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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Aloysio de Castro

RESPOSTA DO SR. ALOÍSIO DE CASTRO

SR. ROQUETTE-PINTO,

Recordando-nos agora que mais de uma vez batestes à porta da Academia, antes que vo-la abrisse a eleição unânime que aqui tão aplaudido vos trouxe, dais-nos a ver que a persistência está nas vossas qualidades e que a ela muitas vezes coroa o seu devido prêmio. Há na persistência um quê de teimosia, nem sempre intolerável. Insistir no propósito malogrado pode ser prova de fé e de valor, ou quando menos daquela boa paciência, tão louvada em todas as cousas.

Boa escola, a das eleições acadêmicas. O candidato é por natureza sorridente e o protocolo obriga a visitas. Mas saber sorrir de uma eleição perdida, isso não será para todos. Alguns votos na primeira tentativa nada exprimem, ninguém quer prêmios de animação, e o bom é ter vitória plena e certa logo ao primeiro lance. Só os romanos, mestres na sabedoria da vida, haviam igualmente por vencedores os que venciam e os que não se desesperavam de vencer. Ao que não entra, o melhor é voltar costas, e pelo visto não fica deselegante ou sem propósito pôr-se às testilhas com a Academia e motejá-la, pelo menos enquanto não surge a tentação de outra vaga, que torne ao candidato a flor dos sorrisos.

Afinal, galantear Academias sempre será como galantear damas, e estas, ao que parece, ainda quando passem de quarentonas, não costumam dar a mão a beijar logo à primeira vez.

Com a vossa entrada cresceu em nosso grêmio o rol dos médicos, o que poderia trazer apreensões, porque em toda parte se diz que, seja o caso qual for, aos muitos médicos é difici1 resistir. Mas de vós temos garantia de que não exercitais a medicina. Não é desnecessária a declaração, pois, segundo opiniões de muita conta, para os clínicos a porta é do outro lado, e quanto a isso de letras fiquem-se só com as de Hipócrates. Não falte, entretanto, no caso certa tolerância, ao menos por amor da indumentária, já que neste círculo ilustre onde há murças, capelos, barretes, estrelas de generalato, opas professorais, toga, mitra e báculo, poderia estranhar-se faltasse a beca dos médicos.

Mas assim ou não, ninguém se tema de vós que, profundo doutor, não conheceis a doutorice, nem a incoercível palraria do furor loquendi. A palavra copiosa, acabais de dizê-lo, “sempre foi recurso do homem que ignora”.

Hoje fostes compelido a falar, mas cousa extraordinária num orador, não falastes de vós, e por outro lado nos trouxestes um discurso de idéias, o que já se pode admitir quanto a acadêmicos, aos quais noutro tempo dera a pauta o conhecido verso de Musset:

“Nu comme le discours  d’un académicien.”

Sois douto, sendo moço. Assim pode ser quando cedo se começa, sem jamais abrir mão do estudo, e uma longa disciplina faz render o tempo pelo duplo. Mas o título de sábio que vos criastes não indica em vós, apenas, no sentido comum, a autoridade do homem de ciência, senão a do homem de cultura integral, que também na arte e nas boas letras foi haurir os fundamentos da personalidade. Sentando-vos em uma das suas cadeiras, a Academia laureou no artista o ciente. Porque não é de esquecer que um dos objetos fundamentais da vossa considerável obra científica, a etnografia brasileira, não poderia passar sem cuidado e interesse nesta Casa, onde a par dos estudos lingüísticos e literários, os assuntos essencialmente brasílicos e tudo o que diz respeito à nossa nacionalidade são seguidos com vivo movimento de simpatia.

Poucos os terão profundado como vós, em seus aspectos mais difíceis, estudioso que sois, há tanto tempo, da nossa terra, nossa natureza e nossa gente.

Mal transpúnheis doutorado a Faculdade, vinte e dois anos há, e já em vossa tese acerca do exercício da medicina entre os indígenas da América se vos declarava o gosto pelo americanismo.

