e Olavo Rocha, não hesitasse, nas palavras do discípulo, em voltar suas baterias contra a novidade que ele próprio introduzira, quando novas viagens e novos estudos o convenceram de que ela ultrapassara os limites da pura Ciência. Esta sua disponibilidade para rever suas posições vinha da honesta convicção da impossibilidade de abranger, com a fraqueza de nossos meios de investigação, o mundo crescente e avassalador das pesquisas científicas. Daí a imagem, de que se serviu diversas vezes, de sermos, perante a massa de informações que se nos oferece, “como um gato dentro de uma biblioteca, que conhece todos seus cantos e recantos, todas as entradas e saídas, todos os móveis, tapetes e almofadas, embora sem ter qualquer ideia do que são os livros e o seu conteúdo.”

O movimento de revisão do conceito pessimista sobre a raça brasileira, generalizado nos meios científicos mundiais, teve em Silva Mello um dos seus mais significativos incentivadores. Em três obras este sentido se manifesta. A primeira é o Nordeste Brasileiro, de 1953, em seguida os Estudos sobre o Negro, 1958, e, mais tarde, Superioridade do Homem Tropical (1965). Todos os princípios racistas da Ciência alemã, em que ele se formara, fundem-se ao calor da sua visceral independência intelectual e da sua bravura em proclamar a verdade, onde quer que a encontrasse. O primeiro desses livros, considerou-o Rachel de Queiroz um desagravo ao nordestino, capaz de um labor exaustivo nas circunstâncias climáticas mais penosas.

Filho espiritual dileto da geração de sábios que fulminou a incapacidade fatal dos mestiços tropicais, ele ousou, na primeira daquelas obras, acoimar de “superficial e tendenciosa” a superioridade do nórdico em face do exame pessoal e acurado das condições de vida do Nordeste.

Indivíduos de boa saúde, resistentes, trabalhadores, atingindo idades avançadas e deixando numerosa descendência, são encontrados em todas as regiões tropicais, independente da cor da sua pele. Talvez que o indivíduo de pele branca, de cabelos louros e olhos azuis seja, sob múltiplos pontos de vista, o menos resistente.

Que diriam a isso seus mestres de Berlim em 1914?

A preguiça e a incapacidade tropicais já estão saindo da moda, já deixando de ser uma realidade fisiológica. Os negros, quando executam determinadas atividades físicas, levam vantagem aos brancos despendendo menor energia e produzindo menos calor, o que torna o seu trabalho mais eficiente. Muito importante é que os aborígines sabem melhor que os alienígenas, poupando assim melhor os seus esforços e as suas energias.

No seu livro último declara ter tido a alegria de encontrar na obra de Schopenhauer, “gênio ao qual consagro a maior admiração”, diz ele, a confirmação de sua doutrina. “Para ele o homem tropical é o verdadeiro criador da humanidade, aquele do qual descendem todos os povos. Fiquei assim na melhor das companhias.”

E finalmente no último dos livros desta série:

O homem moreno, de olhos e cabelos negros é o resultado mais genuíno (de um) passado multimilenar, recuado de centenas ou milhares de séculos. Esse homem, qualquer que seja sua origem e a sua procedência, é uma autêntica criatura tropical, com todas as marcas e veneras. [...] Entre os prêmios Nobel encontram-se muitos desse tipo, provavelmente a sua maioria. Basta considerar o elemento semítico entre eles, levantando-se o véu que os pode encobrir. Esse homem tropical é o verdadeiro dominador do mundo e o criador da humanidade. [...] Quais as qualidades superiores que caracterizam o homem branco, louro, e de olhos azuis? Quais as qualidades que o colocam acima do moreno, menos glabro e mais pigmentado? Sob esse ponto de vista o pretenso ariano muito deixa a desejar, sendo a sua inferioridade orgânica das mais flagrantes. A propensão para considerá-lo intelectualmente superior não deve passar de uma suposição ou ilusão. Talvez, simplesmente, porque até agora tem sido nessa direção que os fatos estão sendo interpretados.

Como estamos distantes daqueles conceitos proclamados ao som das tubas da Cultura nórdica, perante o jovem e humilde filho dos trópicos, prevendo a inexorável submissão das raças impuras diante dos orgulhos dos descendentes de Odin?

Seu temperamento não era, porém, de ficar somente em lucubrações, e ele concebeu logo uma Associação para a reabilitação do homem de cor, cujos estatutos apensou aos seus Estudos sobre o Negro, de 1958, ideia a que voltaria nos últimos tempos de vida. A finalidade principal da sociedade seria a seleção de estudantes negros e sua colocação em instituições adequadas.

