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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Rodrigo Octavio Filho

Senhor Ivan Lins,

Creio que foi o malicioso Rivarol – com aquele jeito de segredar coisas inconvenientes, mas assustadoramente verdadeiras – quem disse que os homens aqui embaixo, não podendo receber suficientes provisões que lhes garantam legítima imortalidade, não passam de simples viajantes, cuja viagem termina onde termina a estrada...

Bem sabemos nem sempre ser asim. Do caminho percorrido fica, por vezes, a recordação de alguns passos dados, o eco de palavras ouvidas, a lembrança de muitos sofrimentos, de algumas alegrias...

Conheço-vos bastante, Sr. Ivan Lins, para não suspeitar ter sido a fria vaidade quem vos moveu, por duas vezes, a ambicionar as glórias acadêmicas. Por serdes vós quem sois, é que se vos abriram as portas desta Casa. Nela entrais galhardamente, armado cavaleiro egresso de ferrenho embate com rival de alto coturno. Ambos árcades.

E, apesar da escandalosa fantasia de vossa cabeleira branca, ides sentarvos à mesa dos irmãos mais moços, que tendes sete anos menos que Belo Horizonte, jovem cidade onde nascestes...

Em aqui chegando não trazeis as mãos vazias. Ao contrário: ofereceis como credencial de alto teor, obra digna de vossa estirpe, produto exclusivo de vosso pensamento filosófico, de vossa cultura, de vossa vocação de escritor.

Ides aqui viver em ambiente propício, porque dedicado ao trabalho ininterrupto de defesa da Língua Portuguesa e da Cultura brasileira.

Apesar de sexagenária, a Academia é ainda tentadora... Em seu louvor cantam conhecidos menestréis... E sem número são os que se candidatavam a viver em sua companhia. E isso lhe faz florir a vaidade, aumenta-lhe o prazer da vida, incentiva-lhe as atividades propulsoras das Letras e da cultura de nossa terra. Sua já longa existência de trabalho é a prova de que só se atingem os encantos de uma maturidade respeitável e respeitada, pelo árduo e constante esforço de todas as horas, pelo sofrimento que fertiliza e ampara as boas intenções, pela solidariedade que equilibra as divergências, pelo consolo, pela alegria do dever cumprido.

Por assim agir, reconhece, irônica e superiormente, a malícia de certo membro da Academia Francesa, quando escreveu, em dois versos repetidos e celébres, duas verdades indiscutíveis: Quand nous sommes 40 on se moque de nous./Sommes nous 39? on est à nos genoux...

Não sei, Sr. Ivan Lins, se acreditais na glória literária. Realmente ela atinge a muito poucos. Estais vivendo, na noite de hoje, uma hora de consagração. Mas o vosso coração, bem sabemos, não está de todo satisfeito: – nesta sala vos falta alguém, cuja saudade vos agrilhoa o coração; vosso pai, Ministro Edmundo Lins, homem de ótimas Letras jurídicas e literárias, cidadão exemplar, varão inesquecível.

Fostes, sem favor, o seu melhor aluno, a começar pelo latim. Com ele traduzistes Eutrópio, Tito Lívio, Cícero, Suetônio, Virgílio, Horácio, Ovídio e os demais clássicos, nos quais alicerçais uma esplêndida cultura.

Existia entre vós dois – pai e filho – comovedora afinidade espiritual, afinidade que se acentuou depois de vossa maturidade filosófica. Pelas mãos paternas, despontastes no Positivismo que delas recebestes o contagiante Esboço Biográfico de Benjamin Constant, desse apostolar Teixeira Mendes.

Já se tinham passado três ou quatro anos que havíeis renunciado às vossas crenças religiosas, deixando de ser o bom católico, sincero e praticante. Fostes, então, dominado pelo cepticismo dos agnósticos, cepticismo que não raro mata as esperanças, nega a luz do dia, neutraliza atividades, e que, não se coadunando com vosso temperamento, enchia de inquietude o vosso espírito. Encontrastes enfim no pensamento comtiano o que as culturas de horizontes largos buscam: sistematização dos conhecimentos científicos e filosóficos coordenadores dos demais estudos históricos e sociais, e base para o estabelecimento de uma moral científica.