Pouco depois a etnografia indígena do Brasil começou a ser o assunto predileto dos vossos silenciosos e porfiados estudos, e logo em 1916 surgiu a público essa Rondônia monumental, só por si bastante a consagrar um escritor. Que é a Rondônia? Uma obra de ciência pura e um hino à natureza.

Uma enorme região do nosso território podia ter-se por desconhecida até 1907, quando um general, como aqueles intimoratos missionários que no início da colonização intentaram os nossos sertões, por ela se embrenha com ousados companheiros. Era o início dessa obra patriótica, benfazeja e por todos os títulos admirável, que sagrou o grande nome nacional de Cândido Mariano Rondon. Ele abriu a vereda, entrou o sertão, sondou a terra, volveu, reentrou. De ano em ano, incomparável chefe, buscou melhores elementos de trabalho e aos compartes que perdia, sacrificados à feridade dos selvícolas e ao agreste dos climas, outros se substituíam, com valor não desmentido. Fostes um destes. Iniciando o vosso tirocínio no Museu Nacional, aí vos tocou examinar com reflexão de estudo os objetos indígenas recolhidos pela expedição Rondon. A vossa imaginação completava o quadro e a grandeza daquelas paragens, onde está como o coração do Brasil, para elas vos chamou. “A poesia daquelas terras remotas infiltrou-me o pensamento”.

Foi a revelação dos destinos que iam tão ditosamente coroar a vossa carreira. Em 1912 partistes com a expedição. Era o mundo desconhecido que se abria à vossa ardente curiosidade científica, era o entrevisto no sonho que agora em realidade magnífica se vos descerrava aos olhos. Mais duro o caminho, mais bela a jornada. A terra crescia. Primeiro os campos, onde se perde, nos silêncios da tarde, o balir dos rebanhos. Palmilhastes Mato Grosso. Rasgando caminho, rompendo por tudo, cruzastes chapadas e chapadões infindos, lá “onde a siriema grita e o eco não responde”, cortastes vales e cabeceiras de rios. Ao longe as serranias, a sombra espessa dos bosques, as florestas das montanhas. Avançais. Agora já se agitam as copas farfalhantes, passa o sopro das auras perfumadas. A mata rumoreja. É o cenário grandioso das regiões selvosas.

Por toda parte, em zonas tão ásperas e rigorosas de passar, onde a beleza da terra só à custa de perigos se revela, tudo perlustrastes, tudo interrogastes, flora, fauna, tudo notastes, e recolhendo da missão de tudo nos falais experimentado.

Do que nos referis se pode bater fé, não são novelórias ou contos de caçadas famosas, em que pelo geral se tolera e até se aprecia qualquer pique de exagero, com que a fantasia torne mais pitorescas as peripécias e os riscos no desemboscar a presa. Não nos recontastes aventuras ou perigos de que escapásseis por milagre, não vos malferiram as setas ervadas com que os rudes índios frecham os inimigos. Nada disso. Preferistes simplesmente ser o observador exato e o narrador verídico.

Todos sabem que o indianismo entre nós (não falo do indianismo literário, que já deu o que tinha de dar), não teve ainda no ponto de vista científico e social quem lhe trouxesse como vós tão sérios elementos de estudo. Versastes praticamente o problema que Gonçalves Dias, Couto de Magalhães, Batista Caetano, Barbosa Rodrigues e outros da mesma esteira já tinham considerado em ótimos escritos. Mas todos fizeram no assunto obra esparsa e parcelada. Capistrano de Abreu tem entre os mais um lugar distinto, com a sua esplêndida obra de vulgarização das conquistas da etnografia brasiliana da escola alemã, fundada por Martius, e a ele coube gizar as diretrizes verdadeiramente científicas de tais investigações entre nós.

