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Roquette-Pinto

RAÇA E POVO

O episódio de Canudos, ao contrário do que Euclides pretendia, não foi o começo do esmagamento de uma raça fraca; foi o desdobrar solene das energias adormidas naqueles atrasados sul-americanos, cuja aparência nipônica não devemos, todavia, acentuar pela injeção de mais sangue amarelo, ao gosto de alguns capitalistas.

Existe nessa questão da hierarquia das raças uma fábula incluída, uma moralidade implícita. Enquanto se tratava de deprimir apenas os povos negros e amarelos, procurando provar, de todo modo, a sua inaptidão para o progresso, sua incapacidade anatômica e psicofisiológica para a civilização, pouca gente protestava, entre os cientistas europeus e americanos.

A doutrina antropológica da desigualdade servia até muito bem ao ideal dos ingleses, que desejavam dominar o Transwaal; dos franceses, que se empenhavam em conquistar Madagascar e a Algéria; dos italianos, que cobiçavam a Eritréia. Porém, um belo dia, um diplomata francês, de Gobienau - de quem os diplomatas diziam que era grande antropologista, e os antropologistas afirmavam que era excelente diplomata - homem de boa pena, começou a escrever, com calor, em prol de uma tese ainda mais apurada:

Mesmo na raça branca há tipos destinados à servidão, e outros predestinados ao domínio; os dominadores seriam os celebérrimos arianos, gente escolhida que, nunca, ninguém conseguiu encontrar biologicamente caracterizada. Porém, em França mesmo, completou-se a falha da doutrina; e, desde 1869, Lapouge proclamava que o tipo dominador tem caracteres anatômicos definidos: é alto, tem crânio longo, cabelos louros e olhos claros.

Mas, a teoria começou a infiltrar a política externa da Prússia, e foi citada para justificar o esmagamento impiedoso da França, em 1870, e para preparar a trituração da Bélgica em 1914...; então, aterrorizados com a construção que tinham ajudado a erguer, os cientistas entusiastas caíram em si...

E hoje...

O pobre negro, inferior, o imprestável... foi um dos mais fortes baluartes da linha, atrás da qual se asilaram os verdadeiros monumentos da civilização. O negro, que a toda hora nos era lançado em rosto, como atestado escandaloso da nossa inferioridade étnica, desmentiu no solo da Europa aqueles tristes vaticínios; e até os médicos franceses consideraram-no o soldado de melhor sangue, o que resiste mais ao calor, ao frio, aos ferimentos e às doenças; é dos mais valentes, dos mais sóbrios, dos mais disciplinados...

Estamos de acordo...

A Europa encheu-se de mulatinhos e devorou feijão preto; pressente-se que vai chegando a hora da reabilitação dos povos feios.

E quando vier o fim da luta, o negro será chamado irmão pelo altivo indo-europeu.

Dois preconceitos hão de ruir com os destroços daquele cataclisma humano: o preconceito da raça e o preconceito da força. Porque o conflito demonstrou que a violência já não basta para resolver as questões que se levantam entre os homens e forneceu, aos caluniados da ciência, a oportunidade que até então lhes tinha faltado.

***

Eis aí a grande ilusão de Euclides: considerou inferior, gente que só era atrasada; incapazes, homens que só eram ignorantes.

Que o mestiço do centro do Brasil representa um tipo muito mais definido, e portanto, mais adiantado que o do litoral, ninguém pode contestar. O imenso litoral deste país é uma contínua ameaça à sua nacionalização; o trabalho demorado de antropogênese, que se vai no sertão afeiçoando, é, na costa, continuamente perturbado por elementos acessórios; aí, Euclides acertou.

Porém, muito maior mal do que essa injeção de sangue estranho, como corpo perturbador da reação, é a influência deletéria do cosmopolita, ganancioso e desmoralizador, que turva o meio social, nos centros diretores da nação, para dominar mais depressa e enriquecer mais sossegado.