A contraprova das suas teorias favoráveis à formação étnica do Brasil, ele as vai tirar nas viagens, que realiza logo depois, e de que resultam estes livros: Estados Unidos: Prós e ContrasProblemas da América Latina e Panoramas Norte-Americanos, todos de 1958. Não se pode deixar de mencionar o realismo com que encarou o progresso material americano e temeu pelo seu futuro. Ele próprio já havia observado o progresso alemão de antes da guerra, que “se elevara de tal maneira que se preparava para tomar a liderança do mundo, acreditando poder mantê-lo sob sua tutela. Mas a pretensão falhou, levando à ruína o grande país”.
 
Uma excursão pela América Latina, também publicada em 1958, fixou-o na convicção de que nosso País dispõe de todos os elementos para enfrentar confiante o futuro.

Por felicidade para esta Academia, aquela disponibilidade para modificar suas ideias, com a condição de mudar “do mal para o bem, e do bem para o melhor”, conforme expressão antológica de Rui Barbosa, levou-o a alterar o seu conceito em relação às Academias. No seu Problemas do Ensino Médico, ele se referira a essas instituições de forma extremamente depreciativa:

As nossas Academias, a de Letras, a de Medicina, a de Ciências, algumas delas com múltiplos similares estaduais, não deixam de lembrar a antiga Guarda Nacional, onde qualquer pacífico cidadão, falto de qualquer conhecimento da arte da guerra, se torna alta e brilhante patente militar. Em vez de valores reais, de verdadeiras sumidades, muitas dessas associações não passam de autênticos lobisomens de Academia.

Laureado com o prêmio Machado de Assis, acedeu afinal Silva Mello em inscrever-se como candidato na vaga de Gustavo Barroso. Ele próprio atribui a sua conversão a uma personalidade que o fascinou pela energia e que sempre considerou “o maior fenômeno humano que me tem sido dado observar na face da terra, homem prodigioso pelo caráter, pela inteligência, pelo coração.” Esse fenômeno foi Assis Chateaubriand. “Eu vim quase trazido pelas suas mãos”, disse-o Silva Mello em seu discurso de posse. Quem conheceu o espantoso poder de persuasão do grande jornalista não se surpreende desse milagre de arrastar o cientista de seu silencioso gabinete ou das clínicas, cercado de alguns dos valores mais significativos de nossa Medicina, a este salão. Ei-lo envergando o pesado fardão que lhe deveria parecer verdadeira túnica de Nessus, a ele que não admitia cintos, nem coletes, nem sequer relógios-pulseiras, nem peças de vestuário que implicassem qualquer constrangimento, levando-o a usar aqueles amplos paletós que escandalizaram o meu saudoso mestre Aloísio de Castro, seu antípoda no modo de apresentar-se. Aqui o vimos, assim, envergando este esplendoroso uniforme, com o respectivo chapéu de dois bicos e a fatal espada, com que seria um dia ameaçado por um servidor insano.

Mas não lhe foi nefasto o sacrifício. Pelo contrário. Cresceu em quantidade e em repercussão o seu labor intelectual. Entre 1960 e 1973 cerca de dez obras vieram juntar-se à sua bibliografia já respeitável. Isto sem cessar a constante colaboração na Revista Brasileira de Medicina, onde apareceram em gérmen muitos de seus estudos. Dir-se-ia que procurava recuperar o período em que se fechara na clínica e no laboratório. O contato com os novos amigos que aqui conquistou ampliou o círculo de suas observações. Na última fase de sua existência, menos atribulado pelos encargos profissionais, e sob a suave inspiração de sua segunda esposa e eficientíssima colaboradora, afrouxou os hábitos quase monacais do início de sua carreira científica. Passou a manter vida social mais intensa, dando vazão ao gosto pela boa mesa, arte a que trouxe uma contribuição importante, como bom e atento viajante e especialista na Ciência da Nutrição.

Eu mesmo o encontrei em Lisboa, numa de suas últimas excursões pela Europa, e pasmei com o ânimo que ele manifestava em realizar um plano de viagem a que eu não me animaria, apesar das duas dezenas de anos que nos distanciavam.