Falar em Capistrano de Abreu não é somente invocar uma memória por tantas insignes prendas cara e respeitada, é associá-la a este ato, ele a quem tomastes por mestre dileto, ele que tendo-vos na mais ilustre conta nunca vos faltou com o prêmio da sua amizade. Grande e singular figura a desse omnilingüe Capistrano de Abreu, com o seu conversar bonacheirão e despreocupado filosofar, indiferente a gloríolas, dando aos ombros quando o exaltavam, como se desconhecesse o valor próprio. Poucas vezes se terá visto um sábio tão integrado na paixão das suas pesquisas, e se dissera que o seu pensamento vivia entre esses índios de por aí além, Brasil adentro. Ele vos preparou para a empresa que intentastes, porque ao partir para os longes onde campeiam os selvagens já possuíeis essa notável cultura técnica que ali vos permitiu levar a termo as complexas investigações que vos propúnheis.
Fizestes in loco, lá nos tabuleiros da Serra do Norte, o estudo da população índia revelada pelas expedições Rondon, e nos múltiplos aspectos da antropologia, da etnologia e das condições de vida, trouxestes à ciência um sem conto de observações, muitas até então totalmente desconhecidas.

A antropologia no Brasil teve cultores de mérito, João Batista de Lacerda, Rodrigues Peixoto, Nina Rodrigues. Mas fostes vós, porque assim o digamos, aquele que no vivo criou aqui essa ciência, e o que determinou os elementos para a exata caracterização dos tipos antropológicos da população do Brasil.
Nos Nhambiquaras fostes reencontrar, nestes dias da nossa época, o homem primitivo da idade pétrea. E então vos admirais de que, ao passo que a ciência moderna incessantemente opera no mundo maravilhosas e rapidíssimas mutações, só mui lentamente o homem se transforma.

Não sei se a razão estará toda convosco, e se o selvícola e o homem de civilização inferior se mostram inacessíveis, de todo ou em parte, à evolução civilizadora, por condição refratária e intrínseca de natureza étnica, ou se por efeito dos processos da civilização. Esta questão prende com outra, o papel social do homem civilizado sobre o selvagem, ao qual em vosso conceito o Estado deve meramente assistir, sem o intento de o incorporar à sociedade civilizada e à economia nacional. Mas não estará precisamente aí, nesse largar o índio à sua condição natural, o motivo dessa demorada transformação do homem, a que aludis, ao contemplar ainda na era atual exemplares humanos estacionados na condição da idade lítica?

O que até aqui sucintamente apontei dará idéia do vosso esforço de indianista e do quanto se vos deve no tocante às particularidades da vida aborígine do centro do Brasil. O índio na maloca, nas dilatadas rechãs ou na selva fechada, o caráter, a linguagem, as toadas, as canções, os tangeres, as danças, os ritos fúnebres, tudo aparece em vossos escritos, traçado a primor do natural nos seus aspectos mais impressivos com a palheta de mil cores da nossa paisagem.

Mas não vos contentastes com estudar por todas as formas o índio vivo, e devo recordar que a primeira dissecção anatômica da raça indígena fostes vós que a praticastes, com a ilustre colaboração de Benjamin Batista e Alberto Childe.

Eu recearia espraiar-me na análise de todos os vossos trabalhos científicos, e não seria aqui por certo o lugar de o fazer. Não falarei assim em vossos estudos sobre a fauna cadavérica e tantos outros. Mas não deixarei de saudar o descobridor da maior e mais linda aranha caranguejeira do Brasil (tolerai-me o adjetivo), a Grammostola roquettei das matas de Itapeva, no Rio Grande do Sul, determinada como espécie por uma autoridade de peso, o professor Melo Leitão.

A glória exige que os varões ilustres passem o nome a alguma cousa. Os homens de ciência também figuram, como todo o mundo, nas placas que indicam ruas ou estações ferroviárias. Contudo o que mais eles prezam é emprestar o nome à definição de espécies animais. Dar o nome a uma aranha, Sr. Roquette-Pinto, já vos devia bastar. Mas também um cogumelo tomou o vosso apelido, o Endodermophyton roquettei, batizado pelo Dr. Olímpio da Fonseca Filho. Nem é tudo, e o melhor está no resto, porque há um pássaro, que voa e transvoa nas solidões goianas, levando nas asas inquietas vosso nome através dos campos sertanejos. É o Phylloscartes roquettei, que a notável zoóloga alemã Senhora Snethlage assim crismou em louvor dos vossos serviços à história natural.