A mestiçagem deu o jagunço; o jagunço não é mameluco, filho de índio e branco. Euclides estudou-o na Bahia; pois Bahia e Minas são os dois Estados da União em que mais se espalhou o africano. Ele esforça-se por mostrar que o isolamento, condicionado pelo meio físico, preservou a evolução do cruzamento que forneceu aquela variante admirável. É incontestável que a segregação fortalece as espécies, garantindo-lhes a diferenciação dos tipos originários; é uma realidade a lei de Wagner.

Todavia, elementos não faltam no livro dos Sertões para provar que aqueles homens que "antes de tudo eram fortes", tinham fartas gotas de sangue negro. É só reler a descrição do poviléu de Canudos:

"Todas as idades, todos os tipos, todas as cores... Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros de caboclas; trunfas escandalosas, de africanas; madeixas castanhas e louras, de brancas legítimas, embaralhavam-se sem uma fita, sem um grupo, sem uma flor, toucado ou coifa mais pobre."

Quanto aos homens, aqueles indomáveis espartanos, que não morreram para a história, porque o gênio de Euclides os amparou, na ponta da sua pena, brilhante como um relâmpago, a mistura é a mesma: Antônio Beatinho, o discípulo mais chegado ao apóstolo delirante, era mulato; Pedrão, que com 30 homens guardava, contra um exército, as vertentes da Cana Brava, era cafuzo; Estêvão, guarda da estrada do Cambaio, era negro; e tinha o corpo tatuado a bala e a faca.

Tais foram os máximos representantes daquela gente mestiça, cujas características Euclides traçou em páginas que afortunadamente o mesmo leitor pode encontrar mais adiante, para atenuar o que ele diz dos mestiços nos primeiros capítulos. É lícito, então, concluir: o sertanejo resultou de complexa mestiçagem; seu tipo sublimou-se numa completa adaptação às condições ecológicas: ele é um forte; representa um verdadeiro tipo de raça brasileira.

Eis aí, nessas conclusões fatais da grande obra de Euclides, a justificativa da sua glorificação científica.

Como aqueles grandes descobridores, que mal imaginam as aplicações futuras dos seus achados, ele procurou ouvir, demasiadamente, o que alguns cientistas segredavam sobre tipos que mal conheciam; preocupou-se demais com os quadros hórridos que teve de pintar, e mal percebeu que uma nação que possui filhos daquele molde, que ele chama de "titãs" à falta de melhor, não pode deixar de conquistar o seu lugar no mundo, caminhando para o domínio integral da sua terra.

Tenho por seguro que o contraste que Euclides apontava, entre o jagunço e o gaúcho, ao invés de ser um mal, para a nossa força de nação é uma das nossas melhores garantias. Ligados pela mesma língua, ambos, o paciente e o afoito, o alto e o baixo, o alegre e o triste, diferentes no tipo morfológico e nos costumes, têm qualidades que se completam, adornando uma alma comum.

O gaúcho tem a iniciativa, o ímpeto fogoso, o ardor vibrante; o jagunço tem firmeza e resistência; calcula friamente, é tenaz. A patologia elucida muitas vezes as ligações normais dos fenômenos, que, só quando exagerados pelo estado mórbido, se podem apreender; e o episódio de Canudos em miniatura, repete-se no Contestado.1

Tenho em mãos documentos altamente interessantes, para o estudo da psicologia dos "fanáticos" de Tamanduá: orações fetichistas, armas de madeira votivas, objetos do culto religioso paranóide. A dos campônios do Brasil, fora, longe das zonas em que a nossa desídia tem consentido na diluição dos nossos traços mais individuais, é uma só.

"Não teremos unidade de raça", exclama Euclides. E que o povo a tem?

Todos os europeus, segundo hoje se acredita, nasceram do cruzamento de uma raça de crânio curto (raça alpina), com tipos negróides, de crânio longo. E nem por isso existe unidade de raça naquele continente. Quantos tipos na Alémanha, que é o mais coeso grupamento humano que a história contemporânea registra?