São dessa fase acadêmica algumas obras das mais importantes de sua produção. Em Israel: Prós e Contras, não há nenhum travo da formação germânica da época do esplendor imperialista e racista. Religião: Prós e Contras, de 1963, despertou, como era natural, uma tremenda reação. Eu mesmo, que ocupo uma posição oposta à sua no encarar o problema, não posso naturalmente percorrer aquelas páginas sem munir-me de lápis para as notas em contradição. Mas não é possível negar que a pena do autor tinha a qualidade imprescindível da assepsia, condição essencial em produção de um médico. Se as grandes polêmicas não tivessem passado de moda, esse livro seria o ponto de partida para um grande debate à moda daqueles que empolgaram os leitores do século XIX. Mas, na verdade, não há mais tempo nem gosto por aquele gênero de espetáculo em que dois campeões debatiam teses contraditórias perante um público empolgado, menos pelas teses de que pela habilidade e pelo virtuosismo dos contendores. No ritmo acelerado de nossos dias, uma réplica já encontraria a tese inteiramente ultrapassada pelo próprio autor. Cada pensador está empenhado em seus próprios planos e angustiado pela premência em executá-los. Interromper os estudos para empenhar-se num debate, com risco de distorcer o seu próprio pensamento, na angústia de arrasar o adversário perante um público comprometido com um ou outro lado, não ocorrerá hoje em dia com frequência a muitos escritores.

Foi isso que provavelmente levou Silva Mello a prosseguir no labor, a debruçar-se diária e regularmente sobre o papel e manter diálogo com o público, comunicando com total independência suas ideias e contínuas retificações, sem qualquer respeito humano. O seu prazer, disse-o com a concisão do costume Carlos Drummond de Andrade, consiste “em misturar-se com a terra, no cumprimento da missão natural que compreende – ‘a existência, a saúde e a felicidade ao ser humano.’”

Assim é que reuniu na Superioridade do Homem Tropical, publicado em 1965, toda a sua teoria de confiança em nossa capacidade de ombrearmos ou superarmos as pretendidas raças superiores.

Em Ilusões da Psicanálise, de 1967, retifica suas posições em face das doutrinas que ele próprio defendera. Em nenhum outro trabalho como na Psicologia dos Fatos Cotidianos, de 1970, a conversa livre e sem pedantismo com o não iniciado nas Ciências atinge o tom do colóquio desataviado.

Eu no Universo, sua última produção, cuja primeira edição se esgotou em três meses, é uma espécie de suma de sua sabedoria, uma revisão geral dos seus combates.

Pressentiria certamente que não voltaria ao colóquio do costume. Mas o final do l.ivro está longe de revestir-se do tom lúgubre de uma despedida. Reafirmando sua convicção na Ciência como guia, e só ela capaz de nos fornecer um roteiro para nossa trajetória no mundo, põe nela toda a esperança. É essa a sua última mensagem: a esperança que punha na Ciência, isto é, na possibilidade de encontro com a verdade que procurou obstinadamente, apesar de se ter apagado a luz da fé desde os primeiros anos de meditação consciente: “As religiões estão superadas, os deuses morreram, o céu desabou, mas o sentimento místico persiste e tem necessidade de encontrar novas expressões.”

Parece-me que é a este tipo de ateísmo que se ajusta expressamente a Constituição Gaudium et spes, do 2.º Concílio do Vaticano, quando convida todos os homens “crentes, ou não crentes, a colaborarem na edificação deste mundo em que vivem em comum”. “Isto requer”, continua aquele documento, “um prudente e sincero diálogo.” E convida cortesmente os ateus “a considerarem sem preconceitos o Evangelho de Cristo”.

Vejamos, por exemplo, esta página sobre o problema da dissolução da família na sociedade atual:

Encontramo-nos mergulhados em completa confusão, na qual o casamento tem perdido o seu caráter sagrado, revestindo formas das mais variadas, em geral transitórias e superficiais. Assim desmoronam-se vidas que até aí tinham significação positiva, permitindo existências normais, ou até de felicidade. O que está acontecendo é uma verdadeira hecatombe, uma experiência feita quase às cegas, que não corresponde a nada do que havia sido estabelecido de estável pela humanidade. Os resultados já estão aparecendo, mas não são nada favoráveis, antes muito falhos e prejudiciais. A família é uma grande organização que garante a existência da criança enquanto se opera o seu maior desenvolvimento. Por isso a criança tem necessidade de auxílio e proteção, que precisam ser no início totais e espontâneos. É nessas condições que o ser humano vem ao mundo e encontra tudo esplendidamente preparado para recebê-lo. O fenômeno é tão espontâneo e natural que a família, como organização social, tem dominado em todos os tempos e países do mundo... Qualquer alteração da constelação familiar pode reverter em prejuízos de seus membros, fato por demais demonstrado de múltiplas e variadas maneiras.

