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Discurso de posse

Ponho a mão nessa mão que a saudade deixou para sempre no meu ombro. Nessa mão esquerda que escreveu, quando nasci, uma “Oração silenciosa”, da qual foi rara a manhã em que não me ouvi a murmurar estes versos:

Reflori em teu ser que meu sangue revela,
Para viver em ti uma vida mais bela.

O sol te acenará dos longes horizontes,
E eu hei de despontar onde quer que despontes.
E contigo serei tudo o que sonhei ser,
Redivivo e imortal no esplendor de teu ser.

Só isto quis e quero: cumprir esse vaticínio, ser o que o meu pai sonhou ser. E, se pedi que me aceitásseis em vossa companhia, foi sobretudo porque ele teria pertencido a esta Casa se não se tivesse exilado tão pronto de si mesmo.

Também Carlos Chagas Filho, o homem harmonioso a quem aqui sucedo, confessou num de seus livros que insistira em ingressar na Academia porque as circunstâncias haviam impedido que a ela se candidatasse seu pai. Do filho, o itinerário dos dias foi amorosamente desenhado pela figura paterna, não para lhe repetir o trajeto, mas para lhe continuar o exemplo. E de tal forma se manteve fiel ao que tinha por legado e dever intransferíveis (sobretudo após a morte de quem com ele os partilhava, o seu irmão Evandro), que a história das ciências no Brasil coincide, neste século, com as biografias conjugadas dos dois Carlos Chagas, o pai e o filho.

Ainda nos seus 20 anos, Carlos Chagas Filho começou a habituar-se à atenção precisa e imaginosa dos laboratórios. De bata, ele ganharia renome internacional com suas pesquisas e descobertas, como as sobre a eletrogênese no órgão elétrico do poraquê e os mecanismos de fixação do curare. De bata ele está nessa fotografia antiga. Mas é de macacão de trabalho que o vemos nesta outra, de pé, levemente encostado à mesa das retortas, braços cruzados, a perna esquerda flectida, o olhar claro de sonho e certeza. Mais alguns minutos e voltará aos seus instrumentos ou sairá para a sala de aula na Faculdade de Medicina, catedrático precoce aos 27 anos. Mais um pulsar do tempo e já estará a aliciar os demais, sobretudo os jovens, para a pesquisa científica, essencial à construção permanente do mundo e do Brasil, pois – e isto parecia dizer-nos a todo instante – um país só se desenvolve de verdade quando descobre e inventa. O Instituto de Biofísica que criou e tem o seu nome é o testemunho mais evidente de sua longa, diversificada e intensa atividade em favor da investigação científica, uma atividade que não se restringiu às nossas fronteiras, mas se estendeu pelo mundo, pois Carlos Chagas Filho foi um grande embaixador da ciência e da cultura brasileiras muito e muito antes que viesse a chefiar com inexcedível realismo a nossa Delegação junto à Unesco.

Nisso ajudaram-no o respeito que sempre o acompanhou por toda a parte, o trânsito invulgar que teve nas universidades e centros de saber da Europa e das Américas, o dom, bem seu, de fazer e conservar amigos e de multiplicar-se nos discípulos. Por essas razões e pela solidez de sua fé, Sua Santidade o Papa Paulo VI confiou-lhe a Presidência da Academia Pontifícia de Ciências. Durante os 16 anos em que a exerceu, abriu as atividades da Academia para cientistas de outras crenças e de todos os pensamentos. E desses 16 anos, de que guardava lembrança mais que afetuosa, tinha sempre presente, entre as suas inúmeras iniciativas, a datação do Santo Sudário, a reabertura do Processo de Galileu e a Declaração sobre a Prevenção da Guerra Nuclear, um texto do qual não se pode retirar nada e ao qual só com muito esforço se pode acrescentar alguma frase.

Uma das funções mais fecundas do diplomata, embora das menos reconhecidas e estudadas, é a de trazer para o seu país o que de novo se pensa, ensaia e pratica em outras partes do mundo. Isso não deixou jamais de fazer, antes, durante e depois de sua embaixada na Unesco, Carlos Chagas Filho. Tinha ele por indispensável e sempre urgente que o Brasil estivesse em dia com os desenvolvimentos da ciência para que deles pudesse prontamente receber os benefícios e a eles pudesse acrescentar os seus modelos de trabalho próprios, as suas comprovações e descobertas.