O Positivismo, porém, não ficou sendo para vós um sistema fechado ou impermeável. Pregastes que tudo quanto já se fez, ou se vier a fazer, com critério científico, em qualquer setor do conhecimento humano, deve ser a ele incorporado, enriquecendo-o e modificando-o naquilo que estiver em desacordo com as novas aquisições da Ciência. Predestinado para os ofícios da sabedoria, encontrastes assim nova razão para compreender a vida e interpretar-lhe os mistérios.

Podemos discordar de muitas das vossas idéias e princípios filosóficos, que aceitais como definitivos. Uma coisa, porém, é preciso reconhecer e afirmar: a sinceridade, a honestidade intelectual, a coerência. Sois daqueles que,cultuando, acrescentam, e o maior serviço que prestastes à cultura brasileira, frisou há pouco tempo com sua autoridade, Castilhos Goycochêa, foi humanizar o Positivismo, tirando-lhe o caráter intolerante e até agressivo com que foi instituído e mantido até faz pouco, entre nós, tornando-o “uma doutrina como as demais doutrinas, uma escola para o pensamento, como as escolas fictícias e as escolas abstratas”.

Uma recepção acadêmica não é apenas festa do espírito, revestida de ademanes mundanos, onde os dourados dos nossos uniformes enfrentam a elegância dos trajes femininos, e onde dois discursos, mais ou menos longos, e mais ou menos aplaudidos, são lidos com certa ênfase... É mais do que isso, uma hora de compreensão, é uma hora em que se dizem verdades, é uma hora de confissões mútuas. De outra forma não homenagearíamos, como é nosso dever, o nosso companheiro.

Por isso vou revelar, mesmo contra a vossa vontade, Sr. Ivan Lins, um gesto de tanta altitude moral e de tanta significação humana, que, só ele, bastaria para iluminar uma biografia e justificar o respeito que vos tributamos. Está ele narrado em uma das mais belas páginas que escrevestes: carta que dirigistes a um amigo: o ilustre Dr. Sobral Pinto. O que nela se lê é uma comovedora história que vou contar aos que me ouvem:

– Verificando não ter vocação para padre, Edmundo Lins, que havia sido posto no Seminário de Diamantina, por seu padrasto, para que seguisse a carreira eclesiástica, depois de ter chegado a tomar ordens menores, abandonou os companheiros de batina e, com o pouco dinheiro que lhe emprestaram alguns colegas, transferiu-se para Ouro Preto, de onde, aprovado em exames preparatórios, rumou para São Paulo, matriculando-se na Faculdade de Direito.

Embora tivesse deixado de seguir a carreira eclesiástica, manteve-se católico, até que um dia, com o correr do tempo, perdeu a fé. Aconteceu que nos primeiros dias de setembro de 1943, estando Ivan Lins fora do Rio, onde deixara o pai convalescente de grave enfermidade, foi por ele chamado com a maior urgência. O susto dissipou-se, quando Edmundo Lins, já convalescido, lhe segredou a razão do encontro:

– Mandei chamá-lo, porque não quero que você faça de mim um mau juízo, pensando que eu seja um homem sem caráter. Tive, há dias, um sonho que muito me comoveu. Sonhei que me achava no Seminário de Diamantina exatamente no momento em que o Superior, Padre Bartolomeu Francisco Xavier Sípolis (a quem sempre consagrei grande admiração e amizade, pois era, como todos os seus companheiros lazaristas, um verdadeiro santo), estava dando a comunhão a meus colegas de Seminário, e que se tornaram, depois, grandes e respeitáveis sacerdotes. Quando chegou a vez de ministrar-me a comunhão, o Padre Sípolis chamou-me em latim, como era praxe de se fazer a chamada dos alunos no Seminário: “Edmunde! Edmunde!” Mantive-me calado e não respondi, mas o Padre Sípolis insistiu: “Edmunde! Edmunde!” Afinal não pude resistir e respondi: “Adsum! Adsum!.” E ao aproximar-me do padre Sípolis, este, muito emocionado, me abraçou com grande carinho, dizendo-me: “Edmundo, por onde andou você tanto tempo que nunca mais o vimos na mesa da comunhão? Temos sentido imensamente a sua falta. Então você não se lembra mais do Sagrado Viático de sua mocidade, o PANIS ANGELORUM, FACTUS CIBUS VIATORUM”, de que fala o Hino ao Santíssimo Sacramento – o LAUDA, SION, SALVATOREM?” Ao ouvir estas palavras do Padre Sípólis, entrei em convulso pranto e acordei. Desde então tenho tido grande vontade de comungar, mas não quis fazê-lo sem primeiro ouvir você, por ser, de todos os meus filhos e amigos, aquele com quem mais detida e freqüentemente me tenho externado sobre assuntos de religião e filosofia. Se você achar que este meu desejo de comungar resulta apenas de uma deliqüescência de meu cérebro senil, atingido pela esclerose, não o farei, pois, como você sabe, em dezembro próximo, completo oitenta anos.

