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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. AMADEU AMARAL

SENHORES,

Entre os sonhos de minha ambição não costumava aparecer a Academia. Entretanto, uma vez, ou outra, de longe em longe, é possível que tenha surgido... A vaidade não tem boa memória. O que, porém, vos posso garantir, é que tais sonhos nunca se permitiram a audácia de voejar em torno de uma cadeira como esta, em que me vejo. A cadeira de Bilac!

Quando o grande poeta morreu, chegou-se a falar na conveniência de se lhe não dar por sucessor um poeta, porque poeta nenhum – e o Brasil os tem tantos e tão belos, por mais que digam o contrário os implacáveis inimigos desses malsinados artistas, – poeta nenhum parecia ainda digno de sentar-se na cadeira de Bilac. Mas a lógica tem exigências. Se um poeta incompleto não merecia sentar-se nessa poltrona, como então o mereceria alguém que não fosse poeta de todo? Essa consideração, e mais uma: que o pretendente, se não podia ter o arrojo de querer substituir a Bilac, podia, contudo, modestamente, aspirar a suceder-lhe. Assim, o que eu solicitei não foi senão a vaga do acadêmico. Quanto ao poeta, não quero nem invejo outra glória, senão a de cultuar-lhe a sagrada e formosa lembrança. Para isso me falta muito, mas sobra-me o principal: a minha grande, sincera e comovida admiração.

Essa admiração não é puramente intelectual, como tantas dessas outras, superficiais e frias, que passam nas almas como ligeiras rajadas. Eu habituei-me a admirá-lo profundamente – com o espírito, com o coração, com todo o meu ser. Tivemos relações apenas durante os últimos anos de sua vida; mas quase posso dizer que a minha amizade por ele nasceu pouco depois de mim, e em circunstâncias que associaram, de alguma forma, a vida e o destino do grande poeta à minha obscura vida e ao meu estreito destino.

Figuras há que cedo se nos atravessam no caminho, e nos acompanham por largo tempo, tenazmente, maciças e opacas, fazendo sentir a cada momento a sua presença. Afinal, aos poucos, se atrasam. Seguem-nos de longe. Um dia, olhamos, e elas se perdem além, na distância, sob a poeira, ou sob a bruma, confundidas com outras figuras e outros acidentes da paisagem, e nunca mais os enxergamos... Não deixam, nem levam saudades. Não nos compreenderam, nem foram compreendidas.

Figuras há, porém, que nos assaltam de brusco, suavemente, como sombras, e, ganhando corpo a pouco e pouco, acabam por se assenhorear de nós, e caminham conosco, e conosco vivem, e passam a ser mais do que um amigo, um parente, ou um companheiro, porque entram com alguma coisa para a substância do nosso ser; e a sua vida é em parte a nossa vida, e o seu espírito é também o nosso espírito... Essas, quando se vão, nos deixam uma sensação dilacerante de arrancamento e de ruína. Temos a impressão de que se nos arrebatam pedaços de nós mesmos. E, assim, não se vão de todo. Sempre fica alguma coisa que se não extirpa, como de uma árvore levada pelas garras frenéticas e remoinhantes do vento permanecem no solo revolto restos despedaçados de raízes.

Bilac surgiu-me, primeiro, como uma sombra leve e incerta – como uma sombra longa, predecessora de um passante que se aproxima, que não raro retrocede e nunca chegamos a ver... Surgiu-me através de vagas e ingênuas impressões de meninice. Vivia eu no meu remoto e sossegado Capivari, no interior de São Paulo. Lá, o tumulto do mundo arrojava até mim, –  últimas e trêmulas rugas de onda que morrem aos pés de uma criança na praia, –  algumas folhas do Rio e de São Paulo nas quais eu me contentava de procurar as gravuras, os anúncios mais vistosos e, ao acaso, um relanço de crônica, uma estância de poesia, um trecho de comentário, de reportagem ou de mofina... Entre esses jornais, vinha A Semana, a célebre folha literária de Valentim Magalhães, então na sua primeira fase. Um dia, A Semana, que iniciava a publicação escandalosa de uma “Galeria do Elogio Mútuo”, estampou sob essa rubrica um cantante e esvoaçante artigo de Alberto de Oliveira sobre Bilac, acompanhado de uma caricatura onde o poeta aparecia com a parte inferior do corpo convertida em lira que ele próprio dedilhava, todo cercado de estrelas...

Nunca mais esqueci o seu perfil anguloso, nem o seu nome estranho e sonoro. Por quê? Não sei bem por quê? Mas, voltando, em passo cauteloso e lento, às minhas remotas impressões de infância, acredito que me penetrou fundo, mais do que o elogio, de que pouco podia entender então, o fantasioso retrato que fora, se me não engano, desenhado por Bento Barbosa. Aquela silhueta branca em fundo negro, de um ser esquisito, que era metade homem metade lira, e todo cercado de estrelas, deu-me que pensar e sonhar, na meia obscuridade do espírito que se abria para a vida... Lembra-me que me causou aquilo uma sensação penosa. Era desagradável, por monstruoso. Um homem que era uma lira!

Entretanto, depois, verifiquei que a caricatura era a perfeita representação do que Bilac foi em toda a sua vida – um homem esguio e aéreo, sempre entre as estrelas, e que fazia de si próprio, sem deixar de ser homem, num sacrifício e num sonho, um instrumento inefável de maravilhosos acordes.

Anos depois, ainda menino, vem para São Paulo. Um dia, na Rua de São Bento, perto da Travessa do Grande Hotel, vi de repente, num grupo de rapazes, um moço pálido e magro, perfil agudo de roedor, faces cavas e picadas de espinhas, olhos salientes, a boca, grande, rasgada num riso largo, acompanhado de bamboleios e momices estouvanados, de saracoteante alegria. Era Bilac. Já não me recordo de que maneira o soube, mas soube-o no momento. Creio que o vi depois algumas vezes; vi-o, com certeza, caricaturado de novo por Bento Barbosa, também já instalado em São Paulo, e com quem ele fazia por aquele tempo – 1887 – uma revista de literatura e humorismo, a Vida Semanária.

Fui leitor assíduo dessa revista. Os meus doze anos republicaníssimos e amantes de figuras não dispensavam essa publicação, onde os dois rapazes espicaçavam homens e instituições da monarquia, um por meio de crônicas e versos, outro de desenhos, – crônicas, versos e desenhos aguçados de petulância e de irreverência, mas sem brutalidade, e com graça. Neste mesmo semanário Bilac publicou algumas das peças que pouco depois haviam de aparecer no volume Poesias, editado pela livraria dos irmãos Teixeira, de São Paulo, e impresso em Portugal. Do seu humorismo lembram-me as “Cartas Chinesas”. E é com uma suspirosa saudade que eu hoje releio algumas dessas cartas que me fizeram regaladamente sorrir no outro tempo...

Estas recordações todas me estão entranhadas na alma, de mistura com as primeiras, virginais impressões que ela colheu dos homens e das coisas; de mistura, sobretudo, com as impressões da São Paulo que eu conheci há trinta anos, avelhantada e humilde na sua casaria de largos beirais, com pardieiros onde hoje resplendem casas de jóias e casas de modas, suntuosas e bulhentas. O perfil esguio do poeta, que tanta vez atravessou as ruas da antiga cidade de Amador Bueno, à noite, sob o seu chapelinho de feltro, envolvido na bruma, enregelado da garoa, sonhando luares e estrelas, criando beleza, forjando versos, de bronze pela dura, de ouro pelo fulgor e pelo preço, esse perfil esguio e fugitivo de boêmio, de sonhador e de réprobo divino, se o evoco, me aparece associado às soturnas, caladas, saudosas imagens de São Paulo da minha infância, toda povoada de sombras que me acenam do fundo do passado, com a doçura triste dos jardins por onde se andou meio indiferente e que nos começam a parecer deliciosos, aí de nós!  quando nos voltamos para eles de longe...