Embora em campo de atuação diferente, não foi distinto o programa do patrono de sua Cadeira nesta Academia, pois a Domingos José Gonçalves de Magalhães devemos o nos ter mandado de Paris o Romantismo, com o “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil”, publicado em sua revista Niterói, e com o seu livro Suspiros poéticos e saudades. De Paris, o poeta e diplomata Gonçalves de Magalhães trouxe também a certeza, ortodoxamente romântica, de que nos cabia criar no Brasil uma dramaturgia e um teatro nacionais. E não esperou que outros lhe seguissem a pregação, pois, apenas oito anos após ter-se apresentado em Paris o Hernani, de Victor Hugo, pôs em cena, no Rio de Janeiro, com João Caetano, a sua peça Antônio José, ou o poeta e a Inquisição.

Foi de inovador, modernizador e cabeça de escola, a partir de Gonçalves de Magalhães numa das seqüências mais importantes de nossa história literária. Sei que está distante da grandeza dos românticos que a ele se seguiram, mas confesso que não consigo deixar de comover-me, ao repetir estes e outros versos do seu poema mais conhecido, “Napoleão em Waterloo”, que decorei, tinha dez anos, e que ficaram em mim como o mais eloqüente dos melhores retratos da solidão do Imperador:

Waterloo!... Waterloo!... dizendo, passam.

Aqui morreram de Marengo os bravos!
[...] aqui estava o Gênio das vitórias,
Medindo o campo com  seus olhos de águia!

[...]
Ei-lo sentado em cima do rochedo,
Ouvindo o eco fúnebre das ondas
,
[...]
Braços cruzados sobre o largo peito,
Qual náufrago escapado da tormenta,
Que as vagas sobre o escolho rejeitaram.

Mais, talvez, do que a leitura dos românticos, o viver no exterior fez com que Gonçalves de Magalhães buscasse reproduzir nos seus versos a luz e as cores de sua terra natal, o Rio de Janeiro. Esta luz de um azul claríssimo, a beirar a suavidade do cinza, não abandonou jamais Carlos Chagas Filho por onde quer que andasse. À vontade em qualquer lugar do mundo, a sua alma não saía do Rio de sua meninice e adolescência. Nem do Brasil. Amou o seu País, como o amaram Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Luís da Câmara Cascudo e outros companheiros de uma geração à qual, embora uma década mais jovem, pela precocidade de seu acesso à vida criativa, se incorporou. Amou o Brasil, a desculpar-lhe carinhosamente os defeitos e com a convicção de que havia que estudar, e estudar, e estudar, e agir, e agir, e agir, e fazer, e fazer, e fazer, se nos queríamos melhores.

Capaz de caminhar pelas ruas e praças de Paris e de  Roma como se fossem suas, ter-lhe-ia sido, porém, extremamente difícil e até penoso desterrar-se numa dessas cidades, como fez o primeiro ocupante desta Cadeira no 9, o também poeta e diplomata Carlos Magalhães de Azeredo. Também este começou muito cedo e aos 25 anos já fazia parte desta Academia, trazido por seu grande amigo Machado de Assis. Mas, enquanto a precocidade de Carlos Chagas Filho o empurrou para o futuro, a de Magalhães de Azeredo o deixou no passado. E o exílio cobrou-lhe o preço: um esquecimento que, por seus melhores poemas, não merecia. Se tivesse escrito um único livro - e escreveu vários, num estilo ático, preciso, luminoso - e esse único livro tivesse sido Odes e elegias, já tinha por que ser lembrado e lido. Não só pela novidade, ao transplantar para o português os chamados metros bárbaros de Carducci, mas por uma dicção que se quis tensamente serena, antiga e limpa e que antecipa a de Ricardo Reis. Tanto o nosso poeta quanto aquele que Fernando Pessoa desentranhou de si próprio muito devem, é bem verdade, aos Poèmes antiques, de Leconte de Lisle, e sobretudo às 18 composições que este reuniu sob o título geral  “Études latines”, mas em Magalhães de Azeredo e em Ricardo Reis a linguagem concisa veste de rigor e sobriedade a intenção arcaizante. Compare-se “Lydie”, a Lídia que de Leconte de Lisle se passou para Ricardo Reis: -

La jeunesse nous quitte, et les Grâces aussi.
[...]
Ceignons nos cheveux blancs de couronnes de roses

- a estes de Carlos Magalhães de Azeredo:

Não me coroes, Alma querida, de rosas; o encanto
Da Juventude é efêmero; e a minha é quase extinta.