Que outra homenagem vos terá acaso tão fundamente tocado como essa, a vós que sabeis contemplar asas soltas no azul, e ao ver a ave que se pousa na flor abrindo de seu botão, vos tereis algum dia perguntado, como no verso de Bouilhet,

“Si c’est la fleur qui chante ou l’oiseau qui fleurit...”

Recordando os vossos serviços à ciência, abstenho-me de esmiuçar os valiosos estudos que vos ganharam foros de fisiologista. Não seria possível, porém, calar a grande distinção que vos tocou, quando há poucos anos fostes oficialmente organizar o ensino da fisiologia na Faculdade médica do Paraguai. Para tal fim aquele instituto solicitara do governo brasileiro o concurso de um homem de ciência. Quando fui chamado a fazer a indicação (porque eu dirigia nessa época a Faculdade de Medicina) propus o vosso nome, logo aceito, e de quanto acertou o nosso governo logo se fez prova com o ótimo sucedimento que vos surtiu do curso em Assunção, onde o vosso saber encontrou a admiração devida.

Regressastes à pátria, depois de assim a ter belamente servido no exterior, retomastes vosso posto de labor no Museu Nacional, e dentro em pouco, vacante a direção do mesmo, eis-vos diretor. Era o vosso posto: àquela casa vos levara a palma de um concurso e ali passastes anos de estudo sustentado com alento. Não vos foi exigida certidão de idade. Em geral, para funções como essa se pedem anos provectos e aos diretores de museus não fica mal um pouco do aspecto histórico, algo que os faça, para efeito de harmonia, como essas antigas cousas veneráveis, a que se dá o nome de “peças de Museu”.
Convenhamos que a República se afastou da tradição comum e para ali tem levado homens novos, a febril e fecunda atividade do Dr. Bruno Lobo, depois a do Dr. Artur Neiva e agora o vosso entusiasmo idealista, ardente e criador. E não vemos de outro lado, no Museu Histórico Nacional, radiar e florir a galharda juventude do nosso confrade Gustavo Barroso?

Os museus são tristes, o que a eles se recolhe vai como ao último fim dos seus destinos. Não seria sem propósito chamá-los o cemitério das cousas. Tudo é silêncio, e nas salas desertas, onde toa funérea a tardia passada dos guardas, que oscitam indiferentes, na visão fatigada e monótona do mesmo quadro, o visitante, olhando os escaparates, tem para os objetos um ar indefinível, que é curiosidade cansada e admiração tediosa.

Desconsolada glória dar fundo num Museu, para a contemplação dos pósteros. Que fado esperava o luzido chapéu de Napoleão? Numa das cenas do “Aiglon”, Metternich, entrando um dos salões do palácio imperial de Schoenbrun, vê sobre a mesa o famoso chapéu bicorne e ironicamente o apostrofa:

“Et si je te jetais, ce soir, par la croisée,
Où done finirais-tu, vieux bicorne?”

E o granadeiro responde, na meia sombra, à parte:

“Au Musée”...
A posteridade é imponente, mas concordemos que o melhor das cousas é contemplarem-se na luz do seu dia, como a vida às arruma, no seu ambiente natural.

Foi por isso que tratastes de animar o Museu, luz, ar, vibração, movimento, vida, que tudo lhe vem da vossa assistência e do risonho eflúvio que de vós docemente se desprende.
Todos conhecem os preclaros serviços que assinalam a vossa conspícua direção naquela casa, onde contais por colaboradores um grupo de homens verdadeiramente ilustres. Com eles, desenvolvendo incessantemente as pesquisas nos múltiplos ramos da história natural, aperfeiçoais dia a dia no Museu um instituto científico, que cedo ou tarde, se há de incorporar à nossa Universidade, quando ela puder corresponder efetivamente ao seu nome. Isso não tirará ao Museu a sua eficiência como centro de educação popular que deve ser.