É por isso tudo que eu sempre acompanhei Bilac, embora à distância, com a fidelidade constante de um desses amigos invisíveis que todos nós temos na vida.
Pouco tempo permaneceu o poeta em São Paulo, para onde havia partido com o seu temerário projeto de estudar Direito, tendo interrompido o seu curso de Medicina no Rio. Em São Paulo, não estudou senão literatura – lendo Gautier, lendo Victor Hugo, lendo Bocage e Gonçalves Dias, ouvindo o que lhe diziam as eternas sereias da sua vida, as estrelas, e interrogando aqueles horizontes velados e melancólicos, que lançam ao longo das grandes perspectivas o encanto penetrante do entrevisto e a magia dolente do inatingível. Regressando ao Rio, postas definitivamente de banda todas as preocupações de formatura, caiu de corpo e alma na brilhante e acidentada boêmia intelectual daquele tempo.

Na Cidade do Rio com Patrocínio, na Gazeta de Notícias com Ferreira de Araújo, na Notícia com Manuel da Rocha, na Cigarra e na Brucha com Julião Machado, em cem jornais e revistas da Capital e dos Estados, dispersou largamente, um pouco às tontas, os fulgores, as graças, os atrativos, os feitiços do seu verso sempre novo e sonoro e da sua prosa límpida, toda vibrante das trêmulas soalhas do ritmo e da imagem como um pandeiro reteso. Perseguido, sob Floriano, refugiou-se em Minas, onde arrancou dos arquivos e das relíquias do passado parte do delicioso livro das Crônicas e Novelas. Foi um poderoso auxiliar de Passos na remodelação do Rio de Janeiro, tarefa que, com tenacidade e com brilho iguais, aplaudiu, ajudou, prestigiou e defendeu, dia a dia, em artigos breves e eloqüentes que a grande circulação da Notícia fazia repercutir por todos os recantos da cidade.

Esteve em Buenos Aires com o Presidente Campos Sales, e o êxito que lá alcançou com o extraprograma das suas orações festivas foi simplesmente maravilhoso, tendo contribuído quase tanto como os esforços oficiais para que uma grande vaga de simpatia pública se erguesse para lá do Prata em demanda da nossa terra. Voltou à Capital Argentina por ocasião do Congresso Pan-Americano e lá refulgiu de novo, na posição de secretário, não só pela ação incansável, como também pela palavra, mais arrebatadora que nunca. Escreveu livros didáticos. Publicou a Alma Inquieta. Talhou, numa só lasca de granito, o perfil enorme de Fernão Dias Pais Leme, belo e brutal como os heróis das idades rudes e magníficas. Foi à Europa uma quantidade de vezes, alma inquieta e incontentada, sempre de lá para cá, sempre a correr atrás da mosca azul que nunca morre, porque sempre renasce... Em todas essas fases e acidentes da sua vida, eu, lá de longe, sem nunca lhe ter falado, era o amigo desconhecido que o seguia com a sua compreensão, com a sua simpatia, com o seu interesse, porque tudo o que ele tinha para mim de grande e de admirável avultava e luzia sob a leve cerração de uma suave saudade, que era mais um encanto.

Quanto a aproximar-me dele, receava-o. Eu sempre tive o secreto receio de me aproximar dos estranhos a quem admirei: não fosse a aproximação dissipar impressões que, afinal, me resultavam em preciso conforto...

Admirar, a meu sentir, é um exercício proveitoso e regozijante como um belo e saudável passeio. Note-se que de indústria não o comparo à simples contemplação estática de um belo objeto, o que à primeira vista parecia mais simples e mais exato. Comparo-o a um exercício a uma caminhada, a alguma coisa que é movimento e indagação, esforço divertido de um espírito em busca de pontos de vista felizes, de aspectos imprevistos, de detalhes ignorados, de perspectivas cambiantes e vastas. Isso que é gozo e higiene da alma, quantas vezes não desaparece de brusco, pela aproximação e pelo contacto! E eis aí, evidentemente, um prejuízo que é de temer.

Mas, há alguns anos, posto de repente em presença do poeta, e por ele acolhido com uma simplicidade tão lhana e tão branda, tão aberta e graciosa, parei um instante, como na orla de uma clareira, arrojei os olhos tão longe quanto podia pela floresta, e entrei resoluto e tranqüilo. Nunca me arrependi.
Almas existem que são mais ou menos como aquela mata sinistra que ele descreveu em alexandrinos frementes de arrepiado pavor:

...floresta enorme
Onde, virgem intacta, a natureza dorme,
Como nos matagais da América e de Java –

almas nas quais não encontramos um canto onde repousar seguros. A dele, não: a dele, ao contrário; sem prometer muito, porque era na sua beleza nobre, um pouco fechada e quieta, dava tudo: a boa sombra densa e leal, os bons recantos de ternura humana, as longas, recatadas furnas olentes e sonoras da piedade, da tolerância e do perdão. Ele só ganhava em ser visto de perto. E eu, abandonando-me à sua amizade, me senti feliz de o haver encontrado, enfim, diante do meu passo, em pessoa, estendendo-me a sua mão amiga, falando e rindo comigo, a esse que me havia surpreendido, há tanto, como uma sombra deve, e caminhara sempre à minha vista, arrastando-me os olhos por onde quer que doidejasse e fulgisse...

Na mocidade, Bilac foi um boêmio acabado – boêmio como quase todos os rapazes de talento da sua geração, e mesmo alguns sem talento. Naquele tempo a boêmia era obrigatória, um pouco por moda, um pouco por ação do meio. De par com a luta contra a escravidão e contra a monarquia, que punha na atmosfera uma permanente vibração de energias insurrecionais, a revolta contra as estreitezas e as escurezas do espírito burguês, em regra escravocrata e monárquico, era como uma conseqüência do mesmo impulso.

Os poetas de então usavam gravata flutuante e chapéu mole amachucado com jeitos e toques rememorativos de figuras provolantes e bizarras, evocadas da realidade fantasiada ou da vaga ficção. Compunham-se uns ares e uns modos de criaturas extranumerárias, com órbita à parte na vida moral e na vida social. Tinham explosões e dissonâncias, caprichos e singularidades. Levavam a existência, teatralmente, em som de rebeldia e de pândega. No fundo, faziam apenas aquilo que se costuma hoje conglomerar, um pouco rudemente sob o letreiro depreciativo de cabotinismo. E era de fato cabotinismo, porque enfim as coisas precisam ter um nome, mas era um cabotinismo ingênuo, com rompantes de cinismo trágico a terminarem-se em propósitos prudentes de arrependimento e de emenda, com derrames de loucura que de improviso se aquietavam em meticulosidades de perfeito juízo prático.
Cabotinismo superficial, três quartos fingindo, geralmente com um fundo bem sólido de normalidade e com a mesma pesada massa anterior de que se fazem todos os bons filhos, todos os bons esposos e pais, e de quando em quando vistosos majores da Guarda, ou respeitáveis negociantes matriculados.
Bilac era desses: boêmio capaz de todas as estouvadezas e de todas as extravagâncias dos outros boêmios intelectuais do seu tempo, perdendo noites em rapaziadas soltas e bulhentas, tintinabulantes de versalhada, rascantes de malícia, quentes de discussões intermináveis, entrecortadas de rugas e surriadas, de furores e gemidos, a arrastarem-se por botequins e cafés, cervejarias e redações, becos, praias, esquinas e jardins. O nosso poeta principiara cedo. Quase menino, já fazia rugir de indignação o seu severo e ríspido pai, o Dr. Guimarães Bilac...

Duplamente austero na sua qualidade de homem formado sob os princípios da educação antiga e na sua respeitabilidade de médico, indignava-se este com as loucuras do filho adolescente – oh! as grandes loucuras, que consistiam em trocar as horas de estudo por horas suplementares de palestra e de folgança, em não fazer senão versos e não ler senão literatura, e entrar para casa um pouco além das horas fixadas no regulamento consuetudinário dos bons filhos-família. Em dado momento o pai sentiu que a medida transbordava. Era preciso flagelar com impiedosa mão os brios amortecidos do rapazola.
Chamou-o uma tarde, o sobrecenho carregado e, dando-lhe um bilhete, ordenou-lhe que se preparasse para ir ao teatro. Foi uma surpresa para o poeta, que em vão procurou consigo a explicação de tão insólita amabilidade. À hora aprazada Bilac partiu, tremendo sob as vistas paternas. O espetáculo era no “Fênix Dramática” e constava do drama – Os Sete Degraus do Crime... Depois o poeta voltou a casa, onde o pai que o esperava acordado, logo lhe desfechou esta pergunta:
– Assistiu à peça?
– Assisti, sim, senhor.
– Prestou bem atenção ao final?
– Prestei.
– Como foi que morreu o protagonista?
– Na forca.
– Pois olhe (bradou o progenitor com voz estentórea), olhe que é esse o fim que o espera, se o senhor não se decide a mudar de vida!