Emocionado, com o que ouvira, o positivista Ivan Lins consolou o velho pai, dizendo-lhe que a comunhão só lhe podia fazer imenso bem. E que ela iria integrá-lo, novamente, em suas convicções e práticas religiosas da mocidade! O sonho que tivera constituía prova tangível. E ele mesmo, o nosso positivista Ivan Lins, foi imediatamente buscar, na Paróquia, Frei Félix, que confessou e ministrou a comunhão ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, o seminarista reiluminado por um tão belo e milagroso sonho.

Como vós, Sr. Ivan Lins, também eu sinto aqui a imensa falta do meu pai, que, se vivo fosse, seria quem nesta hora e nesta tribuna vos estaria louvando e recebendo em nome da Academia, brindando-vos com toda a profunda admiração que vos devotava.

Nada disso, porém diminui a glória, nem as galas desta festa em que vossa obra e vossa personalidade recolhem os louros de uma vida ininterrupta de estudos e trabalhos intelectuais. Nem este é o momento para evocação de tristeza e de saudades. Se assim não fosse, poderíamos, nós ambos, rezar juntos, aqui um longo rosário delas. Felizmente sentimo-nos protegidos pelo ensinamento do Padre Manuel Bernardes: das tristezas não se pode contar nada ordenadamente porque desordenadamente acontecem elas.

Acabais de pronunciar um discurso no mais clássico modelo acadêmico.

A sobriedade da linguagem, maleável instrumento de expressão, ganhou realce na sonoridade da voz serena e firme. Manejais o vernáculo como artista penetrante, que houvesse aprendido com Mário Pio que a estética não poderá ser uma Ciência objetiva, uma Ciência autônoma, mas um ramo, um grande e nobre ramo da psicologia. Realmente, nos três retratos que acabais de traçar, de Adelino Fontoura, Luís Murat e Afonso de Taunay, não vos revelastes apenas historiador e crítico, mas também, e acentuadamente, um psicólogo. E, desde que aqui chegastes, permiti-me uma advertência: Se não encontrardes, como queria Tácito, um lugar entre os homens virtuosos, vivereis entre homens de boa vontade, que trabalham por um ideal constante, desde que esta Casa foi fundada. Posso repertir-vos que tereis aqui, em amável companhia, tarefas que vos reclamarão os primores do ofício e tereis as bênçãos de grandes tradições e o estímulo das glórias que laurearam esta Casa, que hoje vos ouviu, da tribuna que foi de Machado de Assis e Rui Barbosa.

Machado, modesto, retraído, sem eloqüência, dono da palavra adequada, única e indispensável, da frase que não hesita, da frase redonda que diz tudo que tem a dizer. Escrevia como quem fala, em surdina, num confessionário, parecendo pedir desculpas por tanto saber e por escrever tão bem. E Rui, falando alto, com ênfase, insuperada eloqüência e dono de um cérebro que era o prodigioso laboratório de onde projetou no quadro da inteligência brasileira, através do estilo que o ombreia e irmana aos grandes clássicos, um monumento culminante da cultura jurídica, social, política e literária.

Sr. Ivan Lins, na tribuna acadêmica, vosso discurso honrou-lhe as tradições. Se não fosse essa espécie de ministério público literário, que Múcio Leão devotadamente exerce, curador que é dos escritores esquecidos ou ausentes, Adelino Fontoura, patrono da Cadeira em que vos sentais, continuaria ignorado, amparando-lhe o nome, o seguro de vida literária, que, no dizer de Afrânio Peixoto, devem emitir os grêmios da natureza da nossa Academia. Realmente, não fosse o trabalho devido ao sacerdócio pesquisador de nosso ilustre confrade e o vigoroso retrato que dele acabais de fazer, Adelino Fontoura continuaria patrono sem que lhe conhecêssemos prosas e versos.