Somente, uma instituição que a tal fim se proponha precisa ter portas abertas dia e noite, e entre quem quiser aprender, entre o povo, por cujos interesses devem moldar-se os regulamentos. Esta observação faz lembrar o que certo dia passou em um Museu, onde se apresentaram dois rapazinhos. Ardia-lhes o ânimo na curiosidade do que esperavam contemplar, mil cousas que a imaginação prefigurava, quando a um deles cortou o passo o impávido porteiro. “Não entrarás!” Nisto sai o Diretor e o meninote para ele apela. Não foi difícil reconhecer o obstáculo à entrada: o menino era pobre e estava sem gravata; ora, sem gravata ninguém entra, é a voz do regulamento. Grave era a matéria, mas o diretor, homem sábio e piedoso, desatou a complicação desatando a própria gravata, que enrolou no pescoço do rapaz.

Cumpriu-se o regulamento, e enquanto, rubro de alegria, lá se foi o pequeno, marinhando escada acima pelo Museu adentro, o Diretor levantava a gola do casaco e saía a filosofar que a gravata é na vida uma cousa mui essencial, não somente para estar em boa sociedade, senão ainda para cultivar o espírito. Duas vezes belo e magnífico foi assim, Sr. Roquette-Pinto, o vosso gesto: para dar vos privastes, e vestistes o próximo, alumiando-lhe o cérebro.

Do que até agora temos visto, o que mais deveras dá o traço da vossa personalidade e põe o selo nos vossos trabalhos é o entranhado amor das cousas da nossa terra, desde a formação da raça aos seus desígnios históricos. Em tudo lhe cantais o esplendor. É a luz a jorros, é o solo ubertoso e abençoado, os campos e as flores olentes, os rios, os mares, as espigadas serras onde o olhar se perde em maravilhosos cicloramas e se deslumbra no esbraseado céu das tardes tropicais.
Esse culto do Brasil-natureza, que se trai em todas as vossas preferências no domínio científico, por igual se demonstra nas vossas predileções literárias.

Que prosador dentre os nossos desperta, mais que qualquer outro, a vossa admiração? É Euclides da Cunha, o amoroso dos sertões adustos, cujo estilo tem a pompa das selvas luxuriantes, o artista que rasgou a cortina desse encantado vale amazônico, o inferno verde de Alberto Rangel ou o verde paraíso de Raimundo Morais.

Qual o poeta que amais sobre todos? Nenhum como Vicente de Carvalho, que cantou a excelcitude do mar nos versos grandíloquos que ainda há pouco soaram dos vossos lábios comovidos:

Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias!

Em todas as cousas dais a palma ao que é nosso. Aromas não os há como os das nossas florestas, e do nectário das nossas flores silvestres as abelhas lavram, no oco das árvores, o favo mais estreme e saboroso. Ninguém vos fale em abelhas de Himeto ou do Hibla. Mel tão doce não haverá como o do manduri, da bojuí preta, da uruçu ou da mandaguari, e estamos agora a ver-vos dando estalos de língua, pois, no depoimento que escrevestes, esse mel divino “tem requintados todos os perfumes das matas brasileiras e resume um poema de cheiro e de sabor”.

Assim em tudo procurais revelar o Brasil aos brasileiros, para que não desestimem o que é da pátria.
Em toda parte se louva o que medra no torrão alheio e vem de fora. Não era de outra forma com os nossos antepassados lusos, de quem já no século de seiscentos lá dizia o mirífico D. Francisco Manuel de Melo, que lhe faltava paciência para sofrer os modos, quando apesar de nados e criados com as boas sopas portuguesas, com um pouco de ausência já lhes enfadava, ao tornarem, tudo o que era do reino. Perpões não havia como os franceses. Botas, só as de Inglaterra. Casacas holandesas e calças borgonhesas. Ah! as modas de Bruxelas, as espingardas de Londres! “Em conclusão”, fala o autor dos Apólogos Dialogais, “o negócio é posto por eles em tais termos que nem andar, nem vestir, nem comer se pode já à portuguesa”.