É que as noções de raça e de povo baralham-se muito freqüentemente, mesmo na linguagem dos cientistas. E assim foi na de Euclides.

As raças distinguem-se por caracteres somáticos: são unidades biológicas. Os povos, ao contrário, caracterizam-se por elementos sociológicos. E, por isso, um mesmo povo pode ser formado de raças mui diversas sem maior perigo para o seu futuro, desde que os fundamentos de sua sociedade (língua, forma de governo, família, história, etc.) forem mantidos no ambiente comum.

Aqui ainda, a terra do Brasil, com a sua vastidão, suas belezas e seus antagonismos, oferece perigos ao seu povo.

Os traços realmente originais, na contribuição naturalística da obra de Euclides da Cunha, acham-se no capítulo terceiro dos Sertões. São apenas trinta e cinco páginas, onde, em síntese suprema, ali está, esboçada, a etnografia sertaneja, naquele estilo cujo molde o crime partiu, há oito anos; naquela linguagem que faz lembrar a majestade das florestas, quando segredam ao caminheiro, na aparente confusão dos sons profundos, os mistérios de toda a Terra.

E, no Palácio da Boa Vista, onde o meu desejo vê, plasmada, a alma da minha pátria, a "Sala Euclides da Cunha" documenta, nos seus mostruários, a vida dos sertanejos.

***

É um escritor pungente; aflige, emociona, e, por isso mesmo, desperta, como nenhum outro, o ideal nacionalista.

Os Sertões não é um volume de literatura: é um livro de ciência e de fé. E são essas as duas molas que faltam para o desencadear da nossa cultura popular: crer e aprender!

Se eu pudesse levar a cada povoação deste continente brasileiro uma palavra sequer; se pudesse ser ouvido pelo povo da minha terra... eu lhe diria: "aprende a ler, não para ser letrado, mas para conseguir a educação social indispensável aos filhos de um país moderno; fala aos teus, sempre, da casa em que nasceste, das suas palmeiras, dos seus pinheiros ou dos seus ervais; narra à tua família os farrapos da história comum que conheceres, porque a História do Brasil deve ser a oração dos nossos lares; trabalha e fiscaliza, com severidade e justiça, a aplicação do produto do teu esforço; considera a vida difícil da maioria dos povos, e bendiz a tua. E, quando o desânimo te infiltrar o coração, procura Euclides; ele te mostrará, com verdade e fulgor, o mundo de que és dono. E tu, meu irmão, como o Fausto da lenda medieval, erguerás de novo o grito da esperança:

Espírito sublime! Permitiste que eu lesse no seio profundo da minha terra como no peito de um amigo: revelaste as forças secretas da minha própria existência..."

Em Santa Catarina.

(Seixos rolados. Estudos brasileiros, 1927.)

 

EUCLIDES E OS SERTÕES

A literatura, muito mais do que as artes plásticas e do que a música, segue sempre a formação da nacionalidade. Depende muito de condições subjetivas, raramente satisfaz apenas os sentidos, exige colaboração, embora muitos aditem, ingenuamente, que obras literárias significativas possam brotar em cérebros insulados.

Um povo não perde os seus mais fortes determinantes se recebe, aceita e pratica a pintura e a música de outra origem. Mas dificilmente adotará literatura estranha, sem perda de alguns dos seus valores. Não quero dizer que se desnacionalize porque leia poetas e romancistas de outras terras; mas ninguém negará que os versos de Petrarca fazem mais pela "italianidade" do que os quadros de Leonardo. É que a literatura vai onde as outras não chegam; não pára, nunca, na periferia, enquanto que as cores, muitas vezes, morrem nos olhos, e os sons nos ouvidos. Por essa razão, ela define as nações.

No Brasil não é difícil reconhecer que assim foi. A nacionalidade e a literatura formaram um "sistema" interessantíssimo, que há cerca de trezentos anos se desenvolve. Mas a seu lado, sem trabalho, todos encontram um outro movimento, de origem peninsular, que ainda hoje vai levando ilustrês escritores.