Luís Murat, vós o evocastes autêntico, perfeito. Estou a vê-lo nos primórdios da minha vida profissional, sentado diante de sua mesa de escrivão da Provedoria, assinando termos e ofícios, folheando autos, atendendo às partes com aquela fisionomia de olhar severo e marcada pelos bastos bigodes grisalhos, mas cujos versos, apesar das insistências de meu pai, me eram naquela época totalmente proibidos pela minha prosápia de poeta penumbrista.

Vosso precioso elogio de Afonso Taunay comoveu-me o coração. Companheiro quase sempre ausente, era de todos o íntimo amigo, o amigo epistolar. Sentado aqui,  afidalgado, enobrecia o ambiente. De longe, com suas cartas assíduas, conceituosas, talhadas em letras pequeninas e difíceis, vivia em íntimo colóquio com seus irmãos de confraria. Fui a São Paulo para vê-lo, dez dias antes da sua morte. Enfraquecido fisicamente, era ainda o mesmo espírito, a memória e a lucidez de sempre, tal qual  o retratastes.

Percebestes, por certo, Sr. Ivan Lins, que até agora andei fugindo a um encontro direto com a vossa obra literária. Se pela extensão e profundidade, não me assusta encará-la, pelo respeito que a ela devoto, receio não poder comentá-la e louvá-la na escala merecida.

Muitos de vossos temas eu os toco em oitavas diferentes e não raro vos surpreendo em tais virtuosidades que me é mais deleitante deixar-vos no palco com vossos instrumentos requintados, para apenas aplaudir-vos como ouvinte respeitoso.

Ensinava o patrono desta Casa que “nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”.

No trato de vossa obra, esta idéia me ocorre, e eu próprio, ao percorrêla agora e sentindo-a em seu conjunto, acrescentei tanto ao meu velho acervo que vos coloco, nesta geração, entre os mais dadivosos provedores.

Nem tudo, porém, incorporei: sois positivista; positivamente o não sou, mas, nas sombras do vosso harmonioso humanismo, há, a cada passo, um banco para conversarmos, para dizerdes vós da tranqüila segurança que desfrutais no sistema de idéias que adotastes, e fale eu de dúvidas metafísicas, dos meus velhos colóquios com Schopenhauer, meus entretimentos com Willam James, no caminho de Bergson, a quem ainda volto com o mesmo sentimento que identifiquei em José Maria Belo. “O retorno a Bergson, ao seu límpido e tantas vezes imaginoso estilo, era uma pousada de repouso na cansativa excursão através de filosofias áridas ou confusas a exigirem, no labirinto das idéias, um fio condutor que nenhuma Ariadne nos dava...”

A conselho paterno, nos meus verdes anos, andei também a bordejar vossas plagas, e fiz-me ouvinte, no Templo da rua Benjamim Constant, da comtiana pregação, mas, devo recordar, o demônio da Poesia se desmandava tanto em meu cérebro inflamado que me é mais fácil hoje repetir-vos versos que compus naquelas horas do que sabatinar-me sobre o quanto se disse da Lei dos Três Estados.

Louvo em vós, ilustre companheiro, essa gula das leituras intermináveis, de que fala Augusto Meyer.

Sois de grande saber e sois médico e não jurista, como tantos pensam, mas me confessastes a renúncia à clínica, obediente ao preceito latino Medice, cura, te ipsum!...

No magistério, do Latim e da História, no ginásio padrão, passastes pela Higiene Industrial, como bom esculápio... e acabastes na História da Filosofia, nos cursos de Direito da Universidade do Brasil.

Sois jornalista militante, e, na rica moldura do vosso caráter, da vossa probidade e da vossa vocação de homem público, está hoje, de corpo inteiro, o retrato do cidadão exemplar – o Ministro do Tribunal de Contas da Prefeitura do Distrito Federal.

Sois aqui, porém, acima de tudo, o escritor, e ao entrardes, teremos de esmiuçar vossa rica bagagem.

A leitura do conjunto de qualquer obra de real valor, como a vossa, é das que impressionam pela substância e firmeza de afirmações, pela aceitação e defesa de princípios literários ou filosóficos, pelo espírito polêmico, que domina todo pensamento que se opõe a outro pensamento, leva-nos a conjecturar com Paul Valéry: “Personne ne peut dire ce qui demain sera mort ou vivant en litterature, en philosophie, en esthétique.” Maior consolo encontramos no que escreveu Mestre Fidelino Figueiredo:

Ainda que obra de inspiração individual dos artistas, a Literatura é um fenômeno social pelo idioma de criação coletiva e pelos problemas e inquietações que expressa, pelas reações do autor ante uma coletividade e pelo eco da criação individual sobre a consciência nacional. Público e autores colaboram; e essa colaboração transforma ou amplia, através dos tempos, o sentido e a influência da obra individual.