Vós vos admoestais que se deve fazer tudo isso à brasileira. Mas concedei-nos, ao menos noutro terreno, algumas parisianices, já que esta Academia se modelou na francesa. E eu de mim só vos exoro me não leveis em mal a fantasia de preferir ao ramalhudo jatobá e à gigantea sumaúma, o choupo esguio e os perenes ciprestes da Grécia e de Florença.

Que o culto nacional, ou como hoje está por moda dizer-se, o amor da brasilidade, nos não prive do que, sendo belo, não é contudo nosso, nem o ser nosso sirva por desculpa ao que porventura for mau. Na epígrafe de que tão amiúde lançam mão escritores, pondo no cabeçalho dos livros “mau, mas meu”, não está escusa que se admita, e ao leitor só lhe resta tirar por conclusão que, sendo assim, tanto pior.
Eu não seria (tomando o exemplo que mais aqui nos deva interessar) eu não seria dos que trocassem o bom falar português pelo que já hoje se quer chamar a língua nacional brasileira. Respeito o sentimento dos que propugnam a independência do nosso idioma, como o meu sempre acatado mestre Sr. João Ribeiro, e dou razão ao nosso brilhante Humberto de Campos, que poucos dias há, em nossos trabalhos ordinários, comentando recentíssimo dicionário português, estranhou não virem aí os brasileirismos com a indicação da origem.

Não se pode, por outra parte, negar que o desenvolvimento literário em certos pontos do norte e do sul do nosso território haja concorrido, nestes últimos tempos, com os motivos regionais de inspiração, para estabelecer na sintaxe e no vocabulário, certa feição própria do nosso falar.
Mas sou por dizer que nada justifica, no propósito de antecipar uma autonomia lingüística que só poderá vir com os séculos, se acoroçoem e desculpem invenções, modismos e deturpações de legítimo vernáculo.

Não vos foi preciso, meu nobre confrade, outra língua que o verdadeiro português para traduzir nos vossos escritos literários a vossa inspiração radicalmente brasileira.
Nos vossos contos já publicados e nos inéditos, tudo se passa no Brasil. Vozes da Minha Terra é um título que diz tudo, e no conflito do homem com a forte natureza, fundamento de todas essas páginas, tudo é Brasil e só Brasil.

Escolherei dois exemplos à ventura. “A Canoa” é a história da vingança de um tropeiro contra o pai da moçoila querida. Espreita-lhe a casa, vê o homem sair para a pesca no rio, entrar na canoa e adormecer à hora da sesta, ao balanço das águas. Matá-lo? Não. A corrente que o leve. Cauteloso aproxima-se do barco, corta-lhe as amarras, a canoa deriva, rio abaixo, arrastada para as pedras. É quando surge, bufando, a cobra, a imensa sucuri. Dá certeira o bote no homem, vira-se o barco na peleja e o horror se acaba no fundo das águas caudalosas.

“O pioneiro” é outra amostra do mesmo lutar do homem no meio nativo, arrostando a vida num rincão inóspito. O episódio mais interessante é o ataque do tamanduá-bandeira. O campeiro do sertão Paracatu contou o caso que com ele passou. Travada a luta, o animal, roncando, cravou-lhe as garras e não havia forças que o dobrassem. Afinal o caboclo o esfaqueia, mas o feroz bicho, arfando agonizante, nem assim larga a presa. Com esforço arrasta-se o pioneiro até à casa, onde a mulher consegue, enfim livrá-lo das unhas do agressor. E o sertanejo, fechando a narrativa, conclui que para as feridas do homem nada tão doce como as mãos da mulher. Mas mulher tem mãos e olhos, e nestes ninguém se prenda. O matuto sentenciou: “olhos de mulher são como garras de tamanduá”.