Também não me coroes de louros: a Glória não fala
Ao coração, nem o ouve; passa, longínqua e fria.

Coroai-me das heras, que abraçam as graves ruínas:
São da humildade símbolo e da tristeza eterna...

Os temas são antigos, antiga é a musa, e antiga a paisagem da poesia de Magalhães de Azeredo - uma paisagem mediterrânica, tão distinta da brasileira. Carlos Chagas Filho volvia-se para a primeira com admiração comovida, mas era na segunda, embaciada pelo excesso de umidade ao sol, que se encontrava de coração completo.

O Brasil de Carlos Chagas Filho começava no Rio de Janeiro. Quem tiver ouvido ou lido o seu discurso de ingresso nesta Academia recordará o preciso desenho que fez de quem o precedeu na Cadeira no 9, um outro carioca entranhadamente carioca, Marques Rebelo, que fez desta cidade cenário e personagem. Chagas releu-lhe a obra, a lembrar-se constantemente de si próprio, “por ter pisado os mesmos caminhos”, diz-nos, e “amado as mesmas gentes, árvores, flores, pássaros, mar” - o mar, os pássaros, as flores, as árvores e a gente do nosso Rio, do Rio que foi deles e é também meu, o Rio dos romances e dos contos de Marques Rebelo, o Rio que ainda encontrei, ao chegar, em 1943, do Nordeste.

Carlos Chagas Filho desejou para esta Cadeira que fosse uma “cadeira cativa” carioca. Não o desapontará de todo estar eu aqui. Meu pai era de Amarante, no Piauí, de mãe maranhense, e estudou no Recife; minha mãe era de Camocim, no Ceará, criada em Manaus; tive um irmão carioca e dois mineiros, um deles educado em São Luís do Maranhão; de minhas irmãs, uma nasceu no Amazonas e a outra no Rio; deixei de ser gaúcho por três meses e fui nascer em São Paulo. Se me considero piauiense de coração, ancorado, pela infância, em Fortaleza, acabo de esboçar a ficha pessoal e familiar de um verdadeiro cidadão do Rio de Janeiro, cujas velhas ruas mais de uma vez percorri na companhia de um dos mais fraternos de meus amigos, Herberto Sales, e de um de seus amigos mais fraternos, Marques Rebelo.

De cabelo à escovinha e bigode aparado rente, revejo Marques Rebelo, franzino, o olhar agudíssimo e irônico, a desenhar com mão veloz sobre os papéis que Pascoal Longo punha à nossa frente, de propósito, para as nossas garatujas, durante os programas de debates que organizava na Rádio Ministério da Educação e do qual éramos, Marques Rebelo e eu, assíduos convidados. As caricaturas que tracejava acompanhavam a sua palavra - rápida, desembaraçada, cortante, bem-humorada, irreverente, muitas vezes sarcástica e quase sempre feliz e precisa. Pois disto era mestre, falando ou escrevendo: da frase curta, na qual punha tudo o que nela cabia. Ou apenas insinuava - como em tantos de seus diálogos, que saem de bocas vivas. Quem disso duvide, que releia os três volumes do ciclo de romances que deixou incompleto, O espelho partido, no qual se refazem e repetem os dias cariocas que precederam e acompanharam a nossa Grande Guerra e as perplexidades, dúvidas, contradições, angústias e expectativas de mais de uma geração.

Em seus contos - e dominou este gênero dificílimo -, entretece-se a vivacidade do descritivo e do anedótico a uma doçura condoída pelas coisas, lugares e seres simples, humildes, pequeninos, quase a se esconderem do dia do sonho, mas que podem, inesperadamente, romper em flores em sua prosa, e em bandeirolas coloridas e fogos-de-bengala. Disso temos multiplicados exemplos num livro que ele provavelmente considerava menor, mas que guardei entre os meus prediletos, Cenas da vida brasileira. Como que escritas para violão, nessas quase sempre breves impressões de viagem por sua terra - algumas não passam de duas linhas - cosem-se à ironia diante de igrejas enormes e desajeitadas, a protegerem vilarejos de 40 casas, a ternura diante de paisagens medíocres ou envergonhadas e o deslumbramento em frente a um mar azul ou a uma revoada de garças.