Os livros que publicastes, Sr. Ivan Lins, têm um só sentido, uma só direção, animados por pensamento uniforme, são pregações escrupulosas de superior elevação moral.

Trazem todos a marca de Montaigne: livros de boa fé! E deixam a impressão de que deles fostes o severo crítico, obediente à máxima de Camilo: a crítica que principia por nós, é a melhor crítica.

Desde 1933, quando estreastes com a tese sobre “O Crime, o Criminoso e a Responsabilidade Penal” – publicastes nada menos de 21 volumes, e tendes prontos mais dez! E numerosos foram os cursos que proferistes, merecendo destaque os realizados em Montevidéu, a convite da Divisão de Cooperação Internacional do Itamarati, sobre – “Lope de Vega e o Significado de sua obra”, “A epopéia de Rondon nas selvas Brasileiras” e “A cavalaria Medieval; seus fundamentos e sublimidade de seus ideais”.

Contemplando-vos agora na imortalidade acadêmica, eu evoco o amigo de sempre e me volto para a vossa obra, pelas reminiscências pessoais: críticas impressionistas, leituras que se me gravaram no espírito, à medida que vinham a lume vossos substanciosos trabalhos. O primeiro que li foi a “Introdução ao Estudo da Filosofia”, que reúne as conferências proferidas por solicitação do proletário Antônio Pires, para figurarem numa “Cartilha Operária”. Fizestes belo esforço para vencer a difícil empreitada de síntese.

Humanismo e o Plano Nacional de Educação traz prefácio de Edmundo Lins, em que o notável cultor das Letras clássicas confessa, textualmente, ter encontrado ali, pela primeira vez claramente definido e precisado, o que seja o humanismo, comentando corajosamente que, se ele foi utilíssimo no Renascimento e continua a sê-lo, hoje, para um pequeno número de amadores e especialistas é inteiramente descabida a pretensão de ressucitá-lo com o caráter de cultura preponderante que apresentou nos séculos XV e XVI.

No pórtico do vosso livro sobre Benjamin Constant, deixou Afrânio Peixoto palavras que vos resumem o próprio pensamento:

A lição de Benjamin Constant ao Brasil foi esta, simples, bela, confortadora: sem sair da doutrinação, apenas com os meios suasórios da educação, podem-se mudar instituições... Ele não foi outra coisa. A própria farda que vestiu foi apenas indumentária ao mestre. Se soldados o ouviram eram apenas alunos. E a convicção se fez. As palavras se tornaram atos. Venceu sem violência, como devem vencer as idéias. Por isso é benemérito e glorificado, enquanto se esquecem os violentos e possessos..

Em Tomás Morus e a Utopia, doutrinais sobre quem foi, além de Chanceler de Henrique VIII, humanista, homem de letras e canonizado pela Igreja Católica. Miguel Osório de Almeida, apresentando-o, aplaudiu-lhe, sem reservas, o autor, por seus alevantados ideais, por suas qualidades de pesquisador, apaixonado pelas grandes idéias, por seu otimismo e sua confiança no advento de tempos melhores, em uma humanidade mais razoável e mais sensata, menos dominada por preconceitos ou idéias falsas e impostas à força, e em nome das quais são cometidas as maiores crueldades...

Roquete-Pinto, no elogio do vosso Descartes, não resiste à confissão sobre o autor: “a gente pode, às vezes, não concordar com ele, mas encontra sempre o que aprender, quando ele fala.” E acrescenta: “O surto do escritor é um prêmio do humanismo sistematizado e renovado pela influência de Augusto Comte.”

Para o exame de qualquer obra literária, uma vez que se ponham de lado os excessos de objetividade da crítica moderna, que chegou a reclamar pesquisas científicas de laboratório – basta, acima de tudo, a honesta capacidade de apreciar. Ficamos assim com este douto paulista, Antonio Candido, para quem criticar é apreciar; ter gosto e ser dotado de intuição literária.

Na intuição literária é que se encontra a capacidade, maior ou menor, de cada um colocar a obra criticada dentro do espírito universal, do ambiente e do momento em que foi criada, fazendo-a, se necessário, atravessar séculos, e ressuscitá-la, depois, na emoção e na compreensão dos comtemporâneos.