Se em vossos contos literários palpita a alma ingênua e rústica das gentes do sertão brasileiro, já diversa é a nota em que se afina a vossa lira de poeta. Porque também sabeis falar com esmero a linguagem dulcíloqua dos versos, ainda que não tenhais dado à musa mais que o sonho de fugitivos momentos.

Como poeta, não sois homem do sertão, não cantais os idílios bucólicos e pastoris e o vosso lirismo tem os refinamentos do amor civilizado. Encanta-vos o vestuário feminino, rendas, tules, sedas, e na evocação de belas horas é o corpete que um dia se ajustou ao busto grácil da amada, que vos torna à memória e abraçais como se lá fora ela mesma:

Como alva teia de uma aranha agreste,
Tenho aqui, entre as mãos, todo rendado,
O corpete de crivos que me deste
Do cheiro do teu corpo perfumado.

Preferis em matéria de poesia, como homem de cidade, a linguagem repolida dos salões, e nunca versejastes no estilo da trova singela, em que a alma campesina transverte as suas alegrias e queixumes. Sentis fundo a comovente doçura dessas cantigas, mas, dissestes-no-lo há pouco, só as quereis na moldura em que guardem toda a sua expressividade, lá no escampo, quando o céu luareja as estradas solitárias. Convireis que isso é estar fora do nosso tempo, em que o violão troneia nas salas e o bailar é com a guitarra e a banza. Tudo afinal são cantares e folgares, e se diria que as chulas e lundus não valem menos que o sapatear das danças e batuques americanos, hoje requinte da elegância. Tudo caminha e o gosto é a novidade. Pois não se viu há pouco, em São Paulo, os coros ucranianos adotarem o cateretê?

Eu me fico convosco, e trovas e violas só no silêncio dos campos, quando o caipira despede, a quebradas, nas horas altas da noite, os descantes da sua tristeza.

Com razão se há de conceder a Osório Duque-Estrada, cuja Cadeira vindes aqui ocupar, o mérito de, um dos primeiros, haver revelado nas nossas trovas populares, que reuniu e publicou, tantas belezas nativas. Ele foi assim dos que concorreram a suscitar o gosto por essas flores anônimas das quadrinhas do povo e poetas ignorados, que trovam de repente, ao desafio, entre motes e ditotes. Mas Osório Duque-Estrada não perseverou nesse gênero, de que se acabou fazendo hoje uma literaturazinha. Sua veia poética, precocemente revelada, se declarou magnífica na Flora de Maio, tão louçã como o seu título, formoso livro que não passou e ainda vive. Ele seguiu a regra de todos e daí avante só poetava de longe a longe. Pouco a pouco o absorveu a crítica literária, e nela se ficou.

Os críticos profissionais são pelo geral homens frios, que acabam perdendo o sentimento da admiração, o ótimo não existe, e o ofício não permite louvar sem reservas. É preciso manter a autoridade descobrindo defeitos. Por isso, numa obra, o seu sentido geral, os por maiores, não costumam interessá-los, os pormenores sim. Afinal nesse esmiuçar, nesse ver e rever, mexer e remexer, virar e revirar, de ordinário a muitos acontece o que lembrava Taine: olhar a tapeçaria pelo avesso.

Osório Duque-Estrada não tinha, porém, o temperamento do crítico, admirava e detestava, arrebatava-se pela beleza e tomava-se de indignação contra a tolice. Daí as suas apreciações se extremarem em desmedidas apologias ou em condenações finais. O crítico era o que nele o homem, alma ardente e apaixonada. Não admira, pois, que no longo período em que exercitou na imprensa a crítica literária, ele enristasse a lança em desabridas batalhas e provocasse contra si ódios e malquerenças.

Sendo bom escritor, ainda que um pouco gramático, Osório Duque-Estrada, que exceleu em livros de vulgarização didática, tinha o fervor do nosso idioma. Escrever mal não se perdoa, e se para o público ainda menos, era o seu lema. Ele atravessou assim a sua carreira, entre polêmicas e lutas acerbas, que nos tiravam da mornez habitual de um ambiente literário sem estímulo.