Desde Oscarina, Marques Rebelo assumira o encargo de, ao retratar o presente, continuar a escrever o que no futuro se reconheceria como a história íntima do Rio de Janeiro, a retomá-la onde a deixara Lima Barreto, que, por sua vez, recebera a tarefa, ainda que sem o saber, de Machado de Assis e do Coelho Neto de A Capital Federal, que a tinham recolhido, também sem o pressentirem, de Manuel Antônio de Almeida. O Rio de Marques Rebelo foi sobretudo o da Zona Norte da pequena classe média e de uma gente ainda mais miúda, sobre cujas poucas esperanças ele se debruçou enternecido, o dos cafés onde grupos se demoravam na conversa em torno da média com pão com manteiga ou do parati, o do namoro de jardim e janela, o do Carnaval na Avenida e no High Life, o do começo e consolidação popular do prestígio do rádio e de seus artistas, tão bem retratados e A estrela sobe - um Rio de Janeiro onde parecia andar devagar o progresso, mas onde, para repetir uma observação sua, os prédios de apartamentos começavam a substituir as lindas mangueiras.

Ainda havia mangueiras, e abacateiros, e jamelões, na casa do Flamengo onde morava o menino Carlos Chagas Filho. Dela e das outras casas sobre as quais mais tarde escreveria em Meu pai e em Um aprendiz de ciência, saímos com ele e com o rapazote em quem se tornou, a pé, de bonde, de ônibus de dois andares e de trem da Leopoldina, por um Rio de Janeiro de ruas plácidas, de casarões e bangalôs ao fundo de jardins, de casas térreas e sobrados rentes à calçada, como felizmente ainda sobram uns tantos, alguns com sacadas de ferro e com festões, pinhas ou jarras no alto das fachadas. Mais do que a paisagem, Carlos Chagas Filho nos devolve, nesses dois livros, o espaço, os jogos de luz e sombra, os rumores das salas, das praças e das muradas de praia, e a figura, o andar e os gestos das pessoas que por elas passavam, com uma linguagem tão nítida, que cada palavra cai em suas frases como uma nota de música.

Sempre admirei a precisão e o esmero da escrita dos cientistas. Da prosa de um Rudolfo von Ihering, por exemplo, quando descreve um tipo de mosquito ou o movimento das araras. No caso de Carlos Chagas Filho, não se trataria, porém, de um cientista que punha no papel, com elegância e justeza, o resultado de seus estudos, mas de um cientista que era um escritor, ou, melhor, de um escritor, de um admirável memorialista, que era um grande homem de ciência. Ao ouvir-me dizer isso, Carlos Chagas Filho comentaria, decerto, não ver diferença, na concentração solitária e criadora, entre o laboratório do biofísico e a oficina do poeta.  O ensaísta de Cultura e ciência não acreditava na oposição entre humanidades e ciências da natureza, entre invenção e descobrimento, entre ciência e fé. O que escreveu, escreveu bem - na unidade dele próprio. Mas, ao contar a admiração e o enternecimento em que tinha o seu pai e como era a sua mãe, ao descrever a sua família e as grandes amizades com que compôs a vida, ao traçar a história de sua formação, desde o menino bem-nascido - como deviam ser nascidos todos os meninos - até a véspera de quem quer envelhecer em alegria, as suas sentenças vêm reforçadas de emoção, como se estivesse rezando a sua vida.

Essa emoção funda, ainda que serena, se soletra em cada palavra daquelas páginas antológicas, “A casa da Rua Paissandu”, que escreveu para o livro Cozinha do arco-da-velha. A propósito delas, não sei como não repetir o truísmo de que o escritor de verdade é aquele que nos revela o que já sabíamos. Ao contar-nos, comovido, que guardou de sua mãe, Íris, uma imagem de beleza - a de uma jovem enferma, linda, de rosto magro e pálido, “os cabelos negros dispostos de lado sobre o travesseiro” -, uma imagem que iria reencontrar no Duomo de Luca, no túmulo esculpido por Jacopo della Quercia para Ilária de Carreto, ele fala por todos os que perdemos nossas mães - por mim, ao menos, que a perdi e que dela conservo, na eternidade de cada um de meus dias, as suas feições de moça, as suas feições de moça a se sobreporem aos 91 anos de sua face de morta.