Não me parece que a corrente dos que pertencem a este movimento tenha tido por máximo conselheiro, apenas o padre Vieira, que Sílvio Romero chamou "um grande desnorteador literário dos brasileiros". Também Camões andou influindo, naquele sentido; basta ler qualquer dos nossos velhos poemas, ainda que sem falar no de Bento Teixeira Pinto.

Em todo o caso, embora servido por muitos rimadores medíocres e escritores de modestos recursos, o impulso nacional ganhou alento. Sem escolas, sem bibliotecas, sem imprensa — custa crer no que este povo realizou por si mesmo. O que a nossa gente conseguiu, no domínio espiritual, documentado na eclosão literária, nada ficou devendo ao que fez na sublime arrancada material em direção aos igapós e aos chapadões. O Brasil caminhou sempre rompendo dificuldades.

Ainda existem, talvez, alguns velhos dos tempos em que um brasiliano, alistado na tropa, não podia passar de tenente.

Na ordem social, quando muito, chegou a ser doutor ou frade.

Quando surgiu Euclides da Cunha, nossa literatura podia enumerar grandes nomes pertencentes ao "sistema" de que falei há pouco. Sem ir além do último século, nem falar dos contemporâneos, é suficiente recordar Gonçalves Dias, Castro Alves, Alencar, Taunay... A verdade, porém, é que ela não tinha recebido, até então, outro alimento que não fosse o mais apurado classicismo, malgrado precários disfarces românticos ou revolucionários.

Era, em essência, brasileira; mas denunciava, a cada passo, a influência européia, puramente literária, quase retórica. A ciência quase não existia para os "homens de letras", ou, às vezes, existia de mais...

Em geral, algumas gotas de mel grego, tragos de vinho do Latium e, principalmente, muitas flores recebidas da França. Cantava, decerto, a vida dos índios; lastimava a sorte dos negros; narrava a existência e pintava ademanes dos tipos do povo. Mas ninguém tratava de ver, pela ciência, a terra e o homem que dela é, a um tempo, senhor e escravo.

Euclides da Cunha, antes de escrever Os Sertões, tinha passado a existência à margem da literatura, fazendo vida de engenheiro, ou viajando. Senhor de cultura científica segura, possuindo pendor natural para a filosofia, dono de ótimas e variadas reminiscências literárias, realizou, sem querer, o grande livro nacional, longe de qualquer deliberada preocupação artística.

Jamais imaginou que os artigos enviados, por encargo, ao Estado de S. Paulo, dariam o imponente volume.

As grandes obras de todas as literaturas nascem espontâneas, como a prosa de Mr. Jourdain...

Para os sertões o artista seguiu ao lado do historiador, matizando os episódios pela emoção pessoal. E se o cronista não fosse homem habituado às ciências naturais, daquela "diligência policial" não brotaria nunca o maior livro do Brasil.

O sertanejo pagou com a vida o seu atraso; o litoral não pôde compreender o fenômeno social que Euclides da Cunha pôs em foco, de um modo fulgurante. Só lhe faltou, ao grande criador, encontrar na mecânica o termo que a sua linda imagem sugere: a defasagem social. "Canudos" e o "Contestado" - muito diferente do caso dos Muckers do Rio Grande - foram tradução do mesmo fenômeno, em regiões extremas do país. Casos de grande significado, provaram a unidade espiritual da população e documentaram a defasagem histórica do interior com o litoral.

Tudo, nos Sertões, é grandioso; nem tudo, porém, é certo. Já tive ocasião de mostrar quanto me parecem precárias três afirmativas de Euclides da Cunha: sobre a questão do cruzamento, a fatalidade da luta das raças, o autoctonismo do homem americano. Para não repetir, basta recordar que ele, tendo feito um processo monumental ao cruzamento, conclui que a mistura de raças é um mal. Depois, acentua que, em Canudos, o cruzamento tinha atingido ao máximo. E, adiante, mostra que os mestiços, ao invés de degenerados e pusilânimes trapos humanos desprezíveis, que a teoria profetizava, eram gente que se podia comparar aos heróis de Homero (Tróia sertaneja...); eram "titãs"; eram "antes de tudo, fortes", eram dedicados, sóbrios, resistentes; eram honestos ao ponto de entregar toda a descendência de uma novilha desgarrada no seu campo, ao cabo de muitos anos, ao dono verdadeiro de quem fugira a rês...