Vede como são frágeis e ilusórias as pretensões da nossa perspicácia, quando nos aventuramos a fundar prognósticos na areia movediça das ações humanas! Este, que além de tudo era pai, apontava sob os pés do menino transviado os sete degraus do crime, e o que o rapaz começava a subir eram os degraus do aperfeiçoamento e da glória.

Aparentemente, dispersava-se e arruinava-se. Na realidade conhecia a vida, fazia a sua experiência da vida, a experiência adaptável à forma e às forças do seu espírito, conhecia os homens e as mulheres, as almas e os corações, as inclinações boas e más, as torpezas e as sublimidades do mundo, e de permeio com tudo isso a média imensa e incolor, a média fatal das almas sem garras e sem asas, que não rojam nem voam, que se movem na penumbra, entre a luz e a sombra, mas em tudo, buscando em tudo a mediocridade, temendo e aborrecendo tanto aquilo que não atinge como aquilo que sobrepassa a linha mediana das opiniões elaboradas em comum. Essa experiência lhe era necessária. É possível que nela tenha malbaratado e prejudicado alguma coisa de si; mas esse foi o preço fatídico da larga compreensão da vida, que ganhou, compreensão melancólica, sem dúvida, mas cheia de perdão e de doçura, de coragem e de tolerância. Através dessas sinuosidades e coleios, ele nada perdeu de substancial, deixou apenas farrapos superficiais da personalidade, como felpas das asas.

Assim é que, tendo começado a vida entre as loucuras da boêmia e as exacerbações imaginosas de uma arte carnal e sensual, foi aos poucos, espiritualizando tanto a sua vida como a sua arte. Nesta, pode-se dizer sem exagero e sem erro que tudo foi ascensão. O poeta, o escritor, o homem de pensamento, o particular, o cidadão, tudo nele foi crescer e subir, e tudo por igual a um tempo, num só arranco pausado e sereno.

Quando ele surgia como poeta, aí por 1885, já honrado pelo cálido louvor de Alberto de Oliveira e Raimundo Correia nas colunas de O Vassourense, jornal de Lucindo Filho, pouco aperfeiçoamento se lhe poderia vaticinar. Por uma razão muito poderosa: é que ele já surgia quase perfeito. Apareceu, adolescente, – aos vinte anos, – manejando as terríveis asperezas e rebeldias da língua com a coragem e a força de um Alcides infante a lutar com águias e leões.

Esta comparação cuido que é expressiva, no seu ar de velhice um pouco gasta, mas ainda nobre. Todos os poetas que tratam a sua arte com a clara consciência das suas dificuldades exasperantes, aprovarão, no íntimo, esta assimilação das expressões que revoam acima de nós, como assanhadas de se verem perseguidas, ou que nos fogem aos pulos e nos agridem aos botes, e nos arrastam, e nos correm a garra gotejante de sangue, até que as apanhamos pela ponta da asa ou pela grenha e, valentemente, as sofreamos, batemos, castigamos e pomos de rasto... Mas, para aqueles que enchem a imagem um tanto puxada demais para o grandioso (e não deixam de ter sua razão!) eu representarei mais modestamente as dificuldades terríveis de língua e de metro, de rima e de idéia, de estilo e de sonoridade, com que os poetas se têm de avir continuadamente, sobretudo quando o idioma de que se servem ainda oferece, como o nosso, rigidez e resistência de vime verde. Eu representá-las-ei por um bando enorme de gatos...

Não se diga que banalizo e amesquinho, agora, o objeto a que há pouco pretendia das proporções excessivas. Não. Belos e nobres animais são os gatos, tão brandos, graciosos e pacíficos, tão ondulantes e finos na familiaridade confiada das suas voltas e meneios, e entretanto independentes, caprichosos, e indomáveis, músculos de aço, elásticos e resvaladiços, garras de puas lancinantes, olhos que lançam faíscas diabólicas e gargantas que sopram, cospem e resfolegam silvos, guinchos, uivos e gargarejos de cólera fulgurante... Assim é esta nossa língua, tão nossa, tão fácil, tão chã e fiel, quando despreocupadamente a usamos no comércio ordinário das relações. É um concerto de gatos, se a queremos prender na jaula do verso. Aqui um salto funambulesco, ali um recuo e um arrepiar de pêlos, acolá um escancarar de goela vermelha e um coriscar de patas anavalhantes, e por tudo um coro destemperado de mios e de choros, de berros e de bufos...

No entanto, – eis o milagre que nos deixa pensativos, – vem um rapaz novo, singelo e sorridente, sem partes com o diabo, sem poderes do céu, um rapaz como tantos outros aparentemente, mete-se com essa gataria, expede dois repelões, vibra quatro açoites, põe uns afagos nas pontas dos dedos e uma intimativa nos arrulos da voz – e eis que o bando de gatos entra a dançar em evoluções maravilhosas, em acrobacias de elástica morbideza e matemática precisão, com infinitas sonoridades veludosas e quentes nas gargantas bravias! Esse foi o milagre de Bilac, logo ao surgir entre os braços de seus irmãos mais velhos, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira. Os seus versos, por aquele tempo, com pouca diferença, já eram os da primeira edição de seu livro, que tão grande e tão merecido êxito devia alcançar em todo o país. É que ele possuía dons naturais extraordinários, e teve a fortuna de surgir com tais dons no momento em que se operava a renovação técnica e teórica da nossa poesia.

A poesia, até então, esgotava-se em lirismos convencionais, derramados em verso fácil e grosso. O fundo era velho e pobre: atitudes românticas de fatalismo filosófico, de pieguice amorosa, de democratismo verboso; o tom, declamatório e maquinal; os temas, estafados; as pinturas, artificiais; as imagens, oratórias e gastas; as cadências, infantis; os metros, cambaios; as rimas, enfim, demasiado insignificantes para serem metidas tão à força... Nisto, pelo geral, se dessorava a arte formosa e rica de Gonçalves Dias, a arte incorreta mas impetuosa e bela de Castro Alves. A reação era inevitável, e era desejável. Veio, canalizada na corrente parnasiana: modificaram-se as atitudes, balizaram-se novos rumos, refez-se a provisão de assuntos gerais, reeducou-se a técnica transviada e claudicante. Sobretudo, procurou-se, a exemplo dos mestres franceses em voga, a recortada precisão das idéias, o relevo forte da imagem, a cadência sacudida e vivaz do verso, o ressair pontiagudo da rima, – cada coisa bem limitada, bem acabada, bem repolida, e cada coisa no seu justo lugar.

Foi-se mesmo ao exagero a que iam os mestres da outra banda, e acreditou-se, na tocante cegueira de um juvenil entusiasmo, que a última palavra da estética era converter a poesia em rival e em copista das artes visuais, em trabalhar o verso com pincel e cinzel, com escopro e buril, com maçarico e lima; era dar às composições da palavra a solidez, os contornos e os relevos definidos, exatos e imutáveis das estátuas, dos frisos, dos quadros, dos vasos, das medalhas, das gravuras a água-forte, ou das jóias.
Evidente exagero, que reduzia, sem o sentir, a missão complexa, múltipla e superior das artes do verbo, que são sobretudo movimento e vida, que hão de comportar sempre algo de fluente e de flutuante, e que, se com alguma outra arte se assemelham de nascença, é com a música, também feita de elementos que desdobram no tempo e também primariamente destinada a gerar, em vez de êxtase, ação. Mas, exagero necessário, porque o exagero é o lubrificante das novidades a instalar, e exagero até certo ponto útil, porque teve o efeito de gravar perduravelmente na consciência dos poetas o respeito da língua e a probidade escrupulosa do ofício.