Recomendo aos que me dão a honra de ouvir, o exercício deste gênero de crítica ao lerem os estudos do Sr. Ivan Lins sobre a velha e nobre Literatura espanhola, nos quais interpreta e julga, com olhos de ver, com sentidos de sentir, a grandeza sábia, misteriosa e filosófica da alma inquieta e emocionante da terra de Cervantes. Dois destes estudos são dedicados a Lope de Vega, de quem assinala que, se o século era de gigantes, havia de ser um deles o portentoso gênio que faria do teatro espanhol um dos mais ricos e originais do mundo inteiro.

Tal, efetivamente, a grandiosidade da obra de Lope de Vega, que, no vosso juízo “seria, por muitos, considerado um mito, como Homero, caso não tivesse vivido tão próximo de nós”.

Nos dramas de Lope de Vega e de sua escola, como em Shakespeare, bem sublinhais, evocando Latino Coelho, sente-se que o belo e sublime se manifestaram, sob um aspecto novo e diverso das regradas formas de Racine e do estilo elegante, mas artificial, do teatro clássico francês e italiano. E concluis: “É que, se a luneta clássica é um instrumento precioso para apreciar os ornamentos de bom ou de mau gosto, as minúcias perfeitas ou imperfeitas, é também, como fez ver Chateaubriand, um microscópio inaplicável à observação do conjunto”.

Estudos de profundeza literária, vossos ensaios integram o pensamento dramático e poético espanhol no pensamento universal, e nos trazem, à sensibilidade e aos olhos, costumes ibéricos de séculos idos, penetrando, com segurança, no ambiente social e político da Espanha barroca e renascentista, através dos motivos literários da grande obra de Lope de Vega.

Sobre Ruiz de Alarcon, a quem se diz precursor de Corneille e Molière lembrais, com acerto, Sr. Ivan Lins, que, sem Lope de Vega, pasmosso gênio, cognominado, por Cervantes, Monstruo de la Naturaleza, e por seus demais contemporâneos, Fénix de los Ingenios, não teria Alarcon escrito as suas 26 encantadoras peças.

Estudos a um só tempo de história, crítica, e filosofia, trabalhos como os que esboçastes sobre Calderón de la Barca e Tirso de Molina são preciosos e trouxeram aos nossos meios culturais, através de antenas de rara sensibilidade, temas empolgantes, quase inexplorados.

Se me fosse possível abusar, não deixaria esta tribuna, sem antes me alongar no louvor da vossa opulenta obra de esteta, humanista e filósofo, historiador e sociólogo.

Eu vos enalteci pela unidade exemplar do pensamento que vos norteia e domina. A linguagem sóbria e ao estilo vigoroso já cantei minhas loas. Num largo salto, lembrarei agora três livros que mais de perto me encantam: Martins Fontes, espelho de vossa amizade pelo deslumbrante poeta santista: Idade Média, a Cavalaria e as Cruzadas, após cuja leitura afirmou Afrânio Peixoto que escrever sobre tal assunto com a erudição de um humanista, com a piedade de um religioso, com a bravura de um cavaleiro cruzado é obra por todos os títulos meritória, que fez do vosso talento e de vossa sabedoria, divulgação educativa para as massas, e, por fim Aspectos do Padre Antônio Vieira, por todos os títulos, livro consagrador e realmente já consagrado.

Vossa amizade intelectual com Martins Fontes nasceu, vós revelais, da simples cortesia da oferta de um livro. Desde então, surgiu, como afirmação de pensamentos irmãos, essa corrente epistolar das mais interessantes. Lendo em vosso livro as cartas do amigo de Bilac, ficamos melhor conhecendo a indormida preocupação filosófica de um poeta de ilimitada emoção e permanente entusiasmo.

Conheci pessoalmente Martins Fontes, de quem se disse que lê-lo era um encanto, mas ouvi-lo uma felicidade: – e cujo perfil noz traçou Bastos Tigre: “Neste Poeta – Coração, enaltecer e glorificar é um prazer delirante. Não conheço, em mais ninguém no mundo, um culto mais fetichista da amizade, que chega à vesânia!

“Creio que ao nascer extirparam-lhe d’alma a vesícula biliar da inveja e do ciúme. Esfuma-se, dilui-se, apaga-se para fazer sobressair os amigos.”