Assim, como fez Euclides da Cunha, consinto, sem protesto, que falem mal dos nossos mestiços. Mas..., como ele fez; exponham a "teoria" predileta, contrária ao cruzamento, e depois narrem, honestamente, o que a "prática" tiver demonstrado...

Com Os Sertões viu-se, pela primeira vez, no Brasil, o "espírito científico" concorrendo para a edificação de um grande monumento literário.

Não digo que tenha sido o primeiro livro literário com preocupações científicas; isto seria inexato... e a literatura resultante teria sido, certamente, deplorável. O que desejo afirmar é que Euclides da Cunha mostrou como se pode tomar base lógica científica, para supremas construções literárias. O que há de notável, nos Sertões, desse ponto de vista, não é a minúcia técnica, às vezes até inaceitável; é o "espírito científico", que trava todo o edifício.

Houve tempo em que se acreditava que a "verdade" repelia a "beleza" ou, pelo menos, dela não precisava. Euclides da Cunha provou que elegância e vigor de frase, imagens rutilantes, sombras e colorido, que são do manejo corrente dos bons escritores, nada perdem quando o autor conhece bem as relações que ligam os fenômenos descritos - o que, por si só, caracteriza o "espírito científico".

Um escritor desse porte não poderia ter surgido, aqui, senão depois de 70, ou mesmo de 89; só poderia aparecer depois da cristalização de certos elementos da nossa vida social.

As belezas do grande livro, e até os seus defeitos, nasceram de fatores que condicionaram a vida mental das últimas gerações do império.

Foi o livro manifestação natural; surgiu, livremente a seu tempo, como a árvore que brota de uma semente humilde, quando o solo consente, sem hora fixa nem destino, no meio da mata, sem outros cuidados além dos que lhe dão os raios do sol, a água e o ar.

Muitos leitores têm-se detido diante do encanto do "estilo" de Euclides da Cunha. Não é por aí, seguramente, que eu mais o admiro. É, decerto, "estilo" pessoal, que recorda, como disse Araripe, algo das nossas cachoeiras, impetuosas, cheias de força e, ao mesmo tempo, envoltas em delicadas irisações, graciosamente disfarçadas na gaze fina do nevoeiro que o vento esgarça.

Percebe-se, naquele estilo, a influência da raça sonhadora, tocada do romantismo, que tanto tem pesado às nossas gerações ativas...

No entanto, penetrando profundamente na obra de Euclides da Cunha, vê-se que, ali, a forma vale muito menos do que o conceito.

Os Sertões - é o grande livro do Brasil porque ele soube, ali, indicar à elite dos seus compatriotas, com a verdade de uma fórmula imponente, as feições mais características do país. É certo, porém, que outro qualquer, no lugar de Euclides da Cunha, não teria sido escutado, mesmo quando houvesse posto na obra igual espírito científico. Para ser ouvido, é preciso falar de certo modo... Foi o que aconteceu com Os Sertões, escrito para a alma ardente de um povo inquieto. Daí o encantamento. Era novo - porque não era clássico; mas agradava porque as verdades científicas ali estavam apresentadas com desejado brilho romântico. Sintonia. Um exemplo? A descrição do sertanejo vítima da hemeralopia, doença da cegueira noturna brasileira a dysopia tenebrarum dos antigos. Vem a seca. Fogem as seriemas em busca de outras chapadas; as jandaias procuram as costas do mar; os morcegos, aos bandos, atacam as reses esquálidas. Protegidos pelos pedrouços, ao calor constante, evoluem em melhores condições os ovos das cascavéis que proliferam à solta. À noite, vem a onça esfaimada rondar o casebre. Então o sertanejo, trôpejo, sai ao terreiro, empunhando um tição que deve afugentar a fera:

"Nem sempre, porém fala Euclides da Cunha, pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua desdita a hemeralopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar.