Bilac formou-se poeta nessa época. Temperamento de fogo, ele quis observar logo com fervor inexcedível os sagrados mandamentos do novo credo. Théophile Gautier, que cozia esmaltes e talhava camafeus, mimos faiscantes do finito, do condensado, do preciso, do minudente, do definitivo, colocava no fim do seu livro famoso como áurea custódia, no fundo de um templo, uma declaração de fé geometricamente lavrada:

Ouil, l’oeuvre sort plus belle
D’une forme au travail
Rebelle,
Vers, marbre, onyx, émail.

Statuaire, repousse
L’argile que pétrit
Le pouce
Quand flotte ailleurs l’esprit;

Lute avec le carrare,
Aves le paros dur
Et rare,
Gardiens du contour pur:
Emprunte à Syracuse
Son bronze où fermement;
S’accuse
Le trait fier et charmant;

D’une main delicate
Poursuis dans un filon
D’agate
Le profil d’Apollon.

Bilac esculpiu a sua “Profissão de fé” com os olhos nesse modelo:
 
Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele em ouro o alto relevo
Faz de um flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,
Sobre o papel,
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel.

Corre, desenha, enfeita a imagem.
A idéia veste;
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta, a rima
Como um rubim.

Estes versos perfeitos, assim engenhosamente entrelaçados, assim solidamente construídos, assim minuciosamente passados sob uma lima sutil, sem uma trinca, um derrame, uma falha, um desvio, uma rebarba, estes versos dão o tom e a norma invariável de todos os que se contém nas Panóplias nas Sarças de Fogo, na Via Láctea. O mesmo escrúpulo na composição dos poemas, na proporção das partes, no encadeamento dos episódios, na distribuição dos ornatos, na graduação dos efeitos, na escolha dos vocábulos.

Hoje, quem examina de perto as feições firmes e salientes desta arte, não pode, por muito que a preze e saboreie, calcular o que ia de espanto sagrado, de religioso e indefinível enlevo na alma dos moços de há vinte anos, quando percorriam, em êxtase e com delícia, as três abóbadas em que se repartia esse palácio encantado...

A nova arte, de então até há poucos anos, propagou-se numa rápida e completa vitória; e, se ninguém, decerto, chegou a praticá-la como Raimundo, como Alberto de Oliveira, como Bilac, houve contudo legiões inumeráveis de vates que, abaixo deles, se vinham escalonando por aí até o chão raso. Não deixaram os três mestres de estar nas mesmas alturas; mas, hoje, quem os lê já não pode ter a impressão profunda de cataclismo geológico que a súbita aparição desse alcantis talhados a pique nos produzia há vinte anos... E eu digo vinte anos – aliás sem nenhum intento de precisão rigorosa – apesar de serem mais antigos os livros daqueles gloriosos artistas, porque, é natural, o grande êxito deles não foi imediato. Os primeiros tempos foram de indiferença, de incompreensão e de hostilidade. Só um pouco depois é que a adesão calorosa dos homens de letras, avolumando de dia para dia a caudal dos admiradores, dos partidários e dos fanáticos, acabou por arrastar a unanimidade dos aplausos.

Pois essa sua arte sábia e complicada ainda foi aperfeiçoada pelo nosso poeta. Nas subseqüentes edições do seu livro, Bilac não corrigiu apenas algumas das passagens onde julgou encontrar defeitos: acrescentou, ainda, à obra primitiva novos e sucessivos lances, onde excedeu sempre quanto houvera anteriormente realizado no tocante à elasticidade, à plasticidade, às gradações. Sua arte desdobrou-se e sutilizou-se, de mais em mais, na Alma Inquieta, nas Viagens, no Caçador de Esmeraldas, para se alçar, por fim, ao supremo triunfo da segurança, da finura, da virtuosidade, da força impressiva e do prestígio pictural e musical, nesse rendado e mirífico alhambra da Tarde. Comparem-se, por exemplo, algumas das composições descritivas dos primeiros tempos com uma outra dos últimos.

As peças descritivas são as que se prestam melhor a uma apreciação dos recursos da forma, porque, nessas, a forma se apresenta, por assim dizer, isolada, oca, livre da complicação dos elementos de fundo. Leia-se um trecho de “Sonho de Marco Antônio”:

A harpa suspira, o melodioso canto,
De uma volúpia lânguida e secreta,
Ora interpreta o dissabor e o pranto,
Ora as paixões violentas interpreta.

Amplo dossel de seda levantina,
Por colunas de jaspe sustentado,
Cobre os cetins e a cachemira fina
Do régio leito de ébano lavrado.

Move o leque de plumas uma escrava.
Vela a guarda lá fora. Recolhida,
Os pétreos olhos uma esfinge crava
Nas formas da rainha adormecida.

São versos tecnicamente perfeitos, e acariciantes, embaladores e sugestivos. Mas há neles um não sei quê de cru, que lembra um belo quadro onde os contornos fossem um tanto duros, a pedirem um pouco de atmosfera, que circulasse por eles e os diluísse. Lede, agora, um soneto pinturesco da Tarde. Notai como todo o desenho, todas as cores, todos os matizes e sombras se completam, se equilibram e se harmonizam. Como os efeitos se interpenetram e se fundam! Que movimento! Que jogo delicado de contrastes! Que transparência e fluidez de tintas. E que amplidão!...

AS ONDAS

Entre as trêmulas, mornas ardentias,
A noite no alto mar anima as ondas,
Sobem das fundas úmidas Golcondas,
Pérolas vivas – as Nereidas frias:

Entrelaçam-se correm fugidias,
Voltam, cruzando-se: e, em lascivas rondas,
Vestem as formas alvas e redondas
De algas roxas e glaucas pedrarias.

Coxas de vago onixe, ventre polidos
De alabrastro, quadris de argêntea espuma
Seios de dúbia opala ardem na treva;

E bocas verdes, cheias de gemidos,
Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma,
Soluçam beijos vãos que o vento leva...

Só falei até agora a forma. O mesmo impulso ascensional, pausado e ininterrupto, se observa na evolução do conteúdo.
Na primeira edição do seu livro, a poesia de Bilac se espoja voluptuosamente em virtuosidades descritivas e narrativas – “Morte de Tapir”, “Tentação de Xenôcrates”, “Sesta de Nero”, “Incêndio de Roma”, “Delenda Carthago”... – ou revoa em sonhos de amor inflamadamente mundanais. Percebe-se outras notas, de quando em quando – um grande desejo de vida, o horror da morte e do além, sentimentos humanos de piedade, de entusiasmo, ou de ternura; são, porém, notas secundárias e dispersas, resvalando acidentalmente sob o tecido forte daqueles acentos metálicos. Em todo o livro mal se encontrarão três ou quatro peças que, como “A um grande homem”. Ou “Pomba e chacal”, encerrem uma pura idéia e possam reduzir-se a uns tantos conceitos abstratos.

Na Alma Inquieta, já essas notas sobem, trêmulas e graves, como vindas de um oboé longínquo, ou de uma cornamusa comovida, sobre o fundo das violentas orquestrações do sensualismo juvenil – e chamam-se “Inania verba”, “Vasitas”, “Midsummer’s night’s dream”, “Mater”, “Virgens mortas”, “Campo Santo”, “Velhas árvores”... Nas Viagens, a simples intenção descritiva de outras peças dobra-se de uma idéia de continuidade na sucessão dos quadros, com o gérmen, ou o esboço remoto de uma concepção cíclica. O Caçador de Esmeraldas é ainda um poema descritivo. Mas não é um painel: é um poema, grande e belo poema, onde ao apuro da forma, à grandiosidade do desenho, à riqueza dos efeitos de arte, à força das emoções, se acrescenta um alto sentimento patriótico e humano, roçando por um nobre e reconfortante entusiasmo. Por fim, ver a Tarde...