Com a apreciação da trepidante vida e da obra fantasmagórica de Martins Fontes, vós o revivestes sob um aspecto novo e ignorado até por alguns dos seus íntimos amigos: o de ter introduzido, na divulgação positivista, o que lhe estava faltando, a pregação poética. De fato, nada mais intuitivo e convincente do que os sonetos que se lêem. “Nos Jardins de Augusto Comte” e no “Calendário positivista”.

Em vosso preito a Martins Fontes se evidencia o poder das afinidades e da atração intelectual, mesmo entre homens que nunca se avistaram, como é o vosso caso em relação ao poeta que, no fim da existência, trocou os motivos centrais da sua Poesia, o amor, a alegria, o encanto da vida e da Natureza pela disciplina do pensamento na filosofia de Augusto Comte.

Eu não tenho culpa, Sr. Ivan Lins, de ter maior a sensibilidade do que outros predicados. Não maldigo, porém, essa excessiva ternura à flor da pele que se, por vezes, me fez sofrer mais do que a justa conta, em outras, deu-me o consolo desejado. Não sei se a tenho espelhada na fisionomia, no olhar, para que todos me vejam como eu me retrato. Nasci assim e assim vivo, repetindo, para melhor compreender-me, o célebre verso de Musset: “Mon verre n’est pas grand, mais je bois dans mon verre...”

Sr. Ivan Lins, emocionou-me a leitura na primeira página de A Idade Média, da dedicatória que evoca “a humilde memória de Constantina”, antiga e simples criada da casa de vossos pais, para cujo serviço entrou antes do vosso nascimento, e que considerais como pessoa das mais queridas da família. E Constantina, santa criatura que vos proporcionou alguns momentos mais venturosos, vive ainda na vossa memória e na vossa gratidão, como aquela árvore dadivosa, de que fala Rui, “cujos benefícios sobrevivem no reconhecimento que não murcha”.

Meu nobre amigo, não poderíamos deixar de trazer Constantina à vossa festa.

Idade Média, destacando-se entre vossas obras capitais, é a evocação de uma época em termos de gratidão e justiça, numa aguda revisão de julgamentos.

Ao escrever história, sois discípulo de Camilo, que contava os fatos como eles tiveram a imprudência de acontecer...

Não deixais de enfrentar nenhum dos pontos difíceis ou obscuros daqueles caluniados dez séculos. Sedutora e cheia de atrativos, bem demonstrais, é esta fase da História, onde, “em paradoxal milagre, surgem, da barbárie e do entrechoque das armas, as virtudes mesmas que constituem hoje o mais precioso apanágio do cavalheirismo”. Com vossos eruditos estudos, tão ricos de ensinamentos, tínheis a certeza de ir ao encontro de quantos buscam, no passado, incentivos e forças contra os amargores do presente e as apreensões do Futuro.

“Noite de mil anos”, no azedume de Michelet, a Idade Média não pode ser responsabilizada pelo retardamento do progresso humano.

A pecha da estagnação, já sobejamente respondida, como, em Lumière du Moyen Age, por Regine Pernoud, e, entre nós por Delgado de Carvalho, em seu valioso estudo inédito, bem como todos os pontos controvertidos, encontraram em vossa obra a crítica serena e, por isso, constitui ela, em nosso idioma, pedra básica para os estudiosos.

Alegastes muito bem, Sr. Ivan Lins, nas razões de defesa que se compararmos esse período com os séculos que se lhe seguiram, e, principalmente com os dias de hoje, devemos aceitar a lição de Burckhardt:

Se os sonhadores que aspiram retornar à Idade Média – essa idade bem-aventurada! fossem obrigados a viver nela somente uma hora, reclamariam, com grandes brados, o ar dos tempos modernos. Se, porém, compararmos a Idade Média com os séculos que a precederam, então a resposta não poderá deixar de ser negativa. Desse paralelo, a não ser em caso de alucinação, não se pode efetivamente concluir que, se não foi a Idade Média um dia perene, também esteve longe de constituir uma noite de mil anos.

Existem estradas que se não podem percorrer por inteiro, pois os encantos da Natureza levam à contemplação que retarda os passos. Não chegaria ao fim deste roteiro literário, através da vossa obra, se dela pudesse ocupar-me na escala merecida. O que acabamos de fazer foi apreciar alguns dos aspectos que nos parecem mais característicos, fixadores do vosso pensamento e das vossas preferências. Deixamos de nos referir a uma parte importante do conjunto de vosso patrimônio de autor, onde merecem atenção: os Três Abolicionistas Esquecidos (Benjamim Constant, Miguel Lemos e Teireira Mendes), a Concepção do Direito e da Felicidade perante a Moral Positiva A Cultura e o Momento Internacional.