Mal o sol se esconde no poente, a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-a de súbito, antes de envolver a terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa."

Hoje sabemos que a "pletora do olhar" é uma questão de privações alimentares, porque essa hemeralopia sintomática parece uma avitominose. É, pois, romântico. Mas é romantismo essencialmente pátrio. Isso é fundamental.

A "introdução do espírito científico" na literatura histórica, o "colorido romântico" que ele deu, talvez sem querer, a todas as suas grandes páginas, sintonizando-as com o meio intelectual, a "identificação do escritor com a natureza", cujos acidentes ele estava perfeitamente bem preparado para entender, são parâmetros da grande figura.

Percorro toda a nossa história literária e penso que Os sertões serão, no futuro, para o Brasil, o grande livro nacional; o que D. Quixote é para Espanha ou Os Lusíadas para Portugal; o livro em que a raça encontra a floração das suas qualidades, o espinheiral dos seus defeitos, tudo o que, em suma, é sombra ou luz na vida dos povos.

(Ensaios brasilianos, 1940.)

 

CREDO

Recebo o convite para depor neste inquérito como verdadeira intimação, formulada em nome dos mais sagrados interesses coletivos. É a hora das definições. Todos quantos assumiram, em consciência, compromissos com os seus pares ou com os seus discípulos não podem mais engrossar o bando das "almas flutuantes" de que fala Augusto Comte. Vivendo à margem das agitações políticas de toda espécie, engolfado com vivo entusiasmo na obra de educar o meu povo, por todos os meios ao meu alcance, até hoje não falei, para não aumentar o coro dos inquietos...

Se me interrogam, porém, calar seria extinguir, por mim mesmo, poucos e tênues raios de luz que o destino consentiu surgissem na minha existência.

Creio que o homem e a natureza são exclusivamente governados por leis imutáveis, superiores a quaisquer vontades;

Creio que a ciência, integrando o homem no universo, criou em sua mentalidade ao mesmo tempo uma infinita modéstia e uma sublime simpatia para com todos os seres;

Creio que a ciência, mostrando ao homem como o ódio e o amor são condicionados pelas reações do seu cérebro, deu-lhe a posse de si mesmo, permitindo que ele se transforme e se aperfeiçoe à custa das próprias forças;

Creio que a ciência, a arte e a indústria hão de transformar a terra no Paraíso que os nossos avós colocavam... no outro Mundo;

Creio que, ao lado das grandes forças egoístas que vivem no coração dos homens, jazem ali tesouros imensos de altruísmo e fraternidade que a vida em comum há de fazer desabrochar cada vez mais;

Creio nas leis da Sociologia positiva e por isso creio no advento do Proletariado, conforme foi definido por Augusto Comte, que nele via uma sementeira dos melhores tipos, "realmente dignos da elevação política"

Creio, por isso, que a nobre missão dos intelectuais mormente professores é o ensino e a cultura dos Proletários, preparando-os para quando chegar a sua hora; Creio que, sendo muito difícil conciliar os interesses da Ordem com os do Progresso, muitas vezes antagônicos, só existe um meio de evitar perturbação e desgraças: resolver tudo à luz do altruísmo e, principalmente, da fraternidade;

Creio que a ordem material deve ser mantida, mormente no interesse das mulheres, que são a melhor parte de todas as pátrias, e das crianças, que são a pátria do futuro;

Creio que no estado de inquietação do Mundo Moderno só há um meio de manter a ordem material: é garantir a mais ampla, absoluta e definitiva liberdade espiritual;

Creio cegamente no postulado de Fritz Muller: o pensamento deve ser livre como a respiração.

(Escrito a pedido dos jovens do Clube da Cultura Moderna, datado de 4 de julho de 1935. In: Álvaro Lins, Jornal de Crítica. 7ª série, 1963.)