Mas nem todo o tempo que me resta bastaria para eu dizer aqui desse livro maravilhoso, único na língua portuguesa, todas as reflexões que me sugere e as profundas repercussões que dentro de mim desperta. Tarde é o calvário resplandecente de um grande poeta que era um homem e de um homem que se ia tornando um santo... É com orgulho que nós, brasileiros, podemos apresentar ao mundo esse grande livro, essa rara flor de cultura humana integral, onde se entrelaçam e concertam, alteados, depurados, afinados, tantos primores de uma arte infinitamente rica, tanta abundância e tanta elevação de sentimento, tanta universalidade de intenções, tanto amor à terra nativa, tantos regalos para o sonho e tantos excitantes da ação, e tudo isso penetrado e banhado de uma inteligência tão luminosa e musical... Oh! o milagre máximo desta natureza privilegiada!

Foi nesse livro que ele realizou definitivamente aquele fantástico retrato da antiga Semana: aí a lira sonoríssima que ele vibrou, fazendo-a gemer, cantar e rir, era ele inteiro, era a lira feita com todos os seus nervos, todos os seus músculos, todo o seu sangue, cheia da sua vida passada e presente, trêmula das palpitações do seu coração, orvalhada de suas lágrimas, agitada pelas idéias e pelos sonhos que não chegaram a ganhar corpo e tomar asas – era ele próprio! e lá repousa no eterno segredo, rota e silenciosa, a desfazer-se e a dissipar-se como um sonho que nunca mais será sonhado...
Bilac há de ficar na história da nossa poesia com imperecível relevo. As linhas desse relevo são postas em evidência pelos mesmos que lhas censuram.

Acusam-no de ter insulflado nos seus versos mais eloqüência do que poesia. Não relutarei muito em concordar com semelhante reparo. “Mais eloqüência do que poesia” – quer dizer que, em todo o caso, a poesia existe. E existe muita, todos vós concordareis comigo que existe muita. Pois bem: essa poesia, abundante e magnífica, é ainda mais acompanhada de bastante eloqüência... que, no caso presente, é também poesia.

Essa eloqüência de Bilac é também poesia, porque não é uma pura suntuosidade do verbo, é o ímpeto forte e o transbordamento sincero de toda a sua natureza profunda. Nos seus entusiasmos, nos seus soluços, nos seus espantos, nos seus clamores, no seu discurso interjeicional e rotundo não há uma simples maneira literária, há um temperamento excepcionalmente acentuado, que parece ter surgido, numa geração titânica, dos desejos e dos assombros da Terra. E já isto é poesia intensa... Mas não façamos questão de nome. Digamos antes: isto é belo; e basta.

Outra acusação que se faz a Bilac, é a da sua terrenidade ardente... Dir-se-ia que as acusações que lhe movem têm por destino realçar as grandes qualidades peculiares da sua arte. Com efeito, ela traz consigo todos os ardores insofridos e implacáveis do instinto. Mas são tão fortes, tão contínuos, tão sinceros, tão cheios de humana angústia esses ardores, que chegam a ter algo de grande, de magnífico e de trágico. Ouve-se neles o eco perpétuo da nossa animalidade esfaimada a uivar na sua noite, ao clarão das estrelas... Ele não cantou as banalidades viciosas do viver cotidiano. Cantou o eterno impulso fatal. Cantou-o franca e sonoramente, sem malícia torpe e sem cinismo repulsivo, com a naturalidade simples que teria um pagão sadio e galhardo. Não é ele que merece censura. Censura merecem antes os que o censuram, porque esses é que, com o seu moralismo suspicaz e manhoso, pedante e falso, tolerando na vida prática a inundação horrível de todas as torpitudes habituais que a envilecem, vão no entanto sublinhar com o dedo oleoso as claras e direitas espontaneidades da natureza e da arte. Culpa não tem o poeta de que eles turbem e insultem as próprias fontes onde bebem.

Tão imperiosa, porém, era esta propensão do seu ser, que ela é a que mais vibra, não só na sua pureza, como também associada a outras impressões, a outras tendências, e até a idéias aparentemente muito distantes. Descrevendo o doudejar eterno das ondas, à noite, em alto mar, ele recriou a mitologia antiga das feminilidades formosas e ululantes, perdidas na solidão oceânica. Semelhantemente, na sua primeira época, olhando o céu cheio de névoas, via nele um turbilhão de formas perturbadoras. Dedicando um soneto ao descobridor do Brasil, nada encontrou mais comparável a essa invasão primeira de uma terra desconhecida e opulenta, que a glória de umas núpcias ardentes e encantadas...
Ao lado dessa obsessão terrenal, a obsessão dos astros. Um dos seus sonetos mais antigos é o célebre “Ouvir estrelas”, que tão pegado lhe ficou ao nome para sempre, a ponto de nunca mais se falar de um sem que as outras abotoassem logo nas memórias.

Esse soneto é apenas um episódio. Toda a sua vida foi um andar com os olhos erguidos a cada instante para o firmamento. Toda a sua poesia e toda a sua prosa estão coalhadas de astros. Aqui é um poema inteiro onde eles refulgem; ali, assomam numa estrofe, como numa janela; mais além, inesperadamente, arde uma cintilação cravejada num fecho de ouro, parecendo um simples ornato quando é um reflexo do vasto céu.

A princípio meras confidentes dos seus amores terrenos, as estrelas tornam-se depois as doces inspiradoras dos seus pensamentos mais altos. Elas encarnam, para ele, as virgindades eternas. Elas encarnam todas as suas aspirações melodiosas de purificação. Subindo da juventude à maturidade, ele subiu do materialismo alado de seus primeiros dias a uma alta espiritualidade, onde entrelaçou as flores mais finas do sonho pagão com as flores mais viçosas do cristianismo, – de cada coisa só as flores, as rosas rubras e os lírios alvos. E essa constante ascensão ele a fez por uma escada de estrelas.
Como prosador, Bilac principiou também cedo, porém só mais tarde se afirmou. Já era poeta consagrado, aceito como mestre por toda a mocidade literária do país, quando começou a impor-se, um pouco bruscamente, como um escritor imaginoso, brilhante, cheio de idéias claras, de conceitos agudos e de bizarrias magníficas, dono de um estilo sóbrio, sólido e sonoro. As suas crônicas marcaram época, e ainda são lembradas com saudades.

Lendo hoje as que ele reuniu nos volumes Crítica e Fantasia e Ironia e Piedade, ainda ficamos admirados de como puderam sair com esse aspecto de obra meditada e acabada, escritas que foram como se escrevem crônicas – sobre o assunto do dia, ou da véspera, para o jornal do dia seguinte.
Este ar de solidez e de acabamento é uma das características da prosa, como do verso de Bilac. Escritores há, e são os mais comuns, cujas melhores páginas nos dão a impressão do incompleto e do fragmentário. Não impede que sejam fulgurantes e deliciosas. Dão-se casos em que não desejáramos por nada vê-los retocados, como acontece com certos esboços de pintor, tão frescos e tão eficazes na sua visível instantaneidade, que, tais como saíram, esparrinhados e convulsos, frementes da febre em que borboleteava o pincel tateando a impressão fugitiva, merecem muito mais do que grandes telas acabadas e pomposas. Não é bem um mérito, portanto, que aponto na obra de Bilac; é, por enquanto, apenas uma característica.

Ele tinha o horror invencível das coisas feitas a meio, desarticuladas e desleixadas, inconclusas e tortas. As crônicas diárias que escreveu para a Notícia, ligeiras e breves, destinadas a morrerem, para o público, na mesma noite, eram sempre curtas, mas completas; ligeiras, mas orgânicas. Tinham um plano e um encadeamento. Tinham uma introdução, uma exposição, uma conclusão. As suas diferentes partes e pormenores guardavam entre si as proporções razoáveis. Ele arredondava-as e rematava-as, como arredondava e rematava, com mais trabalho e mais amor, os seus sonetos de cristal, maciços e transparentes. As suas obras, por ligeiras que fossem, podiam andar pelos próprios pés...