Que de vezes, nas sessões acadêmicas, sua voz se inflamava discutindo com ardor que ia até à paixão? Parecia pequena a causa do debate, uma questiúncula de estatutos, um parecer sobre prêmios ou menções honrosas? Tudo se lhe figurava considerável e o entusiasmo era o mesmo que nos grandes assuntos. Sempre convencido de que a razão lhe assistia, porque boa-fé não faltava, ele se empenhava a todo o empenho pela vitória do que defendia.

Não se poderia negar certa beleza à sua atitude, ainda que não raro pessoal ou intransigente em excesso. Mas o que tinha por dizer, dizia-o a peito aberto, com denodo e bizarria. Ele era uma opinião e isso não era pouco. O que nunca lhe ouvimos foram gabos de encomenda, louvaminhas ou cortezanices, porque em todas as vicissitudes de uma existência trabalhosa guardou estrênuo inquebrantável independência, que era afinal a sua força.

Na vida literária de Osório Duque-Estrada perdura um traço que não pode ser hoje esquecido, o seu provado amor desta Casa. Em todas as circunstâncias, nos prélios mais acesos, aqui e fora daqui, era a Academia o seu constante cuidado, e na defesa do seu programa se extremou com inarrefecido entusiasmo.

Faz um ano, por uma tarde de janeiro, ardendo em febre, os olhos escandecidos, caindo de cansaço, Osório na sua Cadeira porfiou manter-se até o fim dos trabalhos, na última sessão a que assistiu. Vimo-lo, a seguir, prostrado no leito pela grave doença que o levou. Conversava sobre a Academia, informando-se da marcha dos debates. E finalmente, quando os progressos da sua maligna febre pouco a pouco o hebetavam, nas falas do delírio a língua entaramelada ainda deixava perceber o nome da Academia e dos seus companheiros.

Não pode ser, pois, senhores, com a fria expressão das apologias convencionais que hoje revoquemos a memória inesquecível do confrade que, vivo, nunca nos esqueceu, e todos, seus amigos e ainda os que por dissentimentos ocasionais dele viviam apartados, todos, agora que o tempo aplacou os braseiros, nos congraçamos na mesma recordação saudosa e nos volvemos com apreço para a figura de Osório Duque-Estrada.

Dando-lhe a sucessão a um espírito como o vosso, Sr. Roquette-Pinto, a Academia de algum modo guardou uma tradição, porque, há pouco o relembrastes, na Cadeira de que é patrono Hipólito da Costa, o patriarca dos nossos educadores, vindes depois de Sílvio Romero e Osório Duque-Estrada, ambos professores; e é vossa a confissão de que, igualmente professor, outra cousa não tendes querido ser na vida.

Nesse belo apostolado intelectual, a que consagrastes desde cedo vosso rico talento, há um tempo apareceis como professor de alta ciência e como educador popular, um de cujos serviços, e não dos menores, foi a iniciativa de concorrer para a vulgarização do ensino pela rádio-telegrafia e rádio-telefonia.

Na cultura omnímoda do vosso espírito tudo se diria obedecer, na imensa variedade dos conhecimentos, a uma unidade fundamental de princípios, e daí resulta, tão original e harmoniosa, a característica da vossa personalidade.

Não pondes tudo no só valor das teorizações, mas nas realizações práticas vedes o caminho do nosso progresso.

Bem podeis assim aparecer-nos, na suma consagração de hoje, como o símbolo do Brasil novo, da pátria onde, como nos dizeis, “a terra é áspera mas o homem teimoso e forte”. Sois desses homens, caro e ilustre confrade, mas em vossa fortidão esplende aqueloutra, a força mesma de brasileiro, a força soberana da bondade, que é razão, desprendimento, altruísmo e amor.

E assim, ao dar-vos as boas-vindas da Academia, é para os moços de hoje que em nome dela me revolvo, para que abracem os vossos conselhos, aprendam do vosso exemplo, e saibam esforçar a obra que tomastes por empresa, executando com fé os nobres propósitos que farão amanhã a glória do Brasil.