Para ponto final desta saudação, reservei-me um grande tema: – Aspectos do Padre Antônio Vieira.

No prefácio, M. Paulo Filho adverte-nos de que vosso estudo completa os de João Lúcio de Azevedo, Antônio Sérgio e Hernâni Cidade, devendo, por isso mesmo, interessar aos eruditos e estudiosos do vieirismo, ao mesmo tempo que todos os que lêem no Brasil e em Portugal.

Antônio Vieira, padre da Companhia de Jesus, que ao tomismo preferia a liberdade de pensar por conta própria, “tinha horror às verdades impostas ex-cátedra, ao racismo e aos preconceitos sociais de que a Europa e a América de então enfermavam. Disso resultou que ele, um inaciano, educado nos exercícios espirituais, “fosse o mais corajoso advogado dos judeus e o mais abnegado defensor dos índios escravizados”. Homem extraordinário, Vieira externava seus sentimentos, fossem quais fossem as conseqüências, com a mais corajosa e transparente sinceridade. Por assim agir, caro pagou. Não foi entendido nem pela Rainha D. Luísa de Gusmão, nem mais tarde pelo Santo Ofício.

Que outro espírito, senão o vosso, poderia melhor defini-lo, e situá-lo em nossa História e em nossas Letras? E quantos escritores, no Brasil, vos terão superado. Sr. Ivan Lins – no gosto dos estudos especializados e na ojeriza às improvisões passageiras? Vossa produção intelectual é toda documentada, revelando sempre estudo crítico sobre pesquisa paciente e séria. Conheceis profundamente a obra do grande Padre, em cujo julgamento sois severo eimparcial. Concordo com o juízo do prefaciador: por serdes filósofo e sociólogo positivista, tivestes crescida a responsabilidade ao vos pronunciar sobre um grande sacerdote da Igreja Católica. O que fizestes foi mostrar e provar que o Padre Antônio Vieira é muito mais do que o consagrado orador sacro.

Ressaltastes em Vieira não só o pensador, o político, o diplomata, o missionário, o filósofo, o moralista, o reformador social e até o estrategista militar, mas também um Vieira ignorado, que surge vivo, completo, eloqüente, sábio e santo, no livro erudito e persuasivo que lhe dedicastes.

O Padre Antônio Vieira, sob alguns aspectos, foi por vós tirado da escuridão em que se encontrava para a claridade do convívio humano. Homem de altíssima estrutura moral, capaz de ação e reação sem superstições inúteis ou beatitudes insensatas.

O que realmente impressiona na egrégia figura humana de Vieira não é a altura da voz, do pensamento religioso e filosófico, da beleza literária das pregações, da atuação e contato rude com a vida cotidiana, da santidade e da fé: é a coragem com que agiu física e pessoalmente na perigosa época em que viveu, defendendo judeus, enfrentando e acusando a Inquisição, que o perseguiu, prendeu, maltratou e quase o fez morrer, como tantos outros, na praça pública, devorado pelas chamas de uma fogueira.

Colocastes o Padre Antônio Vieira no lugar que lhe cabe na Literatura e na História de Portugal e do Brasil. Concedestes, com isso, a todos nós a graça de melhor apreciarmos sua clássica oratória, sem os inconvenientes de uma procura paciente e pessoal, para encontrar as preciosidades literárias, a língua purificada, o pensamento mais elevado. Tudo isso está em vosso grande livro. Livro de exaltação e antológico. Lendo-o, temos ao nosso alcance e para maior glória do nosso amor à língua portuguesa o que Vieira produziu de mais clássico, de mais belo e de mais puro.

A Academia Brasileira de Letras, Sr. Ivan Lins, no dinamismo de suas nobres atividades, é incentivo para o trabalho. Ela conhece, e por isso vos escolheu, a extensão e o valor da obra que já realizastes. O que talvez vós não sabeis é o que ela ainda de vós deseja e espera.

As palavras que, por designação de nosso ilustre Presidente, acabo de vos dirigir são sinceras, e vos falam da admiração que todos vos votamos. Que me pese a suspeição de velho amigo, elas são justas e vazadas no prolóquio: amo Platão, porém, amo ainda mais a verdade.

12/12/1958