A esse gosto exigente da composição regular juntava-se o zelo clássico da ordem e da clareza internas. Dir-se-ia, com um pouco de imaginação, que seus períodos eram um bando lustroso de versos licenciados, a passearem ao sol, entre dois exercícios gerais, muito contentes da liberdade. Tudo perceptível, tudo iluminado, tudo brunido. Nenhum borrão, nenhuma garabulha, nenhum embaciamento de sombra, nenhuma vagueza de rumo. A prosa de Bilac devia ser lida e relida por todos os que se iniciam, com a crespa exuberância da mocidade, neste torturado mister de escritor, – tão complicado e tão duro.

Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer –

porque  poucas forneceriam modelos tão sugestivos e uma escrita assim despretensiosa e leve, mas tão lavrada e tão resistente. E a carpintaria da escrita é o caráter do estilista, como do desenho já foi dito que é a probidade do pintor.
Essas qualidades de método e de polidura, é certo que as aprimorou no trato dos mestres favoritos, sobretudo entre os mestres universais da ordem e da clareza, os escritores franceses. Sua prosa cheira a Flaubert, como lembra o saudável equilíbrio de Ramalho e a nervosidade amável de Eça. Mas é preciso não exagerar a parte que cabe à imitação. Ninguém imita senão aquilo que a natureza de cada um permite imitar. E a natureza de Bilac reclamava lustre e compostura, transparência e harmonia em tudo.

Essa exigência imperiosa e constante do seu temperamento repontava em todos os atos da sua vida particular, onde tudo era regulado e assente, onde nenhum pormenor ficava entregue às indecisões e vacilações em que geralmente nos enredamos... Os seus negócios eram conduzidos e levados a cabo, nos seus mínimos termos, com pontualidade e exação meticulosa. As suas maneiras, doces, ou severas, ondeantes ou abruptas, não permitiam a menor dúvida sobre a significação que ele lhes quisesse dar. Não se esquecia das entrevistas marcadas. Não deixava cartas sem respostas. Respondia sempre em duas regras, ou em duas palavras que fosse, em excelente papel, numa letra que não variava, regular, legível, um pouco rígida mas bonita em conjunto, sem ornatos nem prolongamentos inúteis enchendo linhas iguais e eqüidistantes com todos os seus pontos, todas as suas virgulas, todos os seus traços e todos os seus acentos vigorosamente destacados.

Entrei, uma vez, ultimamente, nos seus aposentos. Nada indicava, ali, que ali trabalhasse e repousasse um poeta, um desses homens que imaginamos como criaturas aluadas, trepidantes de exageros e de repentes, oscilando entre sofreguidões e relaxamentos. Nada indicava sequer que ali houvesse penetrado alguém há muito tempo. A secretária, provida de todos os objetos que a secretária de um homem meticuloso pode conter, ali estava, entre prateleiras de livros irrepreensivelmente alinhados, intacta e brunida como um desses móveis de uso convertidos em peças de aparato, em casa de gente metódica e econômica – uma mesa de jantar, por exemplo, onde não se come senão quando há pessoas de fora... Aquelas salas, que dir-se-ia serem a mansão da pachorra e do capricho, inervadas por uma instalação de lâmpadas elétricas feita pelo próprio poeta, e onde uma multidão de pequenos objetos aprazíveis, cerâmicas e lacas, brosladuras e flores, punha um ar de feminilidade carinhosa, era a oficina de um artista que tinha de manusear constantemente, no afã de longas horas de isolamento e de febre, de tensão e de anseio, todo um arsenal de livros e de documentos, de notas e correspondências e toda aquela apeiragem de escrita que se via disposta em cima da mesa numa dispersão harmônica de bibelots!

Depois de ver esses aposentos e de considerar a pessoa do poeta com os movimentos curtos e enérgicos de seus braços a sugerirem arrepanhamentos e piparotes, achataduras e arremessos, as inflexões acentuadas e quentes de sua voz e sua pronúncia escandida e correta, então compreendi bem de que origem única provinham, em geral, as feições destacadas e regulares da sua arte – e também alguns cacoetes.

Na prosa de Eça de Queirós, entre outras coisas justas, ou justificáveis que dela se disseram, apontou-se a insistência com que os substantivos se apresentam escoltados por dois adjetivos. Na prosa de Bilac há uma contratura parecida: um paralelismo constante de idéias, de expressões e de ritmos, marcando contrastes e similitudes, ou simplesmente compassando um continuado balanço, sem o qual o autor sentiria talvez que o pensamento lhe sairia manco, ou tolhido de uma asa...

“Os guerreiros JÁ NÃO QUEREM mostrar coragem e audácia: QUEREM aniquilar os adversários de modo mais simples e mais rápido, causando o maior estrago com o menor perigo possível.”

São freqüentíssimos os trechos como este, onde tudo revela cuidadosos arranjos de simetria, onde as idéias andam aos pares, e elas mesmas marcando bem o movimento dos dois pés, ou o equilíbrio das duas asas.

Toda arte possui a sua dose de artifício, e a prosa de Bilac os tem, nas crônicas e nas conferências, embora dissimulados com habilidade rara sob as dobras veludosas da elocução abundante e correntia. Na crônica, onde mal se toleram arrastamentos, ou insistências, e onde tudo deve ser facilidade e graça, os truques são necessários a cada momento, para se evitarem as asperezas e se contornarem as sensaborias, nas quais a marcha natural das idéias iria bater em cheio, mas contorná-las e evitá-las com elegância singela de quem não o faz de caso pesado. Bilac era mestre nessas acrobacias. Desempenhava-se, em regra, admiravelmente, dando a impressão de que tudo quanto ele dizia era, sem tirar nem pôr, o que havia de melhor a dizer sobre o assunto.

Entretanto, às vezes, o truque ressai aos olhos do conhecedor. Um dos mais freqüentes consiste em fazer de um equivoco o trampolim preparatório de todo um vôo estirado e magnífico. A propósito da viagem de Santos Dumont ao Brasil, após as suas famosas experiências, escreveu uma linda e comovida crônica, em que faz uma espécie de cotejo entre a terra e o céu, entre a terra boa e maternal onde vivemos e que nos nutre e nos embala, e o céu enganador e impassível, para onde se volta, a torcer-se, a nossa perpétua ansiedade insatisfeita. Onde o liame entre essa bela disgressão e o herói dos ares? É que Santos Dumont tentava devassar o céu. O céu que ele queria devassar não era senão a modesta camada atmosférica que nos envolve; mas a palavra era muito mais vasta do que a coisa... Afinal, que gostoso pedaço de límpida prosa!

A medida que Bilac avançava na vida, a sua prosa se foi adelgaçando e simplificando ainda mais. No fim, já se despojava de efeitos de estilo, desprezava o rigor dos artifícios amáveis, e se mostrava nua e casta como a fala profunda de uma fonte. Aquela prosa feita de trechos e pedaços reluzentes e sonoros como contas de cristal, destacadas umas das outras, postas em contigüidade numa fieira, mudou-se aos poucos em algo de mais global e mais fluído, como se as contas redondas e duras se fossem derretendo e transformando simplesmente em gotas e em fios de água translúcida.

Essa evolução da sua prosa seguiu a mesma curva que a do seu verso. E ambas não apresentam senão aspectos da carreira pausada e segura de uma vida, que foi uma ascensão sem retorno e sem parada. O homem chegou às raias da santidade. O artista atingiu

A arte oura, inimiga do artifício,
...a força e a graça na simplicidade.

A sua prosa e a sua poesia eram, no fundo, durante a quadra mais ardente, um misto de sensualismo e de espiritualidade. A princípio predominou o sensualismo. Depois, a pouco e pouco, eles se foram entrelaçando mais intimamente e se equilibrando cada vez melhor. Acabaram por viver harmonizados, como dois irmãos gêmeos que fossem amigos, ambos belos, um Esaú moreno e forte e um Jacó alvo e fino, aquele risonho e estouvado, este melancólico e manso, uma rosa de sangue e um lírio de leite. Nunca esse sensualismo desceu à brutalidade, nem esse espiritualismo se transviou em místicos arroubos. Ao contrário, Esaú sorria com amargura cada vez mais suave, na sua graciosa carantonha de sátiro jovem, e Jacó, de seu lado, baixava de quando em quando os olhos rasgados e lentos, com crescente complacência, na contemplação enlevada de formas e de acidentes perecedores, mas deliciosos...

Que é que os impediu de exagerar os impulsos das suas índoles diversas e os moveu a temperá-los a pouco e pouco, um com as influências fraternais do outro? Simplesmente isto: o bom senso.
O bom senso de Bilac! Eis a espinha dorsal do seu psiquismo. Não é o bom senso a qualidade essencial dos artistas; imaginação, sensibilidade, ideação pronta e harmoniosa, sentimento de beleza, em uma palavra – talento, tudo isso forte e vivaz, eis o que lhes é indispensável e eis o que eles, em várias doses, costumam ter. Assim os artistas estão sujeitos aos mais largos desvios da razão e do sentimento. “Sublime canalha!” chama-lhes, na aparência violentamente, na realidade, com uma inteligência compreensiva e piedosa, Rossini... Mas Bilac foi um homem sensato. E aqui se acha, talvez, o humano segredo da simpatia envolvente que da sua arte se desprende. O seu bom senso não foi esse, retaco e pedestre, que aí anda de suspensórios e de guarda-chuva, que é tão amiúde um mau senso ou um não-senso, porque à força de evitar o exagero acaba na aceitação resignada de todas as chatices e de todas as torpezas; mas um bom senso alado e florido, inflamado no perene desejo de embelezar e melhorar a vida.

Esse bom senso, que lhe poupou outros desvios da razão e do sentimento, também impediu que Bilac tombasse nas depressões, ou grimpasse nos exageros do nosso patriotismo, sempre balouçado entre a descrença rastejante e o entusiasmo catacego. Foi ele, igualmente, que o impulsionou, como cidadão, ao mesmo desenvolvimento admirável que é toda a história de sua vida de artista.

Houve, e creio que ainda há, muito quem suponha que Olavo Bilac surgiu patriota do fundo de uma caixinha de surpresa, ou que tombou patriota, numa estrada deserta, como Paulo de Tarso caiu do seu cavalo. Engano. A pátria sempre lhe apareceu bela e amada, entre os cuidados da sua consciência e os sonhos da sua imaginação. Na primeira fase dos seus cantos, votados quase unicamente ao culto do amor e da arte, apenas se entrevê, remoto, o perfil sagrado, através de uma ou outra frincha ligeira – aqui um rapto de passageiro entusiasmo pelo idioma natal, ali uma reverência comovida ao imortal cantor do “I-Juca Pirama”. Depois, a visão se acentua melhor e se repete mais vezes. Ergue-se, entre as ondulações desiguais da sua obra poética, esse alto cume – O Caçador de Esmeraldas. Vêm, finalmente, algumas das mais admiráveis, das mais perfeitas e soberbas jóias da Tarde, e no meio delas este soneto dolorido e reconfortador, de angústia e de reconciliação, grande e triste como um leão sonhando ao crepúsculo:

Pátria, latejo em ti, no teu lenho, por onde
Circulo!...

Na sua prosa, artigos e conferências, Bilac sempre revelou, com freqüência, ardentes preocupações de patriotismo. Algumas das melhores crônicas que escreveu, como essa, tão encantadora, que se intitula “Salamina”, não tiveram outra origem. E lendo-se, agora, esse trecho de prosa nobre e formosa, escrito em 1904, colhemos a impressão de que foi concebido depois de 1914. É já a mesma atitude, a mesma flama, a mesma linguagem. Ele falava de umas regatas a que assistira na baía de Botafogo, e, depois de dar expansão ao seu entusiasmo pela beleza visual e pela beleza moral do espetáculo, bradava sonoramente aos jovens remadores:

“Quando, no lusco-fusco da antemanhã, saltais da cama, e, roubando duas horas ao sono, ides encher de ar salitrado os pulmões, é principalmente a alma que ides fortalecer na contemplação do mar infinito, coberto de trevas, do céu sem raias, ainda salpicado de estrelas.
E se foram músculos como esses que ganharam a batalha de Salamina, – foi também com gente da vossa idade, criada no mar, afeita a desafiar e conjurar as traições das águas, habituada a sonhar a glória, ao ar livre, ouvindo a cantilena triste das vagas e mergulhando os olhos no sorvedouro estrelado do firmamento, – que, a 11 de junho, um almirante nosso, forçando as baterias paraguaias, glorificou, sob uma ‘abóbada de balas’ o nome do Brasil nas barrancas do Riachuelo...”

Enquanto cito este trecho, alguns dentre vós estarão lembrando outros trechos igualmente belos e igualmente generosos, frutos da mesma arte e do mesmo sentimento. Talvez recordem aquela crônica do “Maluco”, uma das mais comovedoras das suas páginas, anterior de quatro anos à que acabo de citar. O maluco era um pobre português, que tinha a mania inocente e tocante de venerar o monumento de Cabral: varria-lhe as pedras em redor, adornava-o de folhagens e de flores apanhadas aqui e ali, pelas ruas, e nisso se entretinha por largas horas, esquecido de tudo o mais, no meio do esplendor da natureza e dos ruídos da cidade. Assim, do naufrágio em que desapareceu a razão do pobre homem, alguma coisa se salvou...

“Uma luz sagrada ficou brilhando naquela treva, uma idéia linda ficou palpitando naquele desatino: a luz, a idéia de Pátria. Aquele português exilado, ainda na confusão e na tristeza da sua loucura, observa a saudade da terra em que nasceu, o amor de sua gente e o orgulho de ser português... Tudo morreu naquele cérebro, – exceto o patriotismo. Isso ficou, – e isso vale mais do que tudo quanto se perdeu...
Nós, os sensatos, perdemos justamente isso. Que vale o resto que nos ficou? Que vale a nossa inteligência, se a não aplicamos em servir a terra dos nossos maiores e se a malbaratamos em diatribes e chacotas? Que valem as forças da nossa alma, se as dissipamos em destruir as glórias que deveríamos prezar é em cobrir de lodo aqueles que deveríamos cobrir de flores? Que vale o nosso bom senso, se ele serve apenas para nos manter na descrença em que nos acanalhamos sem o amor da Pátria, sem o amor da Justiça, sem o amor da beleza moral?”

Bilac tinha motivos para usar dessa veemência. O patriotismo nacional, depois de se ter exacerbado em nervosos excessos, repousava numa estagnação objetiva. Deveis estar lembrados dessa estranha, mas verdadeira fase de extremo envilecimento cívico desde 1900 denunciada pelo nosso escritor, mas destinada a só alterar-se depois do estalar da grande guerra.

A formidável conflagração veio abalar esse charco. Um como tremor subterrâneo entrou a agitá-lo a pouco e pouco, e a água turva e parada, cheia de vibriões e de sapos, começou a tremer em ondulações ligeiras e a estrelar-se em borbulhas brilhantes, franzindo e rompendo o nateiro grosso que a recobria.
Fomos obrigados a considerar a nossa situação, a interrogar o nosso futuro. Vimos os perigos próximos e remotos que nos cercavam. Percebemos os dilemas que nos premiam entre as suas pontas agudas. A luta assombrosa revelou-nos coisas tremendas e insuspeitadas. Abriram-se perspectivas novas e longas em todas as direções, através de um mundo de idéia assentes e de velhos hábitos mentais, como um repentino rasgar de avenidas através de casaria macróbia e de ruelas tortas. Muitas coisas que não queríamos, ou não podíamos ver, entravam-nos pela retina com um ímpeto de agressões...
Mas a desorientação era geral. Só havia um rebolir de comentários e de gestos, como esses burburinhos confusos em que ondulam e sussurram as multidões apinhadas. Nisto, uma voz potente e cálida reboou no espaço.

Foi a 9 de outubro de 1915 – há, portanto, quatro anos. Bilac produziu em São Paulo, na Faculdade de Direito, perante os alunos reunidos para o receberem e festejarem ali, o seu célebre discurso, que foi uma faísca, – semente de fogo que brotou e floriu num dos nossos mais belos incêndios...

Por que em São Paulo? Bilac achava-se aqui, no Rio, quando começaram a saltear-lhe o espírito, também sacudido e iluminado sinistramente pela catástrofe européia, sérias e invencíveis preocupações de ternura filial pela nossa terra. Aqui meditou nos meios de levantar, para a contemplação de mais amplos horizontes, a consciência nacional entorpecida e degradada. Aqui praticava sobre tais assuntos, insistentemente, com amigos a quem gostava de confiar as suas idéias e de temperar as suas resoluções. Por que, pois, iniciou em São Paulo a sua memorável campanha? Ainda neste ponto, foi o lúcido bom senso do sonhador que interveio decisivamente. Bilac sabia mais da sua terra e da sua gente do que muitos a quem corria a obrigação imediata de as conhecer melhor, por motivo análogo àquele que impõe a todo obreiro probidoso o conhecimento a matéria com que lida... Ele enxergou que São Paulo, por um conjunto de circunstâncias, que não constituíam mérito da cidade, mas simples favor do acaso, era o centro mais adequado ao início de um movimento que precisava repercutir por todo o país.
São Paulo, antes de tudo, estava indicada como cidade de província.

É nas cidades de província que se conserva melhor o sadio e repousado equilíbrio, capaz de receber com singela confiança e transmitir com entusiasmo comunicativo os impulsos dirigidos aos sentimentos desinteressados. Entre as capitais provincianas, aquela era a que mais convinha, porque é a menos isolada de todas. É a que dispõe de mais larga área de influência direta e imediata, abrangendo vastas extensões de outros Estados, para as quais se constitui em verdadeira capital econômica e espiritual. É a que mantém, depois do Rio, mais ampla rede de relações por cima de todas as divisas do território nacional e até os seus recantos mais afastados. Ali vão ter, atraídos por um fecundo campo de trabalho, brasileiros de todas as regiões, como estrangeiros de todas as raças. São Paulo, como o Rio, é uma cidade nacional, centro de convergência, foco de irradiação e energias brasileiras, de idéias brasileiras, de aspirações brasileiras.

O próprio bairrismo paulista, que existe, difere essencialmente de outros bairrismos espalhados pela nossa bela terra, porque, em vez de ser um bairrismo supercilioso, que se recolhe e se fecha, que repele e amedronta, é um bairrismo bem disposto, que seduz e convida, e que se espalha. Seduz e convida, porque quer fazer de todos os estranhos, colaboradores. Espalha-se, porque quer repartir os frutos de suas experiências felizes. Se outras formas deste mal, ou deste bem, tendem de si mesmas para as divisões e os exclusivismos, a de São Paulo tende para a unificação mais larga. É um bairrismo ofensivo e invasor, com altos intuitos imperialistas, lançando à conquista de terras e de almas... para a grande pátria comum.

Foi este o lugar escolhido por Bilac para iniciar a sua cruzada. Por isso nem a primeira faísca se perdeu. Ateou labaredas, e estas avançaram, e não houve aceiro nem muralha que as contivesse:

...Fraco e medroso, o fogo
À branda viração tremeu um pouco, e logo
Inda pálido e tênue, ergueu-se. Mais violento
Mais rápido soprou por sobre a chama o vento:
E o que era labareda, agora ígnea serpente
Gigantesca, estirando o corpo, de repente,
Desenrosca os anéis flamívomos, abraça
Toda a cidade...

e da cidade passou ao país inteiro.
Bilac ainda falou ali, falou aqui, no Rio, falou noutros pontos do Brasil, e cada discurso era uma tocha que ele brandia entre as ruínas dos preconceitos e dos erros combatidos. E, se nunca se viu no Brasil uma campanha tão fulgurante, nunca se viu também resultarem tão prontos nem tão inumeráveis efeitos de uma campanha.

Reconciliou-se a Nação com as armas. A conscrição foi aceita. Os quartéis, atingidos pela onda reconfortante da solidariedade pública, assearam-se, arejaram-se, cresceram e, escancaradas portas e janelas, varados de ar e de sol, ressoantes de hinos e de clarinadas se puseram em comunicação aberta e tranqüila com o exterior. Multiplicaram-se as linhas de tiro. Os militares puderam dirigir-se ao povo sem correr o risco de não os quererem ouvir, ou de os quererem desrespeitar. As nações de defesa indispensável, de dever civil entrelaçado ao dever militar, de sacrifício voluntário e jovial das comodidades em favor de um desígnio coletivo, todas essas idéias tão antigas e tão repetidas, Bilac as condensou em alguns períodos de prosa singela, desempeceu-as de equívocos, aligeirou-as de inutilidades, deu-lhes um jeito, estirou-lhes duas asas, a asa da beleza e a asa do sentimento, deu-lhes as retrizes da ternura e do entusiasmo, soltou-as no ar, – e elas ficaram voando e entre vôos e cantos se multiplicaram, e encheram os ares do Brasil em infinitas revoadas. Tais como aqueles pássaros de argila, que todas as crianças da Galiléia faziam, mas que, feitos pelas mãos de um certo e único menino, e lançados no espaço, não vinham despedaçar-se no chão, – livravam-se, moviam-se, cantavam e eram aves verdadeiras, sendo passarinhos de barro.

Mas aos efeitos imediatos do fecundo apostolado outros efeitos se seguiram. O impulso primitivo esgalhou-se em outros impulsos semelhantes – e veio a campanha pró-saneamento, intensificou-se a luta contra o analfabetismo, levantaram-se uma após outras novas iniciativas patrióticas. Essa larga ondulação de idéias e de vontades continua... Quem sabe até onde irão, afinal, as repercussões de todos esses choques e contrachoques sucessivos e simultâneos, originados de um único choque, dado por um homem fraco e isolado, doente e melancólico, sentindo dentro de si o crepúsculo inexorável da vida!

Extraordinária lição para os que descrêem do espírito, para os que não querem reconhecer a força das idéias, para os que limitam a um círculo de risível exigüidade o campo útil de ação das boas vontades isoladas. Assim a soubessem aproveitar, a maravilhosa lição!

Três anos depois, no alto dessa elevação integral, pausada e harmoniosamete atingida, o grande poeta, o grande prosador, o grande patriota, o grande exemplar humano sucumbiu. Não houve, porém, desabamento e ruína. Apenas, a ascensão parou, seguiu-se um estremecimento e as linhas dessa personalidade aí quedaram na calma imponência de um monte de possantes flancos e de alteroso cume.
Esse monte, há talvez quem negue que ele o seja. Não admira. Nem todos sabem procurar o afastamento proporcionado às dimensões do objeto que se contempla... Pessoas há que, sob pretexto de fidelidade ao real, amam observar os homens de perto, o mais de perto que seja possível. Apoderam-se da vítima, e tudo espiam, tudo palpam, tudo medem, tudo desmontam e desencaixam num delírio feroz de análise e de prova. No fim, sacodem a cabeça e declaram que não existe a superioridade proclamada. Se tudo quanto acharam foi vulgar, tudo quanto viram foi pequeno, tudo quanto tocaram foi incompleto!

Esses pesquisadores frios e implacáveis fazem lembrar um maníaco desconfiado e teimoso, que, vendo toda a gente admirar, enlevada, o aspecto juntamente grandioso e suave de alta e remota montanha, intenta verificar por seus próprios olhos a existência dessa elevação. Parte, por atalhos e caminhos, galga ladeiras, transpõe gargantas e águas, matos e pedregais. Ao cabo de longas horas de marcha, trêmulo e trôpego de cansaço, mas triunfante, deixa-se cair sobre uma pedra à margem do trilho percorrido. Onde a montanha? Tudo que o cerca é vulgar e pobre.

Onde aquele remoto país de beleza, que se estampava, além, no horizonte, muito alto, muito harmonioso, com a crista a delir-se no céu claro com largas projeções de sombra a caírem-lhe das arestas iluminadas, com suaves transparências de poeira violeta sobre o azul carregado das faldas? Não! a montanha não existe! É uma ilusão de vista!
Mas a montanha existe, e lá está, grande e bela...