Nos últimos tempos as estatísticas têm mostrado que a criminalidade, as toxicomanias e a marginalidade estão aumentando de maneira extraordinária, antes de tudo devido à desorganização da família, à perda de estrutura e do equilíbrio que a caracterizavam. Os divórcios, as separações, o abandono ao lar acarretam sempre consequências maléficas, raramente suprimindo erros ou insuficiências que se procuram corrigir. O que se verifica facilmente é que o casamento ou uniões duplas, triplas, quádruplas, ou ainda mais numerosas, raramente conduzem a resultados favoráveis, melhores que os que poderiam ser alcançados por uma união única e definitiva. O que há então de regra é a falta de tolerância e adaptação, que não melhoraram pela mudança e a repetição.

Advirto os ouvintes de que não estou lendo constituições apostólicas nem encíclicas papais. Essas palavras são de Silva Mello no livro Eu no Universo, 2.ª ed. p. l32.

O ateu de boa-fé dialogou, também, segundo ele próprio conta, com um amigo, que foi grande figura da Igreja, D. Helvécio Gomes de Oliveira. “Fui distinguido com sua nobre amizade”, conta Silva Mello,

[...] e por mais de uma vez censurou meus sentimentos pouco cristãos. Respondia-lhe humildemente não ser eu o culpado, porque era esse meu temperamento, a minha sincera convicção. Afirmou-me (o bispo) que, por essa razão, iria eu para o céu, sendo uma autêntica obra de Deus. Alegrei-me com a notícia, acrescentando que, assim sendo, teria prazer de encontrá-lo na mansão divina.

Retorquiu, com sincera humildade cristã, que sobre o seu próprio caso, tinha dúvidas quanto à entrada no céu. “Tratava-se, no entanto” – conclui Silva Mello –, “de um homem santo, cujas grandes virtudes são por todos reconhecidas.”

Não há por que pôr em dúvida a afirmação do venerando arcebispo de Mariana, primaz da terra de Silva Mello.

Uma grande recompensa teve ele, sem dúvida, nos últimos anos que lhe foram concedidos neste mundo: ver realizado um sonho da mocidade. Coube-lhe, providencialmente, planejar, modelar e pôr em funcionamento uma Faculdade de Medicina a seu modo. Na cidade de Vassouras não somente reuniu uma equipe de sumidades, mas insuflou um espírito renovador num centro científico.

Fulminado pelo mal, que ele aliás previra, terá levado como última impressão consciente a de ter realizado honesta e firmemente um ideal a que se votara: servir à Ciência, difundi-la a exprimir livre e lisamente as suas convicções. Um sábio não poderia aspirar a mais.

Senhores acadêmicos,

Permiti que, antes de receber as insígnias da ilustre Companhia, possa reafirmar perante vós alguns traços que espero marquem a minha presença nesta Casa. O primeiro é de pertencer ao grupo inicial com que o sábio Padre Leonel França lançou as bases da Pontifícia Universidade Católica, convidado que fui pelo líder do laicato católico, Alceu Amoroso Lima, considerando-me sempre ligado aos compromissos então conscientemente assumidos. O segundo é o de me ter como incorporado à legião dos que se batem pela preservação de nossos laços com a França, traço imperecível, de defesa da nossa fisionomia cultural, através da Aliança Francesa, a que fui levado pela mão amiga de Rodrigo Octavio Filho.

Ainda sou dos que sustentam a autenticidade do conceito: Tout homme a deux patries, Ia sienne et la France. Foi através do pensamento francês que, em todos os tempos, o Brasil penetrou no mundo intelectual universal. (Não creio que tenhamos nada a ganhar, se abandonarmos uma tradição que tanto contribuiu para dar ao modo de expressão do Brasil, mais ainda que na do legado português, alguns de seus traços mais significativos.)

Finalmente, cerca de quarenta anos dedicados ao estudo de Rui Barbosa na casa que, nas suas próprias palavras é um “fragmento acidentalmente destacado da Bahia”, o contato diuturno no Instituto Histórico com o modelo de baianidade que é Pedro Calmon e a convivência e colaboração com outros expoentes do espírito baiano como Luís Viana Filho, fizeram sentir com mais fervor o contingente do bom sangue daquela raça que corre em minhas veias. Tive experimentalmente a compreensão dos motivos que levaram Nabuco a atribuir, às qualidades inatas dos filhos da Virgínia brasileira, boa parte dos êxitos de nossa política imperial.

É com esse espírito que me apresento com humildade perante vós, propondo-me a cooperar convosco na realização dos ideais dos fundadores desta Casa.

Ao decidir-me pela afirmativa, contraio convosco e comigo mesmo o compromisso de não desmentir os propósitos que me levaram a bater à vossa porta e a solicitar o direito de tomar parte na construção do monumento cultural que aqui se ergue. Assim Deus me ajude.

2/7/1974