Um bom memorialista guarda o tempo; não o perde. Mas, às vezes, tem o pudor de exibir por inteiro a sua recolha de dias felizes. Como sucedeu com Carlos Chagas Filho em sua autobiografia. Sobre a beleza recebida e aquela que teceu com o fio da alma, passa com breves palavras, recatado e discreto. De seu alumbramento diante da que viria a ser a mulher amada, diz apenas isto: “Vi uma moça que achei linda e dispus-me a dançar com ela”. Só isto, mas isto a ilumina, e isto basta como princípio de relato de um longo e constante reencontro. De Annah e das “quatro filhas únicas”, Maria da Glória, Sílvia Amélia, Anna Margarida e Cristina Izabel, escreve como se seus nomes fossem também adjetivos. Como se cada qual fosse uma forma de amanhecer. Não se derrama sobre nenhuma delas. E, todas as vezes, disfarça de prosa o que se quis poema. Contido em palavras simples e claras. Como  faria o seu grande amigo Manuel Bandeira.

Das duas vezes em que conversei demoradamente com Carlos Chagas Filho, o principal assunto foi poesia. Falamos de Ribeiro Couto, de Vinícius de Morais, de Odylo Costa, filho e, sobretudo, de Manuel Bandeira. Deste, posso afiançar que foi um leitor perfeito, excelente leitor que era.

Com seu convívio com os poetas. Chagas decerto compreenderia por que este seu interlocutor procurara a vida inteira, com a sua paixão pela história da África, proteger-se do castigo da poesia – como se história e poesia não viessem, desde Homero e Heródoto, a disputar em nós o sentimento do passado. Ele seria sensível à obstinação com que procurei o quanto pude escapar do  aperreio incessante das palavras que querem dizer para ser. Desde a meninice, elas não me dão sossego, como se eu tivesse herdado com o sangue as revelações luminosas e as aflições abissais da poesia. Da poesia que escutava de meu pai:

Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata...

O seu destino em retratar consiste,
Porém o rio tudo o que retrata,
De alegre que era, vai tornando triste,
No fluido espelho móvel de ouro e prata...

Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou desta maneira,
Saudoso e triste em plena mocidade.

Dá-se e mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio...

Sonetos como esse, de um alto poeta com  Da Costa e Silva, em quem a identificação do eu com a natureza é comparável à dos grandes românticos alemães, não pedem versos que os continuem. Mas, como recebi de meu pai este destino, fiquei a ouvir-lhe a voz em cada um dos poemas que me vi obrigado a escrever. Paradoxalmente, contudo, quem sempre esteve a fugir da febre da poesia não aspirou a ser senão, em todos os seus dias, poeta. E foi como poeta e filho de poeta que vim pedir que aqui me acolhêsseis.

Chego para ser recebido por um amigo de meia vida, mas que tenho como da vida inteira. Desde que nos encontramos pela primeira vez, no Recife, faz mais de 30 anos, Marcos Vinicios Vilaça já era então o jovem autor de um livro instigante e envolvente, Em torno da sociologia do caminhão, e co-autor, com Roberto Cavalcanti de Albuquerque, de um outro, de leitura obrigatória, Coronel, coronéis -, não fizemos mais do que reconhecer as afinidades entre nós e aprofundá-las. Não que sempre vejamos de igual maneira as manchas na parede, mas é o mesmo o vocabulário com que as descrevemos e explicamos, como se, meninos, tivéssemos percorrido juntos, com Maria do Carmo e Vera, o roteiro dos presépios - e já se estão armando  de novo os presépios no nosso sertão -, e lascado piões, e jogado bolinhas de gude. Não pertence ele à raça dos que dividem e, ao dividir, muitas vezes dilaceram, mas, como Carlos Chagas Filho, à linhagem rara dos que somam para multiplicar, atentos não só à riqueza da diversidade, mas sobretudo à força fundadora das semelhanças. Zelador perfeito de suas amizades, Marcos Vinicios Vilaça tem-me acompanhado nos desterros e nas ancoragens. Ele sabe que a diplomacia foi para mim um jamais concluído, porque jamais aceito, aprendizado da ausência e que, ao gastar-me em outras terras, fui de mim, por muitos anos, uma sombra emigrada.

Ele sabe que, ao me aceitar em vossa companhia - e para cada um de vós sai do fundo do coração o meu muito obrigado -, me trouxestes, afinal, de volta à